Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

A COLEÇÃO RIO-GRANDENSE

O campo historiográfico em Rio Grande recebeu duas contribuições de destacada relevância nos estudos Brasil/Portugal. A Coleção Documentos (convênio Biblioteca Rio-Grandense e CLEPUL/Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) foi lançada em 2016 e já foram publicados 10 títulos somente no ano passado.
         No próximo dia 24 de agosto, às 17h na Biblioteca Rio-Grandense, será feito o lançamento dos dez primeiros livros da Coleção Rio-Grandense um convênio entre a Cátedra Infante Dom Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos e a Globalização e a Biblioteca Rio-Grandense. Esta enriquecedora aproximação com a historiografia portuguesa é fruto das pesquisas de Pós-Doutoramento do prof. Francisco das Neves Alves realizada na Universidade de Lisboa. Um empreendimento solitário e feito do próprio bolso, o Pós-Doutoramento no exterior, resultou em dois convênios que permitirão a publicação de dezenas de livros em meio magnético ou impresso.

Quatro capas destes livros estão sendo aqui reproduzidas. O lançamento dos livros é o fechamento do IV Seminário Internacional para pensar a pesquisa histórica: Estado Novo, evento que será realizado de 22 a 24 de agosto. O Seminário é comemorativo dos 171 anos da Biblioteca Rio-Grandense e que conta com o apoio da Secretaria de Município da Cultura/Prefeitura Municipal do Rio Grande.   






O CASSINO NAS ONDAS DO TEMPO

O Cassino ainda tem muito a ser descoberto: desde fotografias do passado até novos olhares visuais no presente. É uma história de longevidade temporal secular e repleta de experiências culturais e sociais. Imagens, documentos, oralidades, patrimônio edificado, adornos num pátio ou tantas outras evidências, são possibilidades de pensar e falar em infinitas histórias vividas por gerações.  Assim como a cidade rememora os seus 280 anos de Fundação, o Cassino continua a ser um objeto passado/contemporâneo que permite ampliar/aprimorar a nossa estética/sensibilidade para o convívio civilizatório.
As fotografias da Exposição “Nas Ondas do Tempo: 127 anos do Balneário Cassino” propiciam pensar de forma multifacetada nas dinâmicas de construção e desconstrução do espaço urbano e das sociabilidades num período que abrange da Belle Époque (quando nasceu o balneário) até a modernidade não realizada plenamente e os laivos de pós-modernidade no presente.  
A organização é do Centro Municipal de Cultura Inah Emil Martensen, coordenado por Janice Hias. Os fotógrafos Aldivo Mendes, Célia Pereira, Diego Balinhas, Eliane Macedo, Moraina Ramos, Paula Liorama, Rejane Torres, Rodrigo Valentini, Rômulo Oliveira e Tânia Zuchetti, nos contemplam com olhares diferenciados do primeiro balneário planificado do Brasil. Edificações, ruínas e memórias fazem parte destas imagens.

A exposição pode ser visitada até o dia 29 de agosto no Partage Shopping. Hoje, às 15h, estarei conversando sobre a história do Balneário Cassino na Livraria Vanguarda do Partage. Em tempo: um dos apoiadores da Exposição é a Biblioteca Rio-Grandense que hoje está de aniversário: são 171 anos da mais antiga Biblioteca do Rio Grande do Sul. Ilustração: fotos das ruínas do Hotel El Aduar - Rejane Torres. 


domingo, 6 de agosto de 2017

RIO GRANDE NAS IMPRESSÕES DE UM COMERCIANTE INGLÊS

Setenta e dois anos após a fundação de fortificações militares que deram origem  a Rio Grande (1737) esteve na cidade o comerciante inglês John Luccock. Transcorria o ano de 1809, a preponderância inglesa no comércio exterior para o Brasil ampliava-se desde a vinda da família real portuguesa para residir no Rio de Janeiro fugindo do avanço napoleônico sobre Portugal.
         Luccock  trazia da Inglaterra tecidos de lã, cutelaria e ferragens para revender no mercado brasileiro em expansão com a permanência da nobreza lusitana. A forte concorrência de outros comerciantes ingleses na praça do Rio de Janeiro, o leva a Buenos Aires e a Rio Grande em busca de mercado para seus produtos.
         Durante os dois meses em que permaneceu em Rio Grande, Luccock descreve em seu diário (LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975) as realizações e frustrações de suas atividades, tornando-se a melhor fonte de viajantes estrangeiros para o entendimento da vida econômica e social da cidade na primeira década do século XIX.
         Um lugar comum nas descrições dos viajantes estrangeiros é a dificuldade de acesso para desembarque no porto devido aos bancos de areia e a comprovação da indispensável atuação dos práticos. Conforme Luccock, após muita ansiedade dos tripulantes e passageiros do navio em que estava, “surgiu um bote que veio ao nosso encontro, com um piloto a bordo que, por meio de sinais apropriados”, indicou a rota que a embarcação devia seguir. Na chegada pela barra, o inglês fez a seguinte observação das cercanias: “Para leste somente areões soltos eram visíveis; mais além, uma ampla linha d’água, a Baía da Mangueira e ainda mais longe a pequenina e linda cidadezinha branca de São Pedro do Sul, mais comumente chamada de Rio Grande”.
O ancoradouro do navio prossegue Luccock, ficava “rente à aldeia de São Pedro do Norte” e a três milhas da “cidade principal, já que os bancos de areia não permitiram uma maior proximidade”. Da entrada do rio até o ancoradouro, por uma extensão de nove milhas “predominam as mesmas obstruções, deixando apenas um canal estreito e intrincado com água escassamente suficiente para  um brique bem carregado”.
         Ao desembarcar, o inglês foi conduzido por uma sentinela à presença do Governador Dom Diogo de Souza que o encaminhou para contatos com “meus conterrâneos e a outras pessoas cujas relações pudessem ser-me agradáveis”. A cidade, situada quase ao nível das águas “contém cerca de quinhentas habitações, e o total de habitantes fixos talvez ascenda a dois mil”. A distribuição urbana está constantemente ameaçada pelos personagens areia e vento:

A fileira principal de casas corre em direção leste-oeste, gozando de suas janelas de rótula a perspectiva de uma ilha extensa, chata e despida, do outro lado de um canal de cerca de seiscentas jardas de largura. Por trás dessa fileira de casas, que é realmente bonita e graciosa, fica uma rua de cabanas pequeninas e baixas, feitas de barro e cobertas de palha, habitações das classe mais baixas. Nesse lugar, aquelas acumulações de areia de que já falamos, freqüentemente se dão, e, durante a minha estada em São Pedro, muitas dessas casas foram quase soterradas e muito danificadas. Se não fosse essa barreira, as casas melhores estariam expostas ao mesmo destino.(p.117)
        
