Um dos escritos mais reflexivos/intimistas que
já li sobre a cultura gaúcha é A Estética do Frio de Vitor Ramil. A questão
da identidade fustiga o texto que busca a compreensão dos aportes de construção
dos referenciais culturais rio-grandenses. O frio, a milonga, os laços com o
Prata e as estranhezas com certas expressões culturais brasileiras mantém os
rio-grandenses num portal de unidade e diferenciação frente a um Brasil
múltiplo em práticas culturais e visões de mundo. Se de um lado o politicamente
correto prega/impõe que a diversidade é essencial de outro não dilui/sufoca a
busca pela definição da identidade e o sentido existencial.
Em meio aos sentidos difusos alguns
referenciais do imaginário rio-grandense marcam nossa trajetória: o frio e a
milonga. O ar congelado nos poros e a sonoridade que se confunde com a paisagem
do pampa é uma persistência marcante nesta busca de definição. Avancemos um
pouco mais nesta reflexão numa visita guiada por um mestre em sensibilidade:
Vitor Ramil.
“Assim
como o gaúcho e o pampa, a milonga é comum a Rio Grande do Sul, Uruguai e
Argentina, inexistindo no resto do Brasil. A discussão em torno de sua origem expressa
bastante bem sua relevância no encontro dessas três culturas: há teses para sua
origem rio-grandense, sua origem argentina e sua origem uruguaia; sua
ascendência ora é portuguesa, ora espanhola, ora latino-americana mesmo, mais
especificamente cubana. Para o compositor uruguaio Alfredo Zitarrosa, que
chamava a milonga de blues de Montevideo, a capacidade de fundir-se a outros
gêneros sem dificuldade era uma de suas características; o argentino Atahualpa
Yupanqui afirmava que as formas possíveis da milonga seriam tantas quantas
fossem as possíveis formas de tocá-la. Do lado de cá das fronteiras,
modestamente, eu a associava à imagem altamente definida do gaúcho e do pampa.
A milonga me soava uma poderosa sugestão de unidade, a expressão musical e poética
do frio por excelência. A milonga, que estivera sempre no fundo das minhas
escolhas como uma voz íntima, à espreita, agora se fazia ouvir mais claramente.
Eu a percebia como uma forma musical simples e concisa a serviço do pensamento
e das palavras – o vocábulo milonga é de origem africana, plural de mulonga,
que significa “palavra”. Existe a milonga para dançar, alegre, em tom maior,
apropriada ao som forte do acordeom. Mas eu estava pensando na milonga pampeana
ou campeira, ou ainda milonga-canção, como for, quase sempre em tom menor;
simples e monótona, segundo a definição de um dicionário; lenta, repetitiva,
emocional; afeita à melancolia, à densidade, à reflexão; apropriada tanto aos
vôos épicos como aos líricos, tanto à tensão como à suavidade, e cuja espinha
dorsal são o violão e a voz. Uma forma que, quanto mais dela se extraísse, mais
expressiva ficaria. Que outra, se não essa, escolheria o gaúcho solitário da
minha imagem para se expressar diante daquela fria vastidão de campo e céu? Que
outra forma seria tão apropriada à nitidez, aos silêncios, aos vazios? Em sua
inteireza e essencialidade, a milonga, assim como a imagem, opunha-se ao
excesso, à redundância. Intensas e extensas, ambas tendiam ao monocromatismo, à
horizontalidade. O frio lhes correspondia aguçando os sentidos, estimulando a
concentração, o recolhimento, A Estética do Frio 23 o intimismo; definindo-lhes
os contornos de maneira a ressaltar suas propriedades: rigor, profundidade,
clareza, concisão, pureza, leveza, melancolia. Isso significava que uma
estética do frio resumir-se-ia à forma da milonga? Não. Eu não era o gaúcho
altamente definido da imagem. Significava que, por sua poderosa sugestão
formal, a milonga, na descrição mais generalizante a que se pudesse chegar de
uma estética do frio, não estaria nunca menos que na subjacência. E não só pela
sugestão formal, também por ser um elo entre Rio Grande do Sul, Uruguai e
Argentina e por sua popularidade e presença no imaginário dos rio-grandenses,
característica esta que fazia dela uma justa e comprovada expressão da nossa
sensibilidade, das nossas contrapartidas frias que, não obstante nos definirem
e distinguirem, apareciam sempre aguadas perante o colorido local
artificialmente avivado da nossa caricatura. Em muitas oportunidades,
deparei-me com exemplos claros do alcance da milonga entre nós: emoção,
lágrimas ou a confissão de um “estranho sentimento de patriotismo” de
rio-grandenses criados na capital ou até mesmo longe do estado, gente sem
nenhuma relação direta com o interior e a cultura campeira. Eu mesmo nasci e me
criei no litoral, vivi sempre em grandes cidades. O fato de compor milongas,
por si só, já evidenciaria sua presença em meu imaginário. Mas não foram poucas
as vezes em que, ao compor, me pus a chorar. É significativo que, em um país em
que as músicas representativas das regiões sejam em sua maioria um convite à
rua, à alegria, à dança, à extroversão, a milonga, e seu chamado à
interioridade, seja a que fala de nós rio-grandenses com mais propriedade.
Aqueles roqueiros e nativistas que se odiavam não deixariam de encontrar nela
um ponto de contato.
Ao me reconhecer no frio e reconhecê-lo em
mim, eu percebera que nos simbolizávamos mutuamente; eu encontrara nele uma
sugestão de unidade, dele extraíra valores estéticos. Eu vira uma paisagem
fria, concebera uma milonga fria. Se o frio era a minha formação, fria seria a
minha leitura do mundo. Eu apreenderia a pluralidade e diversidade desse mundo
com a identidade fria do meu olhar. A expressão desse olhar seria uma estética
do frio” (http://www.vitorramil.com.br/textos/Vitor_Ramil_-_A_Estetica_do_Frio.pdf).
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