Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 26 de julho de 2017

A ESTÉTICA DO FRIO E A MILONGA

Um dos escritos mais reflexivos/intimistas que já li sobre a cultura gaúcha é A Estética do Frio de Vitor Ramil. A questão da identidade fustiga o texto que busca a compreensão dos aportes de construção dos referenciais culturais rio-grandenses. O frio, a milonga, os laços com o Prata e as estranhezas com certas expressões culturais brasileiras mantém os rio-grandenses num portal de unidade e diferenciação frente a um Brasil múltiplo em práticas culturais e visões de mundo. Se de um lado o politicamente correto prega/impõe que a diversidade é essencial de outro não dilui/sufoca a busca pela definição da identidade e o sentido existencial.
Em meio aos sentidos difusos alguns referenciais do imaginário rio-grandense marcam nossa trajetória: o frio e a milonga. O ar congelado nos poros e a sonoridade que se confunde com a paisagem do pampa é uma persistência marcante nesta busca de definição. Avancemos um pouco mais nesta reflexão numa visita guiada por um mestre em sensibilidade: Vitor Ramil.

         “Assim como o gaúcho e o pampa, a milonga é comum a Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, inexistindo no resto do Brasil. A discussão em torno de sua origem expressa bastante bem sua relevância no encontro dessas três culturas: há teses para sua origem rio-grandense, sua origem argentina e sua origem uruguaia; sua ascendência ora é portuguesa, ora espanhola, ora latino-americana mesmo, mais especificamente cubana. Para o compositor uruguaio Alfredo Zitarrosa, que chamava a milonga de blues de Montevideo, a capacidade de fundir-se a outros gêneros sem dificuldade era uma de suas características; o argentino Atahualpa Yupanqui afirmava que as formas possíveis da milonga seriam tantas quantas fossem as possíveis formas de tocá-la. Do lado de cá das fronteiras, modestamente, eu a associava à imagem altamente definida do gaúcho e do pampa. A milonga me soava uma poderosa sugestão de unidade, a expressão musical e poética do frio por excelência. A milonga, que estivera sempre no fundo das minhas escolhas como uma voz íntima, à espreita, agora se fazia ouvir mais claramente. Eu a percebia como uma forma musical simples e concisa a serviço do pensamento e das palavras – o vocábulo milonga é de origem africana, plural de mulonga, que significa “palavra”. Existe a milonga para dançar, alegre, em tom maior, apropriada ao som forte do acordeom. Mas eu estava pensando na milonga pampeana ou campeira, ou ainda milonga-canção, como for, quase sempre em tom menor; simples e monótona, segundo a definição de um dicionário; lenta, repetitiva, emocional; afeita à melancolia, à densidade, à reflexão; apropriada tanto aos vôos épicos como aos líricos, tanto à tensão como à suavidade, e cuja espinha dorsal são o violão e a voz. Uma forma que, quanto mais dela se extraísse, mais expressiva ficaria. Que outra, se não essa, escolheria o gaúcho solitário da minha imagem para se expressar diante daquela fria vastidão de campo e céu? Que outra forma seria tão apropriada à nitidez, aos silêncios, aos vazios? Em sua inteireza e essencialidade, a milonga, assim como a imagem, opunha-se ao excesso, à redundância. Intensas e extensas, ambas tendiam ao monocromatismo, à horizontalidade. O frio lhes correspondia aguçando os sentidos, estimulando a concentração, o recolhimento, A Estética do Frio 23 o intimismo; definindo-lhes os contornos de maneira a ressaltar suas propriedades: rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza, melancolia. Isso significava que uma estética do frio resumir-se-ia à forma da milonga? Não. Eu não era o gaúcho altamente definido da imagem. Significava que, por sua poderosa sugestão formal, a milonga, na descrição mais generalizante a que se pudesse chegar de uma estética do frio, não estaria nunca menos que na subjacência. E não só pela sugestão formal, também por ser um elo entre Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina e por sua popularidade e presença no imaginário dos rio-grandenses, característica esta que fazia dela uma justa e comprovada expressão da nossa sensibilidade, das nossas contrapartidas frias que, não obstante nos definirem e distinguirem, apareciam sempre aguadas perante o colorido local artificialmente avivado da nossa caricatura. Em muitas oportunidades, deparei-me com exemplos claros do alcance da milonga entre nós: emoção, lágrimas ou a confissão de um “estranho sentimento de patriotismo” de rio-grandenses criados na capital ou até mesmo longe do estado, gente sem nenhuma relação direta com o interior e a cultura campeira. Eu mesmo nasci e me criei no litoral, vivi sempre em grandes cidades. O fato de compor milongas, por si só, já evidenciaria sua presença em meu imaginário. Mas não foram poucas as vezes em que, ao compor, me pus a chorar. É significativo que, em um país em que as músicas representativas das regiões sejam em sua maioria um convite à rua, à alegria, à dança, à extroversão, a milonga, e seu chamado à interioridade, seja a que fala de nós rio-grandenses com mais propriedade. Aqueles roqueiros e nativistas que se odiavam não deixariam de encontrar nela um ponto de contato.

Ao me reconhecer no frio e reconhecê-lo em mim, eu percebera que nos simbolizávamos mutuamente; eu encontrara nele uma sugestão de unidade, dele extraíra valores estéticos. Eu vira uma paisagem fria, concebera uma milonga fria. Se o frio era a minha formação, fria seria a minha leitura do mundo. Eu apreenderia a pluralidade e diversidade desse mundo com a identidade fria do meu olhar. A expressão desse olhar seria uma estética do frio” (http://www.vitorramil.com.br/textos/Vitor_Ramil_-_A_Estetica_do_Frio.pdf).

O ESTORIL

Recentemente, degustei um chocolate português que é uma mistura de sabor e nostalgia: o “Chocolate para Turista” da Fábrica Regina. Estes modelos chamados de “Costa do Sol” foram produzidos nas décadas de 1930-40 quando o Estoril era o “primeiro destino chic e cosmopolita de Portugal”.
A Fábrica Regina nasceu em 1928 no bairro lisboeta de Alcântara e encerrou suas atividades nos anos 1990. Em 2002, após sua venda, a marca foi relançada pela fábrica Imperial que propiciou uma volta ao passado: uma caixa com três tabletes de 100 gramas cada reproduzindo as estampas e o sabor da época.
O chocolate é um ótimo pretexto para relembrar um pouco da trajetória do Estoril, um Distrito de Lisboa que faz parte do Conselho de Cascais. Localizado entre Cascais (a Riviera Portuguesa) e São João do Estoril, o turismo se desenvolveu nas primeiras décadas do século XX no Monte Estoril que, estrategicamente, foi privilegiado com a construção dos caminhos de ferro que ligam a cidade de Lisboa à vila de Cascais, numa distância de cerca de apenas 20 quilômetros.
A beleza da paisagem e a construção de um portentoso Cassino (que até o presente é considerado o “maior Cassino da Europa”), foi fundamental para o desenvolvimento da localidade. O local se tornou um refúgio para aristocratas no verão e refúgio de exilados políticos de outros países europeus. Vários prédios suntuosos e casas apalaçadas foram construídos orientados pela “arquitetura de ostentação” que acabou atraindo ainda mais turistas.

Na década de 1910, o Estoril já estava se afirmando como um complexo turístico e termal de luxo que atraia milhares de turistas, especialmente, europeus. Foi neste contexto de desenvolvimento de um turismo de luxo que se firmou o produto de oito décadas atrás e que hoje ostenta esta frase em sua caixa: “delicioso chocolate confortável para os turistas”.


terça-feira, 18 de julho de 2017

RICARDO STRAUCH

A Alemanha é um dos referenciais pioneiros para entender a difusão dos cartões-postais não estatais, na década de 1890, pelo planeta. Técnicas de reprodução foram desenvolvidas e inúmeras imagens fotográficas europeias passaram a circular por todos os continentes num processo de globalização do patrimônio edificado ou das manifestações multifacetadas da cultura humana. 
Este desenvolvimento dos cartões-postais na Alemanha é uma hipótese para explicar que em Rio Grande tenha surgido o cartão-postal mais antigo do Rio Grande do Sul e um dos mais antigos do Brasil. Seu editor foi Ricardo Strauch que fundou a Livraria Rio-Grandense no ano de 1887. O seu legado na produção de postais, nas primeiras décadas do século XX, é um dos mais importantes em nível de Brasil. O primeiro cartão conhecido deste editor foi assinado como R. Strauch/Livraria Rio-Grandense Rua Pedro II, Rio Grande, tendo circulado com o carimbo de 8 de abril de 1898. Dezenas de cartões foram produzidos nos anos posteriores mas os exemplares que sobreviveram até o presente não correspondem as séries completas editadas no passado. Retratam as praças, prédios, ruas, espaço portuário e tantas outras paisagens que fizeram parte de gerações da cidade do Rio Grande ao longo de mais de cem anos.
Além dos cartões-postais, a Livraria Rio-Grandense atuava com papelaria e livraria. Possuía uma oficina de tipografia, litografia e encadernação, que devido à qualidade do trabalho, recebeu uma medalha de ouro em 1908, na Exposição do Rio de Janeiro. A casa funcionava num prédio moderno de três andares na rua Marechal Floriano. Efetuava compra nos principais centros comerciais da Alemanha, como é o caso da aquisição de livros em Leipzig. R. Strauch era comprador da Casa Wurtemburgische e era sócio da Export Verein in Konigreich Verein, de Leipzig.
As atividades perduraram por 55 anos até 1942 (quando da entrada do Brasil na II Guerra Mundial), quando a empresa teve seus bens leiloados, restando o legado de uma das melhores livraria/tipografia já instaladas no Rio Grande do Sul.
      