         Ao descrever os edifícios públicos e as residências “das personalidades mais iminentes da comunidade”, o comerciante destacava a “Catedral, cuja singeleza, tanto por fora como por dentro, não impede que seja um belo edifício”.  A igreja, erguida na metade do século XVIII, apresenta em seu interior “espaços gradeados reservados aos fiéis homens, enquanto que no centro se acha a localidade das mulheres”. O prédio possui uma altura de quinze pés acumulando-se a areia a igual altura. O vento soprando constantemente, “fez com que a areia se afastasse das paredes formando uma espécie de desfiladeiro profundo e sombrio que conduz à porta”. 
         A permanência de dois meses em Rio Grande  não foi um sucesso financeiro, mas em termos de registro da economia e sociedade nos primórdios do século XIX, os escritos preservaram importantes detalhes do modo-de-vida. O desenvolvimento capitalista e a expansão de um mercado consumidor provincial não correspondeu a expectativa de Luccock, pois não encontrou em Rio Grande e em suas adjacências, campo suficiente para a comercialização de mercadorias devido a restrita circulação de numerário e de público consumidor. Os escravos e a população campeira, estavam à margem do consumo e representavam considerável parcela dos habitantes. Apesar do fracasso econômico, o comerciante inglês tinha uma forte expectativa de crescimento econômico e populacional para a então Vila do Rio Grande de São Pedro. O porto representava a dinâmica de interação da Província com o demais centros comerciais:


A proximidade do oceano, porém, garante-lhe uma preeminência permanente. É aqui que todos os navios tem que entregar seus papéis, sendo que a maior parte deles raramente segue adiante. É aqui também que os principais negociantes residem ou tem seus agentes estabelecidos; de tal maneira que ela pode ser considerada como o maior mercado do Brasil Meridional. (p. 116-117)
Capa da edição de 1942 da obra de Luccock. 

Cadeira de arruar. 

DESCOBRIMENTO, DESCOBRIMENTOS

A contagem regressiva para os 500 anos da descoberta do Brasil vem suscitando reflexões e novas versões sobre os acontecimentos e o sentido da colonização lusitana no Brasil. Uma reflexão sobre os desdobramentos da expansão ultramarina portuguesa no Atlântico no século XV e o sentido do sistema colonial mercantilista do Antigo Regime é de maior interesse para os historiadores, porém não se deve ignorar as divergências ligadas às versões da sucessão dos eventos relacionados ao descobrimento. A herança de cinco séculos de inserção no processo histórico europeu no binômio colônia/dependência persiste até o presente em relação ao desenvolvimento histórico do capitalismo mercantilista/ industrial/ monopolista/ liberal/ estatista/ neoliberal. Essas discussões em nível do processo histórico e dos imaginários voltados à colonização devem polarizar o interesse dos pesquisadores.
         Uma revisão dos eventos relacionados à chegada de Pedro Alvares Cabral ao Brasil vem acrescentando outras versões não oficiais ao descobrimento. A principal destas versões refere-se à expedição do português Duarte Pacheco Pereira que chegou ao Brasil aproximadamente um ano e meio antes de Cabral. Sendo verídica esta interpretação, os festejos dos 500 anos do descobrimento deveriam ser realizados entre novembro e dezembro do ano em curso e não em 22 de abril do ano 2000.
         O navegador e astrônomo português Duarte Pacheco Pereira relata em manuscrito  “Esmeraldo de situ orbis” (1505-1508) a respeito de uma viagem secreta ao Brasil em 1498. O rei de Portugal D. Manoel I, envia uma expedição para descobrir terras no Novo Mundo que vinha sendo colonizado pela Espanha desde a chegada de Cristóvão Colombo em ilhas da América Central em 1492. A frente da expedição está Duarte Pacheco Pereira considerado um exímio navegador e militar enviado por D. Manoel I que entre novembro e dezembro de 1498, chegou em algum ponto do litoral brasileiro na fronteira entre o Maranhão e o Pará, percorrendo a Ilha do Marajó e a foz do Rio Amazonas. A expedição e o retorno a Portugal foram mantidos em sigilo devido aos problemas políticos que poderiam desencadear com os espanhóis. O descobridor ainda envolveu-se em atividades militares na Índia e África, sendo decantado suas façanhas  por Luís de Camões no canto X de Os Lusíadas como o “Aquiles lusitano”.
         Diferenciado da descoberta oficial por Cabral e com a documentação produzida no momento dos acontecimentos através do diário de Pero Vaz de Caminha, que tiveram o papel de oficializar a descoberta, a interpretação relacionada com Duarte Pacheco Pereira está envolta nas atividades secretas de sua missão pois as terras pertenciam à Espanha conforme o Tratado de Tordesilhas. Os manuscritos ficaram quase 400 anos sem o conhecimento público, reaparecendo no final do século passado. Outras “possíveis” viagens até o Brasil podem ter ocorrido antes de 1498, e pelo caráter secreto das missões não deixaram registros ou os documentos ainda não foram divulgados. Um exemplo que indica possíveis expedições secretas é um mapa português de 1502 com a topografia do litoral brasileiro do Amazonas até o Cabo Frio. Os portugueses, oficialmente  não haviam percorrido o litoral brasileiro para descrevê-lo.
Como os historiadores trabalham e dialogam, ou deveriam, com fontes documentais, possíveis viagens anteriores de navegadores da Europa ou de outros continentes não devem ser descartadas a prióri mas necessitam de vestígios materiais ou documentais para o estabelecimento de interpretações científicas. Os estudos históricos e arqueológicos poderão em breve, lançar novas luzes sobre o processo de “descobrimento europeu” do Brasil, no qual Cabral não foi o marco primevo mas o marco oficial de uma descoberta não casual e sim planejada pela monarquia lusitana e pelos templários da Ordem de Cristo. 

Em meio à discussão e polêmica dos descobrimentos europeus, não devemos esquecer que a origem do descobrimento está relacionada às populações indígenas que há milênios iniciaram o povoamento das terras hoje denominadas de Brasil (matéria publicada em março de 2000).  


A BATALHA DO RIO DA PRATA

O desdobramento das tensões e enfrentamentos entre países europeus na década de 1930 assumiu um contorno de gradual globalização com a invasão da Polônia pelo exército e pela força aérea alemã (Luftwaffe) em 1º de setembro de 1939. Tinha início a segunda grande guerra mundial, o maior conflito militar da história da humanidade e da qual o Brasil e os países americanos não ficaram à margem dos reflexos militares, políticos, econômicos e culturais.
         Após a declaração de guerra, a marinha alemã (Kriegsmarine) iniciou suas atividades voltadas ao combate de navios mercantes e militares da Inglaterra. Apesar de contar com forças navais inferiores às inglesas, conforme decisão de tratados relacionados à contenção da corrida armamentista, fixados após a 1ª grande guerra mundial, os alemães desenvolveram tecnologias sofisticadas para uso em submarinos e em encouraçados de bolso. A opção estratégica da Kriegsmarine foi o afundamento de navios mercantes, abalando a economia britânica e gerando insegurança na navegação oceânica.
         Os países americanos, frente à tensa situação européia, iniciaram discussões sobre um possível conflito militar e a posição a ser assumida. Comandados pelos Estados Unidos, a partir de 1936 foi estabelecida uma política voltada à neutralidade frente a um provável conflito europeu. Porém, o primeiro grande confronto naval da guerra, aconteceu no espaço  platino, que oficialmente era uma zona americana de segurança: a Batalha do Rio da Prata.
         Nesta Batalha, estiveram presentes três navios de guerra britânicos e o encouraçado de bolso Almirante Graf von Spee, uma nave de 180 metros de comprimento, deslocando 10 mil toneladas e desenvolvendo uma velocidade máxima de 26 nós. Lançada ao mar em junho de 1934, em 30 de setembro de 1939, ao largo da costa de Pernambuco, afundou o vapor inglês Clement. A partir de então, especializou-se em ações mercenárias de afundamento de navios mercantes no Oceano Atlântico, sendo implacavelmente cassado pelo Almirantado inglês que organizou nove grupos de caça. A força G, formada pelos cruzadores Cumberland, Exeter, Ajax e Achilles estava responsável pela proteção da navegação inglesa entre o Rio de Janeiro e o Rio da Prata, esta última, uma zona de intenso tráfego comercial.
         O encontro entre o navio alemão e os cruzadores ingleses ocorreu no dia 13 de dezembro de 1939, a 250 milhas a norte/nordeste de Punta del Este. O resultado foi um violento confronto, com os projéteis provocando avarias múltiplas nos navios envolvidos. O Graf Spee foi seriamente atingido fugindo para o porto de Montevidéu para evitar o afundamento e onde poderia realizar reparos, abastecimento e desembarque dos feridos. O navio permaneceu até o dia 17 no porto, enquanto o Ajax e o Achilles ficaram ao largo, esperando ansiosamente sua saída. Inconformado com a exigência das autoridades uruguaias em  zarpar, o comandante do Graf Spee, Capitão Hans Langsdorff,  provoca a explosão do navio, retirando-se para Buenos Aires com cerca de mil tripulantes. No dia 19, o capitão suicida-se com um tiro na cabeça, deixando uma carta onde afirma: “só com a minha morte posso provar que os combatentes do Terceiro Reich estão prontos para morrer em honra de sua bandeira”. Nos dias seguintes, as repercussões pró e antinazistas ou inglesas, circularam nos jornais norte-americanos, europeus, platinos e brasileiros, promovendo uma aproximação dramática da América com a guerra e com as dificuldades na preservação de uma política de neutralidade frente aos acontecimentos na Europa.
         Em 1996, Nelson Pereira Theodosio, elaborou uma monografia de bacharelado no Curso de História da Fundação Universidade do Rio Grande, com o título "A Batalha do Rio da Prata: informação e repercussão nos jornais Rio Grande e O Tempo - 1939". O autor  analisou as repercussões deste confronto naval entre Alemanha e Inglaterra, na imprensa da cidade do Rio Grande. Conforme Theodosio, “esta batalha foi o momento em que a guerra se encontrou próxima à população (...) foi o momento em que a guerra deixou de ser uma figura européia, estilizada, estampada nas páginas dos jornais. Foi o momento de tomada de consciência. Havia uma guerra e ela estava acontecendo ali, bem próxima, no Rio da Prata”. (p.VI)
         Dois jornais rio-grandinos foram pesquisados: O Tempo e Rio Grande. Estes jornais, não estiveram alheios à crise diplomática que envolveu os acontecimentos no Prata, buscando informar os leitores dos acontecimentos a partir de um tratamento diferenciado de informações que provinham da mesma fonte oficiosa controlada pela censura estadonovista. O jornal Rio Grande, conforme Theodosio, dedicava a primeira página ao caso Graf Spee, reproduzindo, literalmente, as informações repassadas pela Agência Nacional. Já o jornal O Tempo preparava um resumo das notícias e publicava nas páginas internas, com a manchete  exposta na capa, perdendo em quantidade e ganhando em qualidade da informação, pois no Rio Grande,  muitas notícias contraditórias eram repassadas. No dia 14 de dezembro, O Tempo noticiou que o objetivo do Graf Spee era dirigir-se ao porto do Rio Grande para abastecimento, e, realizar o comboio até Hamburgo do vapor alemão Rio Grande que estava atracado no porto. A informação não foi confirmada, porém um tripulante do vapor alemão foi preso com um rádio transmissor no porto do Rio Grande sob suspeita de espionagem nazista. Uma conexão com o Graf Spee?
         De acordo com o bacharel em História, os relatos presentes nos dois periódicos fixaram algumas representações que estavam sendo construídas frente à adesão ao conflito europeu: “Os britânicos sempre são apresentados como corajosos, bravos e cheios de iniciativa. Os germânicos sempre são apresentados como covardes, traidores e traiçoeiros. A situação só irá mudar quando do suicídio do Capitão Langsdorff. Neste momento, os dois jornais, mas, principalmente, o jornal Rio Grande, apresentará outro quadro do marinheiro alemão: bravo, honrado, destemido. No entanto, podemos creditar tal mudança ao sentimento compartilhado por toda a humanidade, a de sentir condescendência diante de uma tragédia”. (p.XII)

         A segunda grande guerra passava a fazer parte do cotidiano dos rio-grandinos e canalizaria uma grande parte do universo informativo nos seis anos seguintes. Entrar na guerra ou permanecer neutro frente a referenciais europeus que estão se esfacelando no conflito? As apreensões em relação ao futuro certamente canalizaram a atenção da população nos meses que se seguiram à Batalha do Rio da Prata.

Graf Spee em 1939. Acervo: U.S. Naval Historical Center Photograph.