Porto Velho do Rio Grande (1910-1915). 


A CASA DOS GOVERNADORES


No mês de fevereiro de 1937, Rio Grande desenvolveu uma ampla programação comemorativa aos 200 anos de sua fundação. Uma das atividades realizadas foi o descerramento de uma placa que buscava eternizar o local onde foi edificada a Casa dos Governadores.
A denominação ‘Casa dos Governadores’ existe na documentação desde o século XVIII e refere-se ao espaço físico onde surgiu o poder administrativo público  que comandava todo o Rio Grande do Sul português e não apenas o que hoje constitui o município do Rio Grande. Quando, a partir das orientações do Conselho Ultramarino português, o brigadeiro José da Silva Paes efetiva a fundação do Rio Grande teve início a Comandância Militar (1737). O aviso de 13 de agosto de 1760 do Conde de Oeiras ao general Gomes Freire de Andrade comunica a criação da Capitania do Rio Grande de São Pedro e a nomeação de Ignácio Elói de Madureira para primeiro governador. Encerrava a Comandância Militar iniciada por Silva Paes e cujo último comandante foi o Tenente-Coronel Pascoal de Azevedo que havia sido encarregado do comando pelo Vice-Rei em 28 de junho de 1752 (fonte: Revista do IHGB, volume 23, 1860). Com a invasão espanhola em 1763 a Casa dos Governadores é utilizada pelas tropas castelhanas e consta enquanto espaço edificado no Plano da Vila do R. Grande de autoria de José Custódio de Sá e Faria, 1767 (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). Quando da retomada da Vila pelos portugueses em abril de 1776, o diário do  Ten-General Heinrich Bohn (Mémories Rélatifs à l’Expédition au Rio Grande) registra a existência desta edificação. 
O prédio ocupado pela Câmara Municipal dos Vereadores (a primeira do Rio Grande do Sul) ficava ao lado da Casa dos Governadores (que estava em ruínas em 1851). A rua Comendador Pinto Lima era chamada de rua do Palácio e posteriormente rua da Câmara. Com a mudança da Câmara Municipal para o prédio construído a partir de 1847 e ocupado em 1850 (no local onde hoje está edificada a Biblioteca Rio-grandense), a rua passou a ser chamada de rua da Câmara Velha. Esta rua foi calçada no ano de 1874.
Matéria publicada na segunda página do Jornal Rio Grande no dia 24 de fevereiro de 1937 (acervo da Biblioteca Rio-grandense), evidencia a importância que a comunidade local dava para este local onde surgiu o poder público no Rio Grande do Sul.
“Inauguração da placa da Casa dos Governadores. Trata-se de uma placa de bronze, de feliz inspiração, nos símbolos que a integram e no conjunto de desenho, devido ao lápis hábil do sr. Procópio Netto, e aprecível ainda pela correção da modelagem e cunhagem, tudo feito nesta cidade. Tem a placa os seguintes dizeres: ‘A cidade, em seu bicentenário, memora foi aqui a Casa dos Governadores, primeira sede do Governo da Capitania do Rio Grande do Sul, 19 de fevereiro de 1737-1937’. Foi a mesma colocada a face a rua General Bacellar do prédio da mesma rua esquina do Conselheiro Pinto Lima, lugar exato em que se levantava a Casa dos Governadores. O ato inaugural deu-se às 16 horas, perante muito povo e com a assistência do mundo oficial, no qual se notavam os seus comandantes Cerqueira e Souza, repesentante de S. Ex. o sr. Presidente da República, da Prefeitura Municipal, presidente e vereadores da Câmara Municipal, dr. Promotor Público da Comarca, presidente e membros da Comissão Central dos Festejos etc. O orador oficial foi o sr. Álvaro Prates de Lima que expôs à assistência os fundamentos históricos que serviram para identificar o local da primeira Casa de Governo do Rio Grande do Sul capitania, e exaltou as conquistas do progresso da nossa cidade, nas suas indústrias e no seu comércio sob os aspectos da instrução, da higiene e da assistência social, recebendo, ao finalizar o seu patriótico discurso, muitos aplausos. O sr dr. Meirelles Leite, a seguir, declarou que se tratando de uma memoração a primeira Casa de Governo do Rio Grande do Sul passado, aquela casa, portanto, onde primeiro se praticaram os atos administrativos, conforme as leis, ao direito e a justiça, convidava a descerrar a placa, que se achava encoberta com a bandeira nacional da histórica Matriz de S. Pedro, da mesma época da Casa dos Governadores ao sr. dr. Paula Cardoso, como presidente da sub-secção local da Ordem dos Advogados do Brasil, o que aquele ilustre patrício fez sob calorosos aplausos da multidão. Durante a cerimônia tocou a banda do 9° RI”.

Esta placa em bronze hoje é fator de litígio entre o interesse público e o interesse comercial mas evidencia a necessidade de ampliarmos a consciência da importância em pensarmos a cultura material – inclusive esta placa -, como vestígios do passado que expressam a caminhada de uma comunidade. Num período em que o patrimônio material tem sido alvo de depredações e desaparecimentos (bustos, esculturas, placas somem dos espaços públicos...), frente a esta morte premeditada de uma materialidade legada por gerações anteriores ao somatório de imaginários que constitui a memória de uma sociedade, não podemos silenciar e esperar que o fato se consuma. Afinal, o conhecimento da história e a educação patrimonial são ferramentas essenciais para a definição de identidades no presente. 
      

A INAUGURAÇÃO DO CINE AVENIDA

O atual Teatro Municipal construído junto ao canalete da Major Carlos Pinto nasceu na fronteira entre a cidade antiga e a Cidade Nova, nas proximidades dos muros das trincheiras que isolavam a cidade do mundo externo (ou também chamada cidade extra-muros). Num período em que as obras de construção do canalete estavam adiantadas e o boulevar era aformoseado para se tornar mais um espaço público a ser freqüentado pela população, surgiu mais uma casa cinematográfica e teatral. Seu nome (estampado até o presente na fachada ainda original do prédio) é Cine Avenida.
Matéria do jornal Rio Grande de 26 de abril de 1929, ressaltou o novo empreendimento que a cidade estava recebendo: “Cresce diariamente no seio de nossa sociedade, o interesse para a inauguração a dar-se em três de maio próximo, do novo e confortável Cine-Teatro Avenida, sito no boulevar Carlos Pinto e de propriedade dos operosos srs. Capitão João Pereira de Andrade e Antonio Marques de Figueiredo. Justa é essa ansiedade com que é aguardada a estréia da nova casa de diversões, a qual nada falta, não só no belo edifício especialmente construído, como na amplitude, luxo e conforto para agradar em cheio a nossa população. Apesar disso e de abrirem a concorrência pública uma casa de primeira ordem, os infatigáveis proprietários do Cine Avenida resolveram num gesto muito louvável, manter ali preços populares, vindo assim ao encontro dos desejos do nosso povo. Como dissemos a inauguração do Cine Avenida far-se-á com um filme cinematográfico verdadeiramente majestoso, fadada a um ruidoso sucesso. É o finíssimo lavor, a superprodução da afamada Fox Film, denominada Minha Mãe, que tem um enredo simplesmente admirável e um desempenho empolgante, a cargo de artistas gloriosos como Belle Bennett, Neil Hamilton, Victor Mc Laglen e outros da cena muda. Por todos esses motivos, pode-se afirmar que a inauguração do Cine-Theatro Avenida vai constituir um verdadeiro acontecimento”. Os preços populares será uma característica do novo espaço: “uma das principais vantagens que este novo centro de diversões oferece ao público, são os preços das suas localidades, relativamente baixos, tais sejam: poltronas 1$500, meia entrada 1$000 e balcões $800.”
No ano de 1929 as manchetes do jornal Rio Grande estão ligadas a vitória eleitoral republicana que levou Getúlio Vargas ao governo do Rio Grande do Sul, iniciando a trajetória política de Vargas que se prolongaria até a sua morte em 1954. Entre as propagandas está a da VARIG, cujo agente Carlos Albrecht Jr, informava as datas das próximas malas postais que saindo de Rio Grande chegariam a várias cidades como Santos e Rio de Janeiro. O jornal dava destacado espaço em suas colunas para as atividades cinematográficas do Carlos Gomes, Polytheama e Cine Guarany, num período de grande freqüência as casas de espetáculo. Um dos mais antigos espaços teatrais do Rio Grande do Sul, o Sete de Setembro, onde ocorreu a primeira exibição do cinematógrafo Edison na cidade no ano de 1897, não foi citado pelo jornal neste período.
         No dia 29 de abril o jornal repete a informação da inauguração e divulga a apresentação de um trio espanhol: “No palco, emprestando maior brilho à noitada, estrear-se-ão, o notável dueto cômico, Les Marocc e a bailarina internacional Luiza de Lerma, constituindo um trio admirável fadado a um ruidoso sucesso”. A expectativa para a grande estréia foi enfatizada na edição de 30 de abril: “...começando a primeira sessão as 19 horas, uma verdadeira jóia da cinematografia moderna que é o lindíssimo filme Minha Mãe extraordinária produção de John Ford (...) é um filme que enternece todos os corações. É o relicário do amor maternal, o poema de uma afeição sublime e a história magnâmica de um sentimento”. 
         No dia 3 de maio de 1929, a inauguração transcorreu em grande estilo, estando ocupadas as 1.500 poltronas e 500 gerais: “Consistiu o ruidoso sucesso que prevíramos a inauguração ontem do Cine Theatro Avenida (...) A magnífica instalação do Cine-avenida, que por todos os motivos, inclusive pelo conforto que oferece, está realmente fadado a ser um dos pontos de reunião preferidos pela sociedade rio-grandense, que ontem bem demonstrou a ansiedade com que aguardava a estréia da nova casa de diversão. A excelente orquestra, dirigida pela maestrina exma. Sra. d. Lili Schimitt Tavares, deu início a noitada, com a execução do Hino Nacional, e da sinfonia do Guarany, ambos muito aplaudidos pela extraordinária assistência, seguindo-se a passagem do formoso filme cinematográfico Minha Mãe, de enredo sublime e desempenho admirável. Após ocupou o palco o dueto cômico Les Marocc e a bailarina Internacional Luiza de Lerma, que formam um trio de primeira ordem, e que confirmaram amplamente o renome de que vinha precedidos, assegurando que a sua temporada no Avenida vai ser de constantes e ruidosos triunfos. Foi, enfim, uma estréia que não podia ser mais auspiciosa, pelo que não regateamos os nossos cumprimentos aos infatigáveis proprietários. Hoje, novamente, será focado o filme Minha Mãe, em 8 atos e novos números pelo trio. Amanhã matiné chic. Na tela fitas de sucesso e no palco belos números pelo trio. A noite, a super-máxima dos programa Matarazo Rainha do Pacífico, em 10 atos...” (Rio Grande, 4 de maio).
Neste período, era intensa a concorrência entre os quatro espaços cinematográficos que passavam a existir na cidade, os quais somados possuíam mais de cinco mil lugares para uma população de 50.000 habitantes. Ja nos primeiros dias de nascimento do novel Cine-Teatro Avenida, a disputa pelos cinéfilos e freqüentadores de teatro era acentuada. No dia 9 de maio nos tradicionais Cine-Teatro Polytheama e Carlos Gomes (propriedades da empresa Gáudio & Comp.) estreou Fascinação da Volúpia em nove atos (no Carlos Gomes) e ao vivo, no palco do Polythema, a Troupe Csudor “composta de seis bailarinas esplendidas ao mesmo tempo que são seis mulheres belíssimas na sua perfeição corpórea, a qual se constata com a quase nudez absoluta em elas aparecem” (Rio Grande, 8 de maio de 1929).

         O Cine Avenida funcionou até 1983 quando fechou as portas. Foi restaurado e reaberto ao público como Teatro Municipal do Rio Grande em 1997. Dos cine-teatros que existiram na cidade, o Teatro Municipal é o único que continua em atividade. Recentemente sofreu nova reforma e continua sendo modernizado, apresentando uma sala de memória onde está sendo resgatada a história de décadas de cultura e sociabilidade em Rio Grande.

A CAIXA D’ÁGUA DA HIDRÁULICA

O recente (2013) tombamento pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da caixa d’água da hidráulica é uma relevante notícia no sentido de valorização da arte em ferro em Rio Grande. 
A Companhia Hidráulica Rio-grandense, criada em 1872 por Higino Corrêa Durão e João Frick, legou a cidade do Rio Grande um precioso acervo de arte em ferro do século 19. São peças oriundas de fundições francesas que constituem os 4 chafarizes instalados na cidade entre 1874-1878. A fundição responsável foi a Antoine Durrene da região francesa do Marne. Três destas peças típicas da arte em ferro industrial que fizeram/fazem parte dos espaços públicos de diversas cidades do planeta, ainda estão preservados em Rio Grande. O chafariz das Três Graças na praça Xavier Ferreira, o chafariz dos anjinhos na praça Tamandaré e o também chafariz dos anjinhos na praça Barão de São José do Norte, compõem o cenário do espaço urbano local. Existiu ainda mais um chafariz que foi instalado na Praça Sete de Setembro e que foi removido na década de 1910 desaparecendo do cenário urbano e ficando apenas na memória de mais uma lenda urbana (esta lenda concretamente existiu...). Também integrando os chafarizes foram instaladas várias colunas em ferro cuja função era de luminárias.
A Companhia também instalou uma estátua em ferro na praça Julio de Castilhos. A peça foi colocada na parte superior de uma estrutura em que a água jorrava pela boca de anjos barrocos. A preciosa obra em ferro, pesando 340 quilos, foi produzida pela fundição francesa Val D’osne, sendo transferida para um lago da praça Tamandaré em 1903. A sedutora figura que reproduz em ferro uma das representações femininas mais bonitas já esculpidas e que compõe o acervo do Museu do Louvre (Paris), pode ser observada próxima a esquina das ruas Luiz Lorea e General Netto.
O objetivo da importação destas obras de arte em ferro foi o fornecimento de água para Rio Grande, cujas obras, tiveram início em julho de 1873 (140 anos atrás...). O local centralizador dos vários pontos de captação de água para distribuição em direção a cidade foi na área do hoje denominado ‘bairro hidráulica’, local de grande importância estratégica onde em 1737 foi construído a Fortificação de Sant’Ana do Estreito. Nesta área foi instalada a caixa d’água com capacidade para 1.500.000 litros. Seu fabricante foi a fundição Abbey Works, em Paisley, Escócia e o projeto foi da Hanna Donald & Wilson, com sede também em Paisley. Conforme a magristal pesquisa de José Francisco Alves (‘Fontes d’Arte no Rio Grande do Sul’. Porto Alegre: Artfolio, 2009), em Rio Grande, em 1873, já estavam sendo instalados os alicerces da área que receberia o reservatório, obra que ficou pronta em fevereiro de 1874. Em 28 de julho de 1876, saíram da Escócia os navios Ocean Queen e Favor com materiais da caixa d’água de Rio Grande, em 19 de outubro, o Favor. Em fins de janeiro de 1877, o reservatório já estava quase todo em seu lugar. A Cia Hidráulica Rio-Grandense, em 31 de julho, deu por concluída a sua construção. Em ‘Saneamento do Rio Grande’, de Saturnino Rodrigues de Brito, consta sobre esse depósito a seguinte descrição: ‘as bombas elevam a água para o reservatório de distribuição, que é metálico, apoiado sobre 45 colunas de ferro fundido. O fundo fica na cota de 12,80; o bordo na cota de 16,65 ou 13,60 metros acima de superfície do terreno [...] o reservatório da chapas de ferro é também em coroa, tendo o cilindro externo 22m de diâmetro, e o interno, de 3,75. A altura total é de 3,85. Sua capacidade útil é de cerca de 1.500.000 litros, fica cheio em 14 horas de trabalho normal das bombas’ conclui Alves.
A caixa d’água instalada em Pelotas em setembro de 1875, localizada nas imediações da Santa Casa de Misericórdia, tem a mesma origem escocesa (fundição Abbey Works) e é idêntica a de Rio Grande.  Higino Durão também era o administrador da Companhia Hidráulica Pelotense, o que ajuda a explicar a existência de duas estruturas tão sofisticadas construídas, em cidades vizinhas, pela mesma fundição.  

De fato são duas obras de arte ao ar livre (a de Rio Grande com acesso restrito) que precisam ser preservadas e, especialmente, conhecidas pela população. Ilustração: Cartão-postal da década de 1930. 

TEIXEIRA NUNES E OS LANCEIROS NEGROS

Durante a Revolução Farroupilha (1835-1845) a cavalaria se fez presente e caracterizou militarmente o conflito. A cavalaria farroupilha tornou-se lendária e na sua época foi um pesadelo para as tropas imperiais. O italiano Giuseppe Garibaldi eternizou em seu diário a admiração e respeito pela bravura do coronel Joaquim Teixeira Nunes, líder do I Corpo de Lanceiros Negros (corpo de cavalaria formado por negros livres ou libertos durante a Revolução): “Eu vi batalhas disputadas mas nunca e em nenhuma parte homens mais valentes nem lanceiros mais brilhantes do que os da cavalaria rio-grandense, em cujas fileiras comecei a desprezar o perigo e a combater pela causa sagrada dos povos”. Garibaldi, que muito aprendeu militarmente nestes combates e levou esta experiência para as guerras de libertação italiana, deixou um registro emotivo daquilo que vivenciou no Rio Grande do Sul e do papel da cavalaria de lanceiros: "E repassando na memória as vicissitudes da minha vida no vosso meio, em 6 anos de atividade de guerra, de constante prática de ações magnânimas como que em delírio exclamo! Onde estão agora esses belicosos filhos do Continente, tão majestosamente intrépidos nos combates? Onde Bento Gonçalves, Netto, Canabarro, Teixeira Nunes e tantos valorosos lanceiros que não me lembro! Que o Rio Grande ateste com uma modesta lápide o sítio em que descansam os seus ossos; e que vossas belíssimas patrícias cubram de flores esses santuários das vossas glórias."
Teixeira Nunes foi um dos comandantes dos Lanceiros Negros e já tinha uma experiência nos combates platinos desde sua participação na Guerra da Cisplatina (1825-1828). Sua atuação na Revolução Farroupilha foi ressaltada por Assis Brasil que o indicou como “o maior herói da Revolução” e do historiador Tasso Fragoso que viu nele “a maior lança farrapa”. Ele participou da expedição a Laguna (Santa Catarina) e na vitória farroupilha sobre a Divisão Paulista em Bom Jesus. Teve como companheiros de combate Giuseppe e Anita Garibaldi. Em 1840, participou do malogrado combate de São José do Norte. Ele também é lembrado por ter sido o primeiro combatente a desfilar com a recém-criada bandeira da República Rio-grandense em 1836.
Conforme Cláudio Moreira Bento, Teixeira Nunes “foi um dos oficiais de maior nomeada que possuiu a Revolução. Era uma lança das primeiras. Com o Corpo de Lanceiros Negros a seu mando, alongava do exército, para operar com seus próprios meios, em qualquer parte que o inimigo aparecesse. Era o terror dos seus inimigos. Onde carregava o Corpo de Lanceiros Negros ao seu comando surgia a vitória. Teixeira era humano. Durante a peleja matava por ser contingência da luta, e depois da vitória não morria um só prisioneiro. Era um oficial que sabia fazer a guerra de recursos (a guerra à gaúcha de guerrilha)”.
Num dos episódios mais polêmicos da Revolução, no combate de Porongos (atual Pinheiro Machado), Nunes perdeu cerca de 80 combatentes negros no enfrentamento com as tropas de Caxias, numa proporção de um farroupilha para 20 imperiais. Após a derrota, o comandante dos lanceiros foi acampar no arroio Chasqueiro com o restante dos lanceiros negros. No dia 26 de novembro, no combate de Arroio Grande, foi alcançado por tropas imperiais do coronel Chico Pedro. Tendo o seu cavalo boleado (derrubado por boleadeiras) recebeu um golpe de lança e na sequência foi degolado. Um trágico fim para alguém que, humanitariamente, libertava os prisioneiros após o combate...

Teixeira Nunes, o ‘coronel Gavião’, é um personagem cultuado em Canguçu (sua terra natal), a qual, no ano de seu nascimento em 1802, estava subordinada a Paróquia do Rio Grande. Ilustração: Lanceiro Negro. Quadro no Museu de Bolonha-Itália.

180 OUTUBROS NO PASSADO

No mês de outubro de 1833, notícias veiculadas pelo jornal O Noticiador permitem captar alguns dos problemas que faziam parte do dia-a-dia da Vila do Rio Grande (que só passaria, dois anos depois, a denominar-se de Cidade do Rio Grande).
      Questões políticas na luta entre liberais e conservadores, entre nacionalistas e restauradores portugueses, era a tônica principal que orientava o jornal redigido por Francisco Xavier Ferreira. Foi um dos períodos mais decisivos da história do Brasil em termos de integridade territorial e nacional. Neste contexto, o assassinato do padre Bernardo Viegas (liberal radical) é uma referência paradigmática para entender o período e seus confrontos. O crime jamais foi solucionado, evidenciando o enraizamento dos grupos conservadores que eram denunciados avidamente, inclusive pelo próprio padre Viegas.
       Questões sociais também preocupavam, como a falta de recursos financeiros para continuar a receber crianças recém-nascidas abandonadas pelas mães e que eram recolhidas na roda dos expostos da Santa Casa.
         Eventos climáticos extremos já aconteciam: a população contabilizava os prejuízos com o intenso temporal que ocorreu neste mês e cuja sensação é que a Vila ficaria soterrada pela areia levantada pelo forte vento.
         Um outubro agitado e marcante para aqueles que aqui viviam a 180 anos no passado...
  
“Grande Temporal. No dia 2 do corrente, pelas 4 e meia da tarde, tendo precedido um calor excessivo, ausência de sol, ar sombrio e vento brando do noroeste, repentinamente se levantou uma ventania tão forte que, se durasse mais tempo, teria esta vila de ser destruída na maior parte de seus edifícios, ou de todo submergida. Aquela coluna de vento julgamos que subsistiu 5 minutos, e a areia que circunda a vila por uma parte, voou por toda ela de tal modo que nuvens de semelhante terra movediça a circularam a uma distância incrível que parecia noite. De todas as casas , altas e baixas, destruiu mais ou menos os telhados e lançou por terra grande número de muros, algumas de parede dobrada feita a cal, arrancou arvoredos,  quebrou vidraças grande parte das telhas arremessadas do vento sobre as que estavam fronteiras, derrubou algumas pequenas casas, arremessou ao mar próximo e cobriu de areia grande quantidade de roupa que estava estendida no lugar onde se costuma lavar, e só neste gênero causou considerável prejuízo. No mar, dizem que se viraram algumas pequenas embarcações, que morreram algumas pessoas, o que ainda não está bem averiguado. Abrandou muito, e com a mesma rapidez o vento. Segui-se uma grossa chuva de grande pedras, algumas de peso de uma onça, que também concorreu para a quebra das vidraças, e passando algum espaço cessou, continuando toda a noite a chuva ordinária e vento”. O Noticiador 7 de outubro de 1833.

“Roda de Expostos. A Câmara Municipal desta vila faz saber que, falecendo-lhe os meios para criação dos expostos, por não ter rendimentos que possam fazer face as despesas de pagamento as amas e outras indispensáveis, resolveu, na sessão de hoje, mandar pregar a roda e não aceitar mais expostos. Rio Grande, 9 de outubro de 1833”. O Noticiador, 14 de outubro de 1833.
  
“É quase impossível descrevermos aos nossos leitores o sentimento geral, que tem patenteado esta Vila pelo cruelíssimo assassínio perpetrado ao Patriótico Cidadão o Sr. Bernando José Viegas. Ao terror pânico, sucedeu a mais furiosa indignação, tendo esta crescido não só pelo boato que se tem espalhado de que do mesmo modo serão sacrificados mais dezenove patriotas, como pela lentidão e frieza com que o público tem visto proceder no exame deste insidiosa homicida: se ele ficar impune, e se a Justiça, como rigorosamente lhe cumpre, não descobrir o vil monstro e seus infames sectários, então era melhor irmos encerrar-nos nas mais obscuras cavernas e fazer companhia as mais embravecidas e sangüinosas feras”. O Noticiador, 10 de outubro de 1833.



FRAEB & CIA

Guia Bemporat para 1908. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense. 


A casa comercial fundada em Rio Grande por H. Fraeb em 1829 teve uma longa existência. Ela evidência o longevo intercâmbio que era mantido com a Alemanha desde o século 19. Em 1910 foi organizada a firma Fraeb & Cia constituída por quatro sócios: A. Fraeb (de Hamburgo), Charles Fraeb, Christian Nygaard e Hermann Meissner (vice-Consul da Austria-Hungria). A matriz estava instalada na rua Marechal Floriano e tinha filiais em Porto Alegre, Pelotas e Santa Maria.
         Do estabelecimento em Hamburgo eram enviados produtos europeus, especialmente tecidos, secos e molhados de todas as procedências, cimento, arame simples e farpado, etc.

         As exportações de couros e salgados tinham como destino a Europa e os Estados Unidos, sendo a empresa rio-grandense de maior volume de exportações destes produtos para a Europa até 1916. Para outros estados brasileiros eram enviados derivados do gado: cabelo, chifre, lã, sebo etc.
         Seus agentes ou viajantes trabalhavam com grande parte das cidades do interior do Rio Grande do Sul. É mais uma das empresas que demarcaram por mais de um século o perfil do tipo social que foi o ‘caixeiro-viajante’.

         Devido a sediar o único porto marítimo do Rio Grande do Sul, Rio Grande recebeu várias casas comerciais ligadas a exportação e importação. A Fraeb, fundada ainda no primeiro Império brasileiro, foi mais um destes empreendimentos que desapareceram durante a Segunda Guerra Mundial.  

GUSTAV POOCK

O capital industrial se fez presente em Rio Grande desde a década de 1870. A cidade se caracterizou por apresentar um numero relativamente pequeno de indústrias onde trabalhavam um elevado número de operários. Na República Velha gaúcha ocorre a expansão e consolidação da industrialização e Rio Grande será um centro essencial para a produção de bens não duráveis ligada aos ramos têxtil e alimentício. No ano de 1918, cerca de 6 mil operários atuavam nas indústrias locais. Dentre estas, uma das que mais se destacava era a Companhia de Charutos Poock, que chegou a empregar na cidade 300 funcionários (a maioria mulheres). O primeiro endereço ficava na esquina das ruas Marechal Floriano e Benjamin Constant. O prédio retrato nesta página foi ocupado a partir de 1912 (atual Tumelero).
Pedro Domecq em seu livro de 1916 (O Estado do Rio Grande do Sul), traz um relato da situação da empresa neste ano e a trajetória do seu fundador.
Sob o título de Cia de Charutos Poock, Succ. de Poock & Cia está instalada na cidade do Rio Grande uma importante fábrica de charutos, que por todos os motivos faz honra a indústria do Estado do Rio Grande do Sul e coloca-se, com vantagens, entre as primeiras do Brasil. O fundador da atual Companhia, o sr. Comendador Gustav Poock, nasceu em Hamburgo, em 1854; era filho do sr. Ed. Poock, conhecido fabricante de charutos nesse grande centro industrial e aí tornou-se senhor de conhecimentos na indústria charuteira, que um dia transplantaria para o Brasil. Aportando a cidade do Rio Grande em 1876, aí resolveu exercer a sua atividade em importantes casas comerciais, na qualidade de empregado, ocupando simultaneamente o cargo de chanceler do consulado alemão. Em 1880 contraiu matrimônio com uma rio-grandense, ficando assim mais enraizado no lugar. Depois de superar mil dificuldades, principalmente de capital, pode, afinal, em 1891, realizar a sua grande aspiração de fundar uma fábrica de charutos havaneses, a primeira no seu gênero no Brasil. Com a confiança de um grupo de amigos e capitalistas, conseguiu subscritores para o capital primitivo de Rs100:000$000, divididos em ações, com que foi fundada a Empresa.
Constituída a sociedade, o sr. Poock seguiu para a Europa, onde contratou pessoal habilitado e fechou contratos para fornecimento de matéria-prima escolhida. Tudo assim preparado, urgia instalar a fábrica e dar os primeiros passos de ensaio na colocação e introdução do produto, mas eis que declara-se a epidemia de cólera morbus em Hamburgo e estala o movimento revolucionário de 1893 no Estado. A exploração da nova indústria atrasou-se grandemente e só em 30 de junho de 1893 é que o sr. Comendador Poock pode apresentar aos acionistas o primeiro balanço, aliás auspicioso, por permitir distribuir quase 10º sobre o pequeno capital realizado de Rs. 50:000$000. (...) [No final de 1900] “foi fundada a filial de Poock & Cia, em Cachoeira (Estado da Bahia) e organizada segundo os princípios da casa matriz. A matriz emprega na fabricação de seus afamados charutos, fumos escolhidos das melhores safras de Cuba, Havana, Bornéu, Sumatra e da Bahia; a importação é feita, quer dos mercados europeus, quer dos nacionais os mais qualificados, e esses fumos, na fábrica, são cuidadosamente manipulados e misturados, dando as diversas composições, que se procura conservar inalteradas em todas as marcas, para o que não se poupa esforços”.

Os produtos da empresa eram consumidos nos países do Prata, na Alemanha, Portugal, Suíça, Inglaterra, Estados Unidos e circulava nos navios das grandes Companhias de Navegação. O consumo interno do mercado brasileiro era elevado. Gustav Poock faleceu aos 61 anos, em 10 de janeiro de 1915. Seu filho, Gustavo Poock Junior assumiu o empreendimento. A empresa encerrou suas atividades no final da década de 1960.    

LONDON & BRAZILIAN BANK LIMITED


       Em 1863, o London and Brazilian Bank Limited iniciava as suas operações no Brasil. Criado em Londres em 1862, com um capital inicial de 1 milhão de libras esterlinas, realizava transações de remessas bancárias e empréstimos. Voltou-se, lucrativamente, as transferências bancárias de portugueses radicados no Brasil os quais enviavam valores para Portugal. Nesta circulação monetária entre Londres, Brasil e Portugal, também foi criado o The Brazilian and Portuguese Bank Limited (nas cidades de Lisboa e Porto).

      Conforme Eugenio Lagemann (A História do Sistema Financeiro no RS e no Uruguai dos primórdios até 1931. Porto Alegre, Segundas Jornadas de História Econômica), o Rio Grande do Sul conheceu o seu primeiro banco comercial em 1858, quando da fundação, em Porto Alegre, do Banco da Província do Rio Grande do Sul. Porém, o primeiro estabelecimento bancário a operar no Rio Grande do Sul, foi a agência do Banco Mauá, em Rio Grande, em 1851-1852. Os bancos estrangeiros se fizeram presentes poucos anos depois, a partir de 1863, igualmente em Rio Grande, através do “London & Brazilian Bank”. A partir de 1888 este banco também operou em Porto Alegre. Seus negócios ligavam-se à exportação de subprodutos da pecuária e ao financiamento de obras de infra-estrutura. Segundo Lagemann, em 1919, o National City Bank of New York abriu filiais em Porto Alegre e Rio Grande, devido à instalação de empreendimentos frigoríficos e de comercialização de subprodutos de petróleo com origem americana. Também neste ano chegou a Porto Alegre o London & River Plate Bank, que ampliou, em 1920, sua rede para Pelotas e Rio Grande. Da fusão desta instituição com o London & Brazilian Bank resultou, em 1923, o Bank of London & South America, que passou a ser o banco estrangeiro, naquele período, com maior volume de negócios no mercado gaúcho. 

      No ano de 1916, evidenciando a importância econômica do único porto marítimo do Rio Grande do Sul, o London & Brazilian Bank mantinha-se atuante na cidade. Aqui estabelecido desde 1863, estava desde o final do século XIX, estabelecido no Sobrado dos Azulejos (construído pelo comerciante Antônio Bonone Vianna entre 1862-64).
     A fotografia reproduzida do livro de Monte Domecq (O Estado do Rio Grande do Sul, 1916), mostra a sede em Rio Grande. 

LAWSON, SON & CIA

Antigas empresas, de diversas nacionalidades, instalaram-se em Rio Grande desde o século 19. A presença inglesa também aqui se expressou no comércio de exportação e importação, em negócios bancários e de seguros. A Lawson, Son & Cia é uma destas empresas centenárias que, devido à edificação do porto marítimo, desenvolveram suas atividades na cidade do Rio Grande. Monte Domecq (O Estado do Rio Grande do Sul, 1916), registrou a atuação deste empreendimento durante a Primeira Guerra Mundial, registrando em fotografias as vistas externa da empresa e interna da casa bancária.

“Pela sua situação, a cidade do Rio Grande é a porta por onde o comércio e a indústria do Estado comunicam com os outros Estados da União e com o estrangeiro; é a válvula que regulariza os fenômenos de absorção e de ressorção do organismo econômico. É, pois, muito natural que importantes casas tenham estabelecido a sua base de ação nesta cidade desde onde podem radiar ativamente sobre o interior do Estado e sobre os mercados estrangeiros, pelo jogo de um intercâmbio interessando as faculdades consumidoras e exportadoras do sul do país. Entre estas casas, uma das mais antigas e que gozam mais sólido crédito, é a que foi fundada, em 1842, pelos srs. Hughes Brothers e que trabalha hoje sob a razão social de Lawson, Son & Cia. Os seus confortáveis escritórios estão instalados na rua Marechal Floriano  Peixoto, nº 67, sendo a sociedade composta dos srs. George Lawson, Edward E. Lawson e Edward M. Byrne.
As operações da firma abrangem todos os negócios de importação e de exportação que interessam intercâmbio com a Europa, atingindo as suas transações sobre esses artigos proporções que poucas casas podem igualar.
Além dessa secção de importação e exportação, a firma Lawson, Son & Cia é agente de um poderoso grupo de Companhias de grande influência e de reconhecida potência, entre as quais devemos citar os dois estabelecimentos de crédito London & River Plate Bank Lt e The British Bank of South America Lt, cujas operações tomaram tamanho desenvolvimento em todo o Brasil e principalmente nestas regiões e que tão poderosamente tem facilitado as relações econômicas entre estes mercados e os grandes centros europeus.
A firma é agente nesta praça da célebre Cia de Navegação The Royal Mail Steam Packet Company, cuja numerosa frota, compreendendo uma série de unidades de grande tonelagem e providas de todos os elementos que o conforto e o luxo moderno os mais requintados podem oferecer aos passageiros, é a mais poderosa das que visitam a América do Sul, não só do lado do Atlântico mas também do Pacífico.

Entre as outras firmas estrangeiras que a casa representa, convém citar a poderosa e mundialmente conhecida Alliance Insurance C. Lt., uma das mais solicitadas organizações seguradoras do universo e a rica Portland Cement Associated C. Lt., que importa neste país enormes quantidades de cimento Portland.  

A PRESENÇA NORTE-AMERICANA

O capital norte-americano se fez presente na cidade do Rio Grande através do comércio de exportação e importação. Um exemplo desta atuação é a empresa Thomsen & Cia, que no ano de 1916, tinha como sócios o comendador Hugo Thomsen, H. Riedel e Gustav Feddersen , sendo os dois primeiros de nacionalidade norte-americana e o último alemão. Sua sede ficava na cidade de Nova Iorque.
O empreendimento tinha uma história muito mais longa. A casa comercial Thomsen & Cia foi fundada em 1845 pelo Barão Christian de Thomsen, Gustav Von Lind e Frederico Sassenberg. Em 1851, entraram na empresa Luis von Loesel  e Oscar von Lind, passando a chamar-se Thomsen, Loesel & Lind. Até 1860 a casa matriz era em Rio Grande sendo a sede transferida neste ano para Nova Iorque. Com a entrada, em 1873, dos sócios Gustav Feddersen e Hugo Thomsen surgiu a Thomsen & Cia. Desde 1911, Gustav C. Feddersen era o gerente em Rio Grande. Os escritórios funcionavam na rua Marechal Floriano nº91-93 e os amplos depósitos nos números 7-9-11-13 da rua Marechal Andrea. A fachada de um destes depósitos ainda existe.

O setor de exportações, que apresentava um avultado movimento de capital, estava voltado aos produtos pecuários (couros, sebos, ossos, cinzas, chifres etc), exportação de lã para o Uruguai e de fumo. As importações abrangiam uma ampla gama de produtos, tais como ferragens, máquinas industriais para a indústria e agricultura, cimento, breu, carvão, secos e molhados de variada procedência, sal para as charqueadas e saladeros. São produtos oriundos da América do Norte, de Hamburgo, de Londres, de Liverpool etc. A empresa era agente da Companhia Inglesa North British & Mercantile Ins. C. Led., uma das maiores seguradoras da Europa.

BOLACHAS LEAL, SANTOS & CIA

Entre as empresas que foram fundadas em Rio Grande e que tiveram uma marcante difusão de seu nome está a Leal, Santos & Cia. O capital português foi aplicado neste empreendimento fundado em 1889 enquanto filial portuguesa mas que se emancipa no ano de 1906. Do Amazonas a República Oriental do Uruguai, as bolachas, biscoitos e conservas Leal, Santos & Cia, eram amplamente difundidas. Dos produtos populares aos mais sofisticados, a empresa foi presente nos diferentes mercados brasileiros.
A Fábrica de biscoitos instalada em Rio Grande, ocupava um imenso prédio que era dividido em várias secções que recebiam a matéria-prima e finalizavam na etapa de empacotamento dos produtos. O setor de latoaria e estamparia, recebia a folha de Flandres da Inglaterra. A impressão litográfica das latas e sua confecção eram feitas no atelier especial organizado por Manuel Marques Pancada. Além das latas para biscoitos e conservas, eram fabricadas cápsulas para garrafas.
Na fabricação de bolachas e biscoitos, eram empregadas matérias-primas selecionadas. Os fornos para cozimento dos biscoitos eram de sistema contínuo e de fabricação inglesa. Eram três fornos que produziam 800.000 quilos por ano.  

As bolachas eram vendidas embrulhadas em papel celofane, em latas ou em armazéns a granel (em embalagens feitas com folha de flandres). Até a década de 1940, a bolacha Maria, água e sal, champagne, chocolate e outras, eram as mais vendidas do Brasil. Também produzia semolina fosfatada. A fábrica chegou a empregar até 600 operários, com significativa participação de mulheres. Nas proximidades da fábrica, vinte casas foram construídas para moradia de operários.

O SELF MADE MAN

A casa importadora Abel Asti & Cia foi fundada em agosto de 1893 pelo brasileiro Abel Asti e pelo português Antonio Alves de Almeida. Operavam com muitos produtos de secos e molhados vendidos em grandes volumes. As importações vinham diretamente da França, Inglaterra, Alemanha, Espanha, Portugal, Itália, Uruguai etc. Os produtos tinham destino clientes do interior do Rio Grande do Sul. A casa comercial ficava na rua Riachuelo e os navios de carga poderiam fazer a descarga no cais do Porto Velho, em frente ao estabelecimento comercial. A casa era representante da sociedade nacional de seguros ‘Garantia da Amazonia’, sediada no Pará.
Monte Domecq assim descreveu o comerciante radicado na cidade do Rio Grande: “O sr. Abel Asti é a perfeita realização do que os ingleses, bons entendedores da matéria, chamam o ‘self made man’, o filho de sua obras. Nascido em Bagé, em 1874, entrou, com a idade de 14 anos, no comércio de secos e molhados. Trabalhador inteligente e ativo, não tardou em libertar-se da tutela estrangeira e se estabeleceu por conta própria, no mesmo ramo de secos e molhados a varejo. Trabalhou durante três anos, até 1893, sob o seu nome individual e foi nesta data que se associou com o sr. Antonio Alves de Almeida para fundar a casa atual que se conta entre as mais fortes e progressistas desta adiantada praça” (Monte Domecq, O Estado do Rio Grande do Sul, 1916).

 As fotografias do livro de Domecq, congelaram no tempo este passado que já não existe. Flagrantes do vestuário, dos utensílios de uma casa abastada, da fachada do prédio na rua Riachuelo e dos produtos dispostos na casa comercial, nos remete a um referencial do que seria progresso comercial e status social para a elite ligada ao comércio. 

A REVOLUÇÃO COMERCIAL

A constituição de um grupo mercantil no Rio Grande do Sul esteve ligado aos interesses de negociantes do Rio de Janeiro neste comércio e nas transações com a Colônia do Sacramento. Segundo Helen Osório, as vinculações econômicas e sociais dos negociantes da praça do Rio de Janeiro com o espaço do Rio Grande de São Pedro remontam a 1737, data da fundação do primeiro estabelecimento oficial português, e a todo esforço de manutenção da Colônia do Sacramento como entreposto do comércio luso-brasileiro. As exportações de charque, couro e trigo, através do Porto da Vila do Rio Grande tornaram-se relevantes em nível de abastecimento interno da América Portuguesa a partir da década de 1780. Esta circulação representou de 28 a 49% do valor das exportações (com exceção dos metais preciosos) do Rio de Janeiro para Portugal no período de 1802 a 1807. Excetuando-se os couros, cujo mercado central era a Europa, os produtos oriundos da Capitania do Rio Grande de São Pedro distribuíam-se pelas praças do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. A produção destinada ao mercado interno colonial, garantia um maior equilíbrio desta demanda frente às crises econômicas internacionais que envolviam a exportação para Portugal. Se o maior comprador de charque sulino foi a Bahia, o principal parceiro comercial foi o Rio de Janeiro, pois para esta cidade dirigia-se a maioria do trigo e produtos agrícolas, provindo do Porto do Rio de Janeiro, dois terços dos escravos importados pela Capitania do Rio Grande, além de produtos têxteis e manufaturas européias.
Para a historiadora Helen Osório, os principais negociantes do Rio Grande do Sul eram majoritariamente externos à Capitania e foram correspondentes ou momentaneamente sócios dos homens de grosso trato do Rio de Janeiro. Foi comum a constituição de sociedades comerciais entre irmãos, como é o caso José Antônio Guimarães estabelecido no Rio de Janeiro e Manuel José de Oliveira Guimarães, que transferiu-se para a Vila do Rio Grande após 1796. Manuel casou-se na Vila e morreu em 1812. Tornara-se um dos maiores comerciantes da região e charqueador, possuindo 135 escravos, porém, continuava dependente dos capitais do irmão que comerciava no Rio de Janeiro. A forte praça comercial carioca, apresentava uma elite mercantil mais antiga e rica, que monopolizava o setor financeiro estabelecendo a dependência de segmentos econômicos periféricos. As instabilidades econômicas e as dificuldades de implementação do capitalismo liberal, fizeram com que a elite mercantil diversificasse os investimentos para fugir de uma falência total ao aplicar todos os capitais num ramo específico de negócios. Um exemplo desta diversificação são os comerciantes-charqueadores que possuíam lojas, barcos, produziam charque, emprestavam dinheiro, além de possuírem atividades ligadas a estância e a produção agrícola.

O COMÉRCIO NA VILA DO RIO GRANDE
          Conforme Maria Luiza Queiróz, o desenvolvimento da Freguesia e Vila do Rio Grande nas duas primeiras décadas do século XIX esteve, sem dúvida, vinculado estreitamente à expansão da região pelotense, mas o seu desligamento não trará efeitos sensíveis sobre a dinâmica de sua evolução. Prevalece, até o fim do período colonial, a centralização das atividades econômicas da Capitania em torno da pecuária e do charque, cujas transações comerciais eram centralizadas no porto e Vila do Rio Grande. Através do porto, Rio Grande garantiu um considerável nível de desenvolvimento, que refletiu-se no crescimento da área urbana. Este desenvolvimento ganhou um vulto assombroso se consideradas as críticas condições que marcaram sua existência ao longo dos mais de setenta anos decorridos desde sua fundação e, sobretudo, se levado em conta que as suas condições físicas adversas prevalecem, ainda, nesta fase de prosperidade.
Para Queiróz, no início do século XIX, Rio Grande é o principal centro de comércio da Capitania, estando o crescimento sócio-econômico ligado diretamente ao movimento portuário, o qual repercute num aumento da demanda de serviços portuários e de reparos de navios o que constitui uma fonte de geração de empregos. Surgiu uma elite comercial muitas vezes associada aos setores de produção do interior da Freguesia ou da Capitania. A formação desta elite remonta a década de 1780 contando a Vila, no ano de 1808, a presença de quarenta comerciantes. Desses, a preponderância é de portugueses seguidos de comerciantes oriundos da Colônia do Sacramento, do Rio de Janeiro, de Viamão e  da Ilha de Santa Catarina. Dos três comerciantes restantes, um era espanhol, um era italiano e somente um era natural da Freguesia do Rio Grande. John Luccock considerou Rio Grande como “o maior mercado do Brasil Meridional” destacando que os principais negociantes da Capitania estavam estabelecidos na Vila. Segundo a autora, nenhum exagero incorre na afirmação de que todo o progresso e desenvolvimento da Vila do Rio Grande adveio da sua função comercial e da ação interessada e direta de seus comerciantes, diante de seus problemas mais graves, substituindo a inércia a que a Câmara local se via obrigada em razão de contar com rendimentos que não garantiam, sequer, a sua própria manutenção.
           No ano de 1822, a Vila estava constituída por vinte e quatro lojas de fazendas, quinze armazéns de atacado, três boticas, dois ferreiros, dois tanoeiros, dois ourives, duas lojas de louça, dois latoeiros e um caldeiro, estando a maior parte destas casas  comerciais situadas na rua da Praia, junto ao porto. As melhores residências construídas com tijolos e lenhas, trazidos de Porto Alegre, e várias com sacadas e balcões de ferro, pertenciam aos comerciantes. Neste ano, haviam seis ruas principais correndo paralelas ao porto, cruzadas por becos estreitos, inexistindo calçamento. A presença da areia dificultava inclusive o deslocamento dos pedestres ou carroças, e no caso de fortes ventos, o comércio era obrigado a fechar as portas. A população pobre, ocupando cabanas feitas de barro e cobertas de palha, habitavam o setor antigo da Vila, constituído por quatro ruas paralelas e becos. 
             Em 1823, foram concluídas as obras de construção do porto e a dragagem do cais, permitindo que navios com mais de duzentas toneladas, que até então só tinham acesso ao Porto de São José do Norte, ancorassem no Porto da Vila do Rio Grande. Foram obras realizadas com a participação financeira dos comerciantes da Vila, os quais estiveram envolvidos também em outras obras públicas como a edificação de um teatro. O papel comercial, nos primórdios do século XIX, superou a função militar da Vila. Até o símbolo inicial da ocupação bélica, o desativado Forte Jesus-Maria-José, passou a sediar um semáforo sinalizador para os navios que navegavam pela barra. Para John Luccock, os canhões herdados dos espanhóis que ainda encontravam-se no Forte, foram montados sobre carretas que estavam colocadas num círculo suficientemente distante do canal para não causar o mínimo aborrecimento a um inimigo que se aproximava e se desmantelariam ao primeiro disparo.

          O ritmo comercial da Vila redefine o seu papel histórico de praça militarizada passando para centro portuário de escoamento de toda produção da Capitania dirigido ao mercado interno brasileiro. Como observou Auguste de Saint-Hilaire, a Vila era o centro de considerável comércio de carne seca, de couros, sebo e trigo. Negociantes ricos os há em quantidade; o mobiliário das casas e a aparência dos homens demonstram em geral a abastança deste grupo comercial. 
Ilustração: Porto Velho no final do século XIX. Biblioteca Rio-Grandense.


A CAPITANIA DE SÃO PEDRO E O PORTO DO RIO GRANDE EM 1808

Os escritos deixados por Manoel Antonio de Magalhães (Manoel Antonio de Magalhães. Reflexões políticas interessantes sobre o estado atual da capitania do Rio Grande de São Pedro. Datado de 20 de julho de 1808. In: FREITAS, Décio. O Capitalismo Pastoril. Porto Alegre: EST, 1980, p. 74-102) permite contextualizar o desenvolvimento da Capitania para entender o momento vivido pela Vila e pelo porto do Rio Grande há duzentos anos atrás. Era o ano da vinda de D. João para o Brasil trazendo a Corte portuguesa que fugia da invasão napoleônica. Abertura dos portos e momento de mudança na própria dinâmica do sistema colonial. Em certo sentido, podemos dizer que era o início da decadência do Brasil colonizado e o nascimento do Brasil Independente.

MAGALHÃES, O CONTRATADOR

     Manoel Antonio de Magalhães nasceu em São Bartolomeu da Vila Flor, Portugal, em 1760. Fixou moradia no final do século XVIII em Porto Alegre, exercendo a partir de 1802 funções de administrador do quinto e dízimo, sendo conhecido pela população como Magalhães, o contratador. Faleceu no ano de 1830. Na condição de contratador, Magalhães voltava-se aos interesses fiscais da Coroa Portuguesa que entrava num período de mudanças no pacto colonial metrópole-colônia, afinal, a Coroa Portuguesa está instalada no Brasil a partir de 1808.
    Magalhães elaborou o ensaio dedicado a D. João Reflexões Políticas... onde analisou diferentes aspectos da capitania dos Rio Grande de São Pedro nos primórdios do século 19. Conforme sua definição “a grande experiência que em seis anos colhi na administração dos contratos do quinto e dízimo e municio da tropa de toda a capitania, em que igualmente fui sócio (...) me fez conhecer algumas coisas...”. 
Magalhães observa que a Vila do Rio Grande é a maior da Capitania, com mais de dois mil fogos e nove mil almas, rendendo anualmente de dez para onze mil cruzados. Já a Vila de Porto Alegre sobe de mil e duzentos fogos e seis mil almas, e rende anualmente de seis a sete mil cruzados”.
A atividade pecuarista-charqueadora passava por um período de crise pois uma arroba de carne salgada na Capitania custava 440 a 480, mais fretes e direitos sendo vendido em Porto Alegre por 720. Porém, diariamente chegava de Montevidéu charque por 400 a 480 colocando “em precipício todo o comércio desta capitania, que bem se deve ser a maior força dele a carne, por isso parece que a exportação de gênero de um país estrangeiro deve ser proibida, a querer salvar esta capitania do abismo em que se vai precipitar. Continuando a entrar nessa a sobredita carne”.
Outros problemas afligiam a pecuária. Um deles era à escassez de sal que chegava a um consumo anual de 200 mil alqueires na Capitania. Magalhães considera que deveria ser exploradas salinas em Cabo Frio, na Paraíba, Pernambuco e no Assú. Outro problema era o do contrabando de gado: “É bem verdade que pode haver alguma fraude na entrada por exemplo: em lugar de cinqüenta entraram cem e não pagar senão cinqüenta, por serem os campos largos e os homens que nisto traficam pela maior parte pouco escrupulosos”. O rebanho era constituído de 75% de gado selvagem e criado de forma extensiva, propondo o contratador que os fazendeiros fossem obrigados a fazerem nas suas fazendas os rodeios nos seus gados. Somado a isto, ocorrida à venda de escravos para países platinos, prática que era criticada pelo Contratador: “jamais se deverá consentir a exportação do domínio de toda a América portuguesa escravo algum, pois não só é enfraquecer as nossas colônias (...) mas dar forças ao inimigo, ao mesmo tempo que todas as nossas capitanias se acham na maior necessidade deles...”.
As atividades econômicas tinham como centro a criação de gado e as charqueadas, porém, o autor defende a diversificação produtiva com a agricultura, coleta e atividades artesanais. Considerava que o clima é o melhor do mundo com ares muito puros e sadios, estando ausente epidemias. Havia terras férteis que produziam quase todas as frutas da Europa, mais inferiores em qualidade, mas toda a casta de grãos, hortaliças, couve-flor, brotos, repolhos, alface. “Tem esta capitania de mais a mais o que não tem as outras, a vantagem de muito trigo, couros e carnes que produz. Há muito leite de vaca, cabras e ovelhas, e destas últimas se não faz caso, mas, ou seja, dos pastos onde o não saberem fazer os queijos e manteigas, jamais chegam a fazer-se como os da Irlanda...”. Magalhães lamentava que poucas pessoas criavam porcos pois o plantio de milho, abóbora e legumes para alimenta-los era viável. Ressaltava que a produção de cana-de-açúcar produzia uma boa aguardente mas o açúcar, pela falta de engenhos, era de baixa qualidade. “O arroz é muito bom e de excelente gosto, produz muito bem, mas, não se cuida dele e antes se compra o de fora. Tem várias madeiras de construção, não são tão boas como as do norte do Brasil. Sei que há seis ou sete pés de oliveira na capitania e que se dão muito bem se as plantassem. Em um pé vi eu mesmo azeitonas maduras sem diferença das nossas de Portugal; mas como leva anos, a formar-se, e há muita preguiça e falta de indústria, não se cuida deste grande ramo de comércio que ao diante seria de muitas vantagens”.
A renda da capitania excedia trezentos mil cruzados. Entram pela barra anualmente de 230 ou 240 embarcações de seis, oito, até doze mil arrobas, e todas saem carregadas. Há continuamente navegando nos rios acarretando as cargas os ditos barcos a mais de cem iates, ou canoas, que carregam de 1000 a 1500 arrobas. A importação no ano de 1804 para esta capitania chegou a novecentos e trinta contos, subindo a exportação a 1111 contos. No ano de 1805 chegou a importação a montar 1058 contos e a exportação a 1215 contos. Nos anos de 1806 chegou a importação a 1163 contos e a exportação a 1057 contos. No de 1807 chegou a importação a 1217 contos e a exportação a 1109 contos. Magalhães encerra o seu ensaio ressaltando que a Capitania necessitava muito da ajuda de Sua Majestade para o seu desenvolvimento, investimento que no futuro seria de grande utilidade para o monarca.

       Magalhães publicou uma relação de comerciantes que atuavam na Vila do Rio Grande de São Pedro há duzentos anos atrás, observando-se entre outros Fernandes Braga que era o presidente da Província quando da eclosão da Revolução Farroupilha e Francisco Marques Lisboa, pai do Almirante Tamandaré: “Antonio Francisco dos Anjos, Antonio Francisco dos Santos Abreu, Antonio Gomes Rosa da Cunha, Antonio Rodrigues Fernandes Braga, Antonio de Sá Araújo, Agostinho Moreira Machado, Baltazar Gomes Viana, Carlos Cosme dos Reis, Cipriano Rodrigues Barcelos, Domingos Velho da Silva, Domingos Rodrigues, Domingos de Castro e Antiqueira, Francisco Marques Lisboa, Francisco Barbosa Ferreira, Francisco Ferreira Barbosa, Hipólito José Fernandes, José Vieira da Cunha, José Pinto Martins & Comp., Joaquim José da Cruz Secco, José Thomaz da Silva, José Rodrigues de Barcelos, João Francisco Vieira Braga, José Vieira Lima, José Antônio de Bitancourt, Justino José de Oliveira, José Duarte Nunes, José de Barros Coelho, José Ferreira de Araújo, José de Souza, Ignácio dos Santos Abreu, Padre José Martins Chaves, José Joaquim Bezerra, José de Freitas Guimarães, Miguel Cunha Pereira, Matheus da Cunha Teles, Manoel Ferreira Nunes, Manoel José da Silva Guimarães, Manoel Álvaro de Morais, Manoel Albino Rodrigues de Carvalho, Manoel José de Oliveira Guimarães, Nicolau Cosme dos Reis, Paulino Gomes de Seixas".

O VINHO DA ILHA

A Ilha dos Marinheiros tem uma história vinícola pioneira, que recua a década de 1840, quando das experimentações com a usa ‘Isabel’, importada dos Estados Unidos pelo comerciante radicado em Rio Grande Thomas Messiter. Estas primeiras mudas de videira Isabel teriam sido enviados de Washington por José Marques Lisboa e recebidos por Messiter. Quando, no ano de 1865, ocorreu a visita do Conde D’Eu a Rio Grande, foi oferecido o vinho da Ilha dos Marinheiros durante os jantares. O jornal Echo do Sul do dia 18 de janeiro de 1912, com entusiasmo, destacou a vinda de um renomado agrônomo da época na expectativa de que o vinho da Ilha tivesse subsídio do governo federal buscando ampliar os negócios. Quase trinta anos depois, a grande enchente de 1941 traria grandes prejuízos também a esta atividade desenvolvida na Ilha. O documento jornalístico do momento que se vivia a atividade vinícola, a cem anos atrás, deixou o seguinte registro.  
“Dr. Gomes do Carmo. Visita importante à Ilha dos Marinheiros. O sr. dr. Gomes Carmo, distinto agrônomo brasileiro, que depois de formado, teve ainda dois anos de assistente em altos estudos da sua especialidade na escola de Montpellier, França, esteve anteontem na Ilha dos Marinheiros, de onde regressou ontem de manhã. Achando-se na secretaria desta redação o nosso prezado amigo o sr. João de Saldanha, na mesma ocasião em que o sr. dr. Gomes Carmo nos deu o prazer da sua visita, conforme a nossa notícia de anteontem, foram os dois apresentados e, logo, o segundo fez uma apelo gentil ao primeiro no sentido de o acompanhar na sua digressão a referida Ilha, visto serem ambos do ofício e ter assim com quem poder conversar em assuntos da missão que ali o levava.
Combinaram-se as coisas de modo que o sr. João Saldanha, não podendo sair da cidade a hora em que o dr. Gomes Carmo partia, em gasolina, com o dr. Carlos Pinto e o major Rodrigo de Souza, faria, entretanto, todo o possível por corresponder a gentileza do convite, indo a Ilha, embora mais tarde, como foi, e ali se encontrariam como de fato se encontraram. É assim que a viagem de estudo do dr. Gomes teve duas fases: uma, com os primeiros dois companheiros, na costa sul da Ilha; outra com o sr. João Saldanha na costa norte, onde estão localizadas as melhores chácaras e as terras em geral são muitíssimo superiores as da costa primeiramente indicada. O sr. dr. Gomes Carmo ficou maravilhado com os produtos das culturas, tanto na totalidade como na qualidade; admirou os vinhedos na exuberância do fruto, muito e belamente desenvolvido; no vigor geral da vara, mau grado a invasão do mildium, em alguns lugares, e sobretudo da anthracnose, devido, em grande parte, diga-se a verdade, a descuidos imperdoáveis do agricultor, que não sulfata em tempo competente nem tantas vezes quantas a vinha necessita.

Em relação às terras, o dr. Gomes Carmo aconselhou, com muito critério científico, o emprego da cal e dos fosfatos (cal hidratada e cinza de ossos) ou de cal de marisco, na qual existe em comum o carbonato e fosfato. Na mesma ocasião e em presença do dr. Gomes Carmo, provou o sr. João de Saldanha, vir dando, há muitos anos, o mesmo conselho, além de outros, as mesmas pessoas que ali se achavam presentes. O dr. Gomes Carmo tudo viu, enfim, e examinou de visu com calma de profissional apaixonado e perito. Finda a inspeção das terras, dos frutos e plantas (...) foram tiradas das competentes pipas e na presença do ilustre visitante, quatro diferentes amostras de vinho, tinto e branco, todo de uva Isabel, desde o superior vinho de mesa, como não há igual no município, nem no estado, até ao tipo da mais fina malvasia para sobremesa de entendidos. O dr. Gomes elogiou muito todos os tipos, fixando mais a sua ponderosa e meditada atenção sobre os brancos, que aliás são de fabricação menos difícil e menos trabalhosa. Da adega passou-se à secção de destilação, anexa mas independente, e aí apreciou a aguardente só de bagaço e borra, que achou, e realmente é, verdadeira especialidade. Aguardente exclusivamente de vinho não havia mais na ocasião. S.S. gostou da disposição da casa, da montagem dos aparelhos e do alambique, que destila uma pipa de cada vez; e referindo-se de novo a dita aguardente, disse achá-la muito superior a muito cognac que por aí se apregoa como artigo de primeira qualidade. De volta a residência, o Gomes Carmo fez a última prova num vinho de vinte e um anos, que o sr. Saldanha fabricou, também de uva Isabel, e que obteve medalha de ouro na última exposição do Rio de Janeiro. S.S., com quanto seja de um temperamento nervoso, não é de arroubamentos. Por estudo ou por ciência própria das coisas, vê e observa com calma prudente e ponderada e por essa razão as suas opiniões são mais apreciáveis. Depois de ter levado a espaços, o dito vinho ao crisol do paladar, apenas disse e foi o bastante: - O melhor vinho da região de Málaga, não é melhor do que este. Isto não é mais vinho, é um licor finíssimo. Em nome dos agricultores da Ilha dos Marinheiros, pedimos ao sr. dr. Gomes Carmo que, pairando como paira lá pelas alturas do Ministério da Agricultura, se interceda por eles quanto em si caiba, de modo que tanto esforço ali despendido, que só conta com a própria iniciativa, seja contemplado na proporção dos seus merecimentos e das suas necessidades.”