A TERRA SEM MAL

O grupo lingüístico Tupi-Guarani dispõe, desde o século 16, de ampla documentação etno-histórica para estudo. A dispersão espacial dos Tupi-Guarani históricos corresponde a uma vasta área geográfica, ocupando basicamente todo o centro-leste da América do Sul.
Os Tupi-Guarani relatados etnograficamente eram horticultores de floresta tropical e subtropical, cultivando principalmente a mandioca, o milho, batata-doce, feijões etc, fazendo uso da caça e pesca para obtenção de proteínas, sendo que toda uma tecnologia foi desenvolvida  para permitir este tipo de subsistência. Viviam basicamente em grandes casas comunais de madeira e palha, onde a coesão social superava os laços políticos que definiam organizativamente o grupo.
Estamos frente a uma sociedade auto-gerida onde a religião é a sociedade e não a alienação desta sociedade e onde a contra-ordem é fruto da ordem interna gerada pelas transformações na organização social. São forças sociais que atuam numa sociedade que mantém a sua integridade cultural e não a reação social – messiânica – frente à divisão e reincorporação desta divisão num todo incoerente e artificioso.

O DISCURSO DOS PROFETAS: A TERRA SEM MAL


O messianismo é derivado da agressão externa que atinge a essência social de um grupo. O profetismo não necessita de um agressor externo – como por exemplo, o contato com a civilização ocidental -, pois o seu mal é fruto da própria dinâmica da sociedade. O profetismo não é uma reação a um agressor, mas o apego do passado mítico e a negação total do social  enquanto ordem estabelecida.
    A organização Tupi-guarani não está fundada na divisão. Para os ocidentais é  muito brumoso pensar uma sociedade assim, afinal, a divisão é a lógica em nosso contexto histórico. É difícil imaginar o social, o político e o mito pensado numa unidade coerente e não como campos significativos onde às esferas de poder se articulam. Mas quem eram e o que diziam os profetas?
      A vida religiosa dos Tupi-Guarani centrava-se no xamanismo, isto é, certos personagens chamados xamãs eram os intermediários na ligação entre o mundo humano e o sobrenatural, desempenhando as funções terapêuticas de curar doentes, de predizer o futuro, garantir um bom tempo para as colheitas, fazer a interpretação dos sonhos ou visões. Estas sociedades atuam como uma unidade coerente onde o social, o religioso, o cotidiano e o sobrenatural, não apresentam uma nítida linha de demarcação. E dentro desta unidade, o xamã reveste-se de essencialidade por interagir em cada esfera indivisa da vida individual ou coletiva do grupo.
         Estes xamãs, atuavam na difusão dos heróis culturais e na manutenção da tradição de cataclismologia que eram os fundamentos do mundo mítico Tupi-Guarani. A documentação etno-histórica refere-se à existência de personagens enigmáticos chamados caraí que se diferenciavam dos xamãs pela ausência da prática ritual e terapêutica e, por circunscreverem suas atividades ao campo da palavra. O poder social do discurso era utilizado pelo caraí para transmitir sua replicante mensagem de ruptura com as mudanças que a sociedade vinha sofrendo. Os profetas afirmavam o “caráter mau do mundo”, fruto de mudanças que irromperam na vida social e que ameaçavam destruir a sociedade e trazer a infelicidade ao grupo. As lentas desfigurações que a sociedade Tupi-Guarani estava vivendo, teria sido trabalhada pelos caraí como sendo a desintegradora “força do mal” engendrada pela própria prática social, onde apenas o espírito errante da procura de uma Terra sem Mal poderia salvar a sociedade da doença profunda que é a desigualdade.
         O discurso dos profetas exortava os índios a abandonarem a “terra má” e irem em busca da Terra sem Mal. Para Pierre Clastres, esta última é, de fato, o lugar de repouso dos deuses, onde as flechas partem sozinhas a procura da caça, onde o milho cresce sem que ninguém cuide dele, território dos adivinhos, do qual toda alienação está ausente, território que foi, antes da destruição da primeira humanidade pelo dilúvio universal, o lugar comum aos humanos e aos divinos. É portanto o retorno ao passado mítico que fornecia aos profetas o meio de escapar ao mundo presente.
        Uma carga de destruição de toda regra e norma na tentativa de subverter a ordem que se institucionalizava, a ordem de destruição da sociedade enquanto unidade não autoritária.
        As palavras desejam conduzir a um lugar em que o divino e o humano se conjuguem numa ordem harmônica, na contra-ordem do real, fora do espaço e do tempo do social. O nome deste lugar, conforme Hélène Clastres é Terra sem Mal um espaço sem lugares marcados, onde se apagam as relações sociais, um tempo sem pontos de referência, em que se abolem as gerações. É o aguyje, a completude; no conjunto dos homens cada um se vê restituído a si próprio, suprimida a dupla distância que os fazia dependentes uns dos outros e separados dos deuses – lei de sociedade, lei de natureza: o mal radical. Para alcançar esta verdade é necessário abandonar o sedentário, negar o já estabelecido e perder todas as certezas. É preciso permanentemente renunciar ao enraizamento e nutrir o espírito vagabundo da busca.
       O encontro com o mítico é a fusão do humano com o sobrenatural. Talvez o impulso de negação não apenas da divisão social, mas, do próprio social enquanto forma de coletivização da historicidade do indivíduo.
      O caminhar errante de um espírito vagabundo. Talvez aqui a solidão dos profetas se torne mais socializada: na busca coletiva de uma historicidade que somente o indivíduo pode alcançar.

O DESENRAIZAMENTO

    Assim como nenhuma organização social é paradisíaca, o desenraizamento não garante a felicidade. É preciso criar um paraíso que não está neste mundo e que nem poderia estar; um lugar onde a temporalidade não é histórica, onde o tempo não possui referenciais entre o antes e o depois, onde o tempo basta-se em si. Sociedade primitivas ou sociedade com Estado: não há garantias em ser feliz.
    Numa especulação a-diacrônica, os profetas já deviam saber que escolher entre o Estado burguês e a barbárie é demonstrar falta de imaginação: não há escolhas a fazer pois qualquer escolha estará sempre para além das possibilidades de concretização. Os profetas também deveriam saber que não podemos ser deuses assim como  não podemos ser rochas; nem deuses e nem rochas, mas homens ou seja, conflito.
      As possibilidades estarão sempre num plano mágico de realização, estarão sempre no impulso criativo do sujeito. Se os Tupi-Guarani tinham a Terra sem Mal para buscar, hoje se vive não mais numa aldeia grupal e sim numa aldeia global. Os caminhos das florestas já foram percorridos e não há mais espaço no planeta para uma Terra sem Mal. O caminhar vagabundo continua sem direção... (matéria publicada em 1999). 


O INTELECTUAL ALFREDO FERREIRA RODRIGUES


       Alfredo Ferreira Rodrigues “iniciou a revisão do processo histórico dos Farrapos. Durante mais de trinta anos, levantou amorosamente, com exemplar honestidade e lúcida inteligência, vasta documentação sobre o decênio revolucionário, retificando pontos essenciais e esclarecendo definitivamente outros até ali obscuros ou desconhecidos. A sua figura vai encher um largo período de nossa historiografia, no século XX.” Guilhermino Cesar – História da Literatura do Rio Grande do Sul. 

     Nasceu a 12 de setembro de 1865 no distrito do Povo, desenvolvendo suas atividades profissionais e intelectuais em na cidade do Rio Grande e em Pelotas. Casou-se em 1893 com Honorina Silveira Rodrigues gerando treze filhos. Para sustentar a numerosa prole exerceu várias atividades: professor, comerciante, viajante comercial, redator e diretor de jornais etc. Trabalhou como revisor da Livraria Americana, em Pelotas, tornando-se gerente deste estabelecimento gráfico em Rio Grande, no período de 1891 a 1910. Em 1914, junto com o fundador do primeiro Tiro de Guerra no Brasil, Antônio Carlos Lopes, estabelecem a Drogaria Unicum. 

    Intelectual que desenvolveu atividades de ensaísta, historiador, cronista, poeta, crítico literário, jornalista, biógrafo, tradutor, folclorista, charadista e poeta, nas palavras de Hélio Moro Mariante, o patrono da cadeira vinte e um da Academia Rio-grandense de Letras “legou à posteridade uma extraordinária obra de alto valor cultural”. 

      O Almanaque Literário e Estatístico do Rio Grande do Sul foi editado entre 1889 e 1917 consistindo num importante acervo de divulgação de material historiográfico. Diferente de outros almanaques que existiram neste período no Rio Grande do Sul, a orientação de Ferreira Rodrigues centrou-se na história regional com divulgação de documentos, biografias, estatísticas, estudos críticos, com a presença de dezenas dos principais pesquisadores da história regional e platina durante a República Velha. A literatura e a poesia estão presentes, assim como charadas e enigmas. Para além de meras curiosidades, o editor buscou a divulgação de uma história regional fundada nos exemplos cívicos do passado condutores e mobilizadores dos homens no presente, buscando a legitimação e continuidade da República edificada a partir de 1889. A valorização das especificidades da história regional e local também são difundidas num período de acentuado federalismo e valorização da historicidade inerente à formação histórica gaúcha. 

     O historiador Otelo Rosa, num discurso proferido em 1935, enalteceu a atuação intelectual de Alfredo Ferreira Rodrigues com estas palavras: “A velha freguesia do Povo Novo, no município de Rio Grande, deu à Revolução Farroupilha duas figuras preclaras. Ali nasceu o general Antônio de Souza Neto, aquele galhardo rebelde que, em 12 de setembro de 1836, nos campos de Seival, proclamaria a República Rio-grandense (...) Muitos anos depois, ali nasceria Alfredo Ferreira Rodrigues, o homem a quem o destino reservaria a tarefa de mergulhar no passado do Rio Grande para trazer de lá, aos olhos deslumbrados da sua e de gerações seguintes, o reconto maravilhoso da pugna memorável...”. Otelo Rosa refere-se ao estudos sobre a Revolução Farroupilha que conduziram a vida intelectual de Ferreira Rodrigues. 

     Resgatar o projeto republicano farroupilha através do conhecimento daquele decênio repleto de acontecimentos, foi o objetivo que norteou os estudos deste pesquisador. Num documento assinado em Rio Grande no dia 16 de agosto de 1896, ele afirmou que “a Revolução de 1835, o mais belo padrão de glórias para o povo Rio-grandense, que, em dez anos de lutas, acentuou vigorosamente o seu valor, o seu patriotismo, a sua abnegação, morrendo pela República com uma heroicidade digna dos tempos antigos, ainda não tem história escrita”. Exatamente para elaborar esta história e dar prosseguimento ao trabalho de reunir documentos e aumentar o arquivo que já possuía, é que Ferreira Rodrigues faz um apelo: “Peço-lhes a remessa dos papéis relativos à revolução, comprometendo-me a devolvê-los, sem a menor falta, depois de copiar deles as informações que me parecerem aproveitáveis”. O resultado desta coleta e transcrição de documentos e jornais foi à formação de um arquivo com milhares de unidades que atualmente fazem parte do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. 

     A veneração a Bento Gonçalves da Silva, foi concretizada quando da realização de um concurso e posterior edificação na cidade do Rio Grande de um monumento dedicado ao líder farroupilha. A obra de arte que encontra-se na Praça Tamandaré e que guarda os restos mortais do mais popular general farroupilha, é de autoria do mestre português Antônio Teixeira Lopes. De certa forma, muito da atividade de redescoberta e difusão da Revolução Farroupilha promovida por Alfredo Ferreira Rodrigues está perpetuada neste monumento que ele tanto empenhou-se para ver erguido. 

      Alfredo Ferreira Rodrigues faleceu em Pelotas em 1942. Em homenagem ao centenário de seu nascimento em 12 de setembro de 1965, foi erguido um busto na praça Xavier Ferreira a poucos metros da entrada da Biblioteca Rio-grandense, um espaço cultural que por décadas ele frequentou e ajudou a difundir em todo o país.

ESPIONAGEM ESPANHOLA NA VILA DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO

O surgimento do Presídio e Povoação do Rio Grande de São Pedro em 1737 inseriram-se no quadro de disputa entre as Coroas de Portugal e da Espanha pela posse do Rio da Prata. A ação portuguesa de 1680, fundando a Colônia do Sacramento, desencadeou um processo militar e diplomático que trouxe fundamentais conseqüências à existência do Rio Grande no século 18 e à continuidade do projeto missioneiro iniciado no Rio Grande do Sul em 1626.
         Os enfrentamentos entre lusos e espanhóis nas campanhas militares contra Sacramento em 1681, 1704 e 1735 definiram a relação possível de negociação entre as duas frentes de expansão ibérica. Rio Grande, enquanto um entreposto de apoio a Sacramento, passou a ser alvo de preocupação das autoridades de Buenos Aires na década de 1740. Os problemas iniciais da fundação do Rio Grande, ligados à manutenção de condições mínimas para as tropas e incentivo à vinda de colonizadores, persistiram alguns anos após a construção das primeiras baterias de defesa.
         A manutenção da posição frente a um avanço espanhol era fator de apreensão por parte das autoridades responsáveis pela Comandância Militar. A invasão da Vila, em 1763, demonstrou a fragilidade de defesa diante de um exército numeroso e com objetivos claros. A reconquista somente ocorreu no ano de 1776 com uma grande concentração de tropas luso-brasileiras. Os desdobramentos posteriores ao Tratado de Madri (1750) assumiram o rumo do enfrentamento militar que chegou até o território de Santa Catarina. Antes do Tratado, a fronteira castelhana era assegurada pela presença de sete povoados missioneiros, que deviam obediência ao Rei da Espanha e às autoridades administrativas coloniais. O Tratado de Madri e a decorrente Guerra Guaranítica (1753-56) alteraram o panorama da fronteira, mantida pela presença de índios cristãos num espaço reducional, para o enfrentamento direto entre as frentes de expansão lusa e espanhola.
         Antecedendo estas ações militares, que ocorreram no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, a década de 1740 apresenta o confronto situado no Rio da Prata em torno de Sacramento. Porém, a tensão ligada a possíveis avanços em maior escala de portugueses em direção ao Prata foi fator de mobilização das autoridades espanholas.
         Um relatório enviado pelo comandante de Montevidéu, D. Francisco de Gorriti, para o Governador de Buenos Aires, D. Joseph de Andonaegui datado de 17 de setembro de 1749, indica a prática de infiltrar espiões nas fileiras inimigas (ver: CORTESÃO, Jaime. Tratado de Madri - Manuscrito da Coleção de Angelis. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v. 5, 1954, p. 366-368; 451; 457-459). 
         Já, em 1744, jesuítas acreditavam no possível avanço português em direção ao Prata e ao rio Uruguai com apoio de “vagabundos” (gaúchos). Posteriormente, em documento escrito em Buenos Aires, denunciou-se uma provável invasão de 400 famílias portuguesas destinadas a formar uma povoação no Alto Paraguai, a cem léguas de Asunción, assim como conquistarem as reduções guaranis. Diante desta denúncia de invasão lusitana, autoridades paraguaias investigaram a possível veracidade, concluindo que “não obstante haver empregado alguns espias para averiguar o fundamento da informação dada a descobrir mais alguma coisa, nada pode conseguir”. (Carta do governador do Paraguai para o Marquês de La Ensenada sobre a declaração anterior. Buenos Aires, 10/10/1748 In: CORTESÃO, p. 451).
         Portanto a prática de colocar espias para averiguar as denúncias não era novidade, mas inseria-se nas mútuas desconfianças com as decisões diplomáticas acertadas nos tratados entre os dois países ibéricos e as mudanças de alianças e rompimento de pactos de paz frente ao tênue equilíbrio europeu.
         Um suposto estado de guerra, com a ocupação de estâncias missioneiras  por famílias portuguesas, motivou esta série de correspondências entre as autoridades espanholas e Buenos Aires, Montevidéu, Asunción e de padres jesuítas. A apreensão com movimentos de povoamento do território em direção ao sul e a noroeste do atual Rio Grande do Sul que pudessem levar a novo confronto militar entre Portugal e Espanha, continuou a intensificar-se na correspondência do ano de 1749.
         Neste contexto de desconfianças em relação aos movimentos lusos ocorreu o episódio relatado em forma de relatórios sobre a “diligência dos espias que foram ao Rio Grande”. Os dados levantados pelo Tenente Luis Liscano podem ter sido obtidos de maneira apressada devido às circunstâncias, mas pela questão da segurança dos espanhóis e missioneiros dependerem da precisão destas informações, podemos considerá-las uma importante contribuição para o conhecimento da Vila do Rio Grande de São Pedro.
         O relatório referente ao Rio Grande de São Pedro traz uma série de dados que negam o avanço do povoamento da região missioneira por casais portugueses a partir da Vila do  Rio Grande, pois não confirmam a denúncia sobre a vinda destes casais e apenas informam sobre a expectativa de autoridades locais na ampliação do número de habitantes: “esperam para breve 200 casais de Lisboa e outros 200 da ilha da Madeira, os quais devem povoar o Curral Alto a 35 léguas da povoação do Rio Grande, formando um corpo de 400 famílias”. Em relação ao efetivo militar aquartelado em Rio Grande, o espia constatou que “há 4 companhias de infantaria de 40 homens, não completas, e de 12 a 16 artilheiros e outras 4 companhias de Dragões do mesmo número. Esta tropa está no Rio Grande em barracas, os soldados fazem todas as semanas exercícios a pé e a cavalo; estão bem vestidos e tratados”. A população civil é estimada em “100 moradores com outras tantas casas”. Constata também que “as famílias do Rio Grande estão muito desgostosas com a má situação dos terrenos que ocupam; e a razão de chamar outras é animar estas a que permaneçam”.
         Portanto, os problemas de manutenção da Vila ainda estão ligados ao próprio povoamento e implementação de uma estrutura urbana mínima para a manutenção civil, e não somente um núcleo militar e estratégico. O aproveitamento econômico do Rio Grande em direção ao Taim, Chuí e ao forte de São Miguel ainda estava por ser realizado frente à situação legal de um território em litígio.

         Este episódio secreto aos olhos portugueses, ocorrido em 1749, e os ingredientes ligados à expansão luso-brasileira em direção ao Prata, teriam desdobramentos nos anos seguintes através do pacto luso-espanhol de finalizar os conflitos ligados a Sacramento; a anulação do Tratado de Madri pelo Tratado de El Pardo de 1761; até a intensificação das hostilidades e a invasão da Vila do Rio Grande de São Pedro que passa a ser domínio espanhol durante 13 anos.

AS OBSERVAÇÕES DE UM ARISTOCRATA


O vapor Santa Maria partiu do Rio de Janeiro em 1º de agosto de 1865, trazendo a bordo o nobre francês Gastão de Orléans, o Conde d’Eu (1842-1922) que vinha para a Província do Rio Grande do Sul a fim de juntar-se ao sogro, o Imperador D. Pedro II. Conde d’Eu encontrava-se no mês de julho em viagem à Europa, desfrutando suas núpcias com a Princesa Isabel, quando chegaram notícias do início da Guerra com o Paraguai.
Sua viagem ao sul resultou num livro “Viagem militar ao Rio Grande do Sul” onde relatou a sua participação no conflito e especialmente, retratou a sua breve passagem por vilas e cidades no ano de 1865. Os comentários sobre a cidade do Rio Grande não poderiam faltar, pois o porto do Rio Grande é era caminho natural para os viajantes que partiam de outras províncias brasileiras rumo ao interior da Província ou ao Prata. A cidade no contexto agitado da movimentação política e militar devido à guerra do Paraguai, é retratada pelo Conde em seus comentários.
        

VIAGEM AO TEATRO DAS HOSTILIDADES

Após um desembarque no Desterro (atual Florianópolis), a viagem prosseguiu e no dia cinco de agosto, um forte nevoeiro impediu que a embarcação continuasse a navegar. Somente às oito horas da manhã é que o fog começou a dissipar-se sendo visível as terras do litoral sul “primeiro sob a forma de uma linha escura quase imperceptível entre o mar e céu, depois como uma faixa mais larga de areia branca. Umas vezes era uma praia plana, outras vezes eram cômoros ondulados; mas sempre areia, nada mais que areia, sem um átomo de verdura perceptível; aspecto que a saudade da  Província do Rio de Janeiro tornava duplamente triste. O céu parecia querer pôr-se em harmonia com a terra, tomando uma cor cinzenta e baça; o vento era de proa e glacial”.
À uma hora da tarde, o vapor Santa Maria encontrou-se em frente à barra do Rio Grande. O comandante da barra, a bordo do pequeno vapor Jaguarão, foi ao encontro da embarcação afirmando que não tinha notícias do teatro das hostilidades com os paraguaios, somente sabiam que no dia 29 de julho D. Pedro II chegou a Rio Pardo.
A entrada do porto do Rio Grande apresentava canais navegáveis muito estreitos, apertados entre bancos de areia que se estendiam, tanto ao meio da entrada como ao norte e ao sul e sobre os quais as vagas constantemente rebentavam. Por isso quando, tendo entrado pelo canal do norte, “passamos o semicírculo branco formado pela espuma das vagas, o comandante veio anunciar-me com muita satisfação que já tínhamos salvado a barra”. Deixando à direita a pequena povoação chamada Estação da Barra, “continuamos a navegar entre duas margens igualmente chatas, igualmente arenosas e, pelo menos, tão distantes uma da outra como as do Mersey em Liverpool. Pareceu-me que do lado do sul alguma erva crescia na areia; pelo menos, viam-se bois que pareciam estar a pastar na praia”. Prosseguindo não “tardamos a avistar e a deixar também para a direita a torre da igreja e as poucas e humildes casas de São José do Norte, vila que tem o título de heroica mas que deve ser bastante triste. Estão ali ancorados alguns navios que na outra margem não encontram a altura de água que demandam”.
Enfim, por detrás de uma saliência da margem do sul vislumbra-se cidade do Rio Grande “precedida de uma floresta de mastros”. Para aproximar-se dela é também preciso seguir um canal sinuoso e estreito, porém bem balizado com uma série de bóias. O desembarque é feito às 21 horas e como o vapor por causa dos bancos, “só de dia pode fazer a maior parte do trajeto daqui a Porto Alegre, tenho de dormir aqui. Aceito a hospitalidade que me oferece o sr. Lopes de Araújo (a que vulgarmente chamam Eufrásio), que já hospedou o imperador quando por aqui passou”.

A ACOLHIDA

No molhe de desembarque “está a Câmara Municipal, cujo presidente faz um pequeno discurso, outras autoridades e grande multidão, que solta os vivas do estilo e deita foguetes em todas as direções”. O comandante é um tenente-general reformado que se encontrava enfermo. Na rua principal posicionaram-se duas companhias da Guarda Nacional. Segundo observação do Conde, esta Guarda Nacional só foi chamada ao serviço depois da passagem do Imperador, por ter sido mandada para o interior a guarnição de linha que até então ocupava a cidade. Compõe-se a Guarda Nacional unicamente de habitantes da cidade, na maior parte empregados do comércio”.
Em conversas, Conde d’Eu foi informado que cidade tinha cerca de 14.000 habitantes e apresentava muitas casas de comércio europeias. As principais mercadorias para exportação eram os couros e a carne seca. “As ruas principais, em que se veem lojas elegantes, são três, todas paralelas à praia. Há muitas casas de azulejos, o que dá impressão de asseio e elegância. A rua mais importante apresenta hoje muitas bandeiras de consulados”
Conforme suas observações, as ruas são calçadas; mas antes de se “passarem as últimas casas da cidade, já se está num mar de areia, em que se torna muito custoso andar. Vi, contudo, uma sebe viva, não sei dizer de que espécie de planta, porque não tinha uma só folha; mas tanto bastou para me recordar a Europa”.

O hospital da Santa Casa ainda estava em construção, chamando a atenção do visitante.
Em visita a trincheira, isto é, uma construção defensiva que cortava a porção de terra entre a Lagoa e o Saco da Mangueira, ele informou que “trabalham atualmente nesta trincheira 120 operários sob as ordens de um major de engenharia. Logo ao pé fica o quartel da Guarda Nacional, no qual também está instalado o hospital militar. Tem umas poucas salas, espaçosas e bem ventiladas, e parece, em suma, estar funcionando perfeitamente. Há agora neste hospital 49 doentes, pertencentes a corpos que marcharam para o interior; nove estão atacados de varíola. Há três médicos no estabelecimento.
Após o jantar, o Conde foi visitado por uma comissão de negociantes franceses que o felicitaram. Quando se preparava para dormir uma sociedade musical alemã vieram fazer uma serenata iluminando a rua com seus archotes “Tive de ouvir a música e por fim pude recolher-me ao leito. Se bem que a elegância do quarto de dormir estivesse em harmonia com a da sala de jantar, o leito deixava a desejar. Para agasalho só havia um lençol quase transparente e uma coberta de seda, tudo cortado à alemã, isto é, de menor dimensão que o leito. Tive muito frio”.
No dia 6 de agosto, a chuva foi torrencial durante toda a manhã. O conde foi à missa de carruagem e posteriormente almoçou. Em seguida dirigiu-se a pé para o molhe de embarque, “visto não haver meio de transporte, o que determinou uma lavagem pouco oportuna das casacas pretas da Câmara Municipal e das outras autoridades”. No almoço ele provou vinho brasileiro “que eu ainda não vira, pois a Província do Rio Grande do Sul é a única que por enquanto o produz. Este é feito na própria cidade do Rio Grande com uvas que se colhem numa ilha próxima”, a Ilha dos Marinheiros. O vinho é de cor vermelho-claro e tem um sabor “que não é propriamente desagradável, mas que é acre e se não parece com o de nenhum vinho europeu”.
Apesar das péssimas condições do tempo, o navio partiu para Porto Alegre cruzando a Laguna dos Patos. O conde teve a oportunidade de conhecer a difícil navegação com fortes ventos sul e chuva torrencial, uma quebra de leme e o encalhamento da embarcação. Ao chegar a Porto Alegre, concluiu que a “lagoa queria ser para nós pior do que o oceano”.

DRAGÕES: UMA REVOLTA SOCIAL NO SÉCULO XVIII

“Naquela sociedade que brotava do areal costeiro (...) viver o dia-a-dia já era uma aventura. Imagine-se o que não sofreram estes pioneiros. A “incapacidade das coisas” com que contavam, segundo diz um desses povoadores, era notória: não passavam de barracas de couro, ou de ranchos cobertos de santa-fé suas moradas. E havia falta de tudo: de remédios, de igrejas, de tecidos, de cal, de pregos, de pedras, de ferro, de telhas, de madeira, de mulheres, de distrações, de moedas e de tijolos. O soldo das tropas nunca era pago em dia: e, às vezes, levava anos a chegar”. (Guilhermino Cesar)


OS DRAGÕES

Os Dragões constituíram um corpo de cavalaria que deveria possuir ágil mobilidade tática podendo atuar como corpo de infantaria num período de intensas disputas entre portugueses e espanhóis, e também durante a guerra guaranítica (1752-56). Quando, em 19 de fevereiro de 1737, o brigadeiro José da Silva Paes inicia a ocupação do Rio Grande, 37 dragões faziam parte do efetivo militar composto por 410 homens. Em 1738 o coronel Diogo Osório Cardoso organizou o Primeiro Regimento dos Dragões do Rio Grande, cuja 1ª Companhia foi entregue ao capitão Cristóvão Pereira de Abreu e ao tenente Francisco Pinto Bandeira. Este primeiro núcleo foi composto a partir de uma companhia de Dragões de Minas Gerais. A atuação militar na manutenção das fronteiras portuguesas foram amplamente destacadas pela historiografia de tendência luso-brasileira no Rio Grande do Sul. Entretanto, o movimento social de rebeldia protagonizado por estes atores da trama histórica colonial não recebeu a devida atenção. A importância da Revolta dos Dragões pode ser evidenciada a seguir.

A REVOLTA

As promessas iniciais da Coroa Portuguesa no sentido de promover boas condições para o estabelecimento de povoadores e militares nas fortificações construídas em Rio Grande, foram sendo frustradas nos cinco primeiros anos de ocupação. O não pagamento de soldos, a carência de alimentos, as condições climáticas, o isolamento geográfico e a repressão sistemática da tropa são alguns dos fatores que motivaram a revolta. No dia 5 de janeiro de 1742 o movimento teve início, quando soldados negaram obediência aos seus superiores. Conforme documento do Comandante Militar Diogo Osório Cardoso a revolta teve início entre “quatro e cinco da tarde, depois de rendida a guarda, juntou-se grande quantidade de soldados num capão de mato junto à barra, e dali saindo, tentaram aprisionar um cabo de esquadra que passava; este, a cavalo, fugiu e foi dar notícia ao comandante de que algo de anormal ocorria. Todas as providências tomadas – reforço da guarda do Porto, envio de oficiais e soldados para a praça de armas, reunião dos paisanos armados, para a defesa da autoridade – caíram no vácuo. Ninguém deu um tiro. Os soldados incumbidos de dominar o motim fizeram causa comum com os seus companheiros”.
O fulminante movimento teve apoio da população, impossibilitando uma repressão aos rebeldes. O clima de insatisfação pelo abandono e repressão vivenciados pelos soldados ganhava um contorno dramático para as autoridades aqui estabelecidas e para o projeto português no sul do Brasil. Numa conjuntura de confronto entre lusos e espanhóis pela posse da Colônia do Sacramento e pelo controle da navegação no Rio da Prata, a insubordinação dos soldados poderia significar o aproveitamento político por parte dos espanhóis para repelirem o controle português da barra do Rio Grande. A base de apoio à Sacramento poderia ser perdida, comprometendo os planos expansionistas do Conselho Ultramarino Português no Prata. Apaziguar os ânimos e garantir a fidelidade ao rei de Portugal era indispensável para a continuidade do projeto.
A fidelidade ao Rei não dependia mais de impor a autoridade e a repressão como vinha sendo exercido até então. Negociar e promover concessões frente às exigências dos rebeldes, tornou-se indispensável para os negociadores que representam a Coroa. Os rebeldes reivindicavam assistência aos doentes; o fim dos castigos corporais pela simples suspeita de deserção; a suspensão do recolhimento compulsório ao quartel durante a noite; a possibilidade de possuírem canoas e cavalos. Diogo Osório Cardoso, para contornar a situação, aceita as reivindicações e garante o perdão para os rebeldes. A mobilização continua até o mês de fevereiro quando o brigadeiro José da Silva Paes, que traria os soldos atrasados e mantimentos, frustrou as expectativas não cumprindo as promessas. A movimentação reacende com possível quebra de fidelidade, quando Gomes Freire de Andrada assinou o Registro de Ratificação do Perdão dos Dragões (15/02/1742) apaziguando o movimento. Neste documento, Andrada destaca uma das maiores exigências “que se não proceda a castigo grave sem prova, por suspeita de deserção, pois cai infâmia no soldado e sua família quando chega a ser castigado pela abominável delito de desertor...”.
Numa fronteira em construção, o ato de desertar era fator para legitimar espancamentos fundamentados ou arbitrários. A revolta serviu para evidenciar o uso da brutalidade e do terror para assegurar a posse e garantir a defesa de uma determinada nacionalidade, pois o horizonte contínuo em direção ao Prata poderia seduzir os soldados a seguirem as trilhas do caminhar vagabundo dos gauchos platinos.


UM BALANÇO DO MOVIMENTO

 O historiador Francisco das Neves Alves considera que a Revolta dos Dragões consistiu na primeira manifestação rebelde e de cunho acentuadamente popular ocorrida no Rio Grande do Sul. Segundo ele, a importância secundária que o movimento recebeu nos estudos históricos “acabou por alijá-la de certa maneira da tradição e herança revolucionárias imputadas aos rio-grandenses”. A revolta assinalou também, a “primeira vez em que um governo central aceitou praticamente todas as condições reivindicadas pelos rebeldes, devido às dificuldades em organizar forças coercitivas e à posição estratégica ocupada por aquele estabelecimento na defesa das fronteiras ainda em formação”.

Segundo ele, os rebeldes tiveram “praticamente todos os seus objetivos atingidos, sendo que, inclusive, alguns oficiais acusados em suas reivindicações, principalmente por castigos injustificados, foram punidos. Dessa maneira, os soldados conseguiram suavizar um pouco a precária existência que levavam na nova colônia”. Porém, o perdão governamental não está relacionado a uma atitude altruísta das autoridades portuguesas e sim, tinha o objetivo de resguardar a estabilidade do empreendimento colonial através da fidelidade à Coroa lusitana. (ALVES, Francisco das Neves. A Revolta dos Dragões na visão dos náufragos do Wager In: ALVES, F.N. & TORRES, L.H. (Orgs.) A Cidade do Rio Grande: estudos históricos. Rio Grande: FURG/SMEC, 1995).

BANDA MUSICAL ROSSINI

Banda Rossini. 

Em 30 de novembro de 1890, um grupo de italianos fundaram na cidade do Rio Grande a Banda Musical Gioachino Rossini. O patrono da banda o compositor Giochino Rossini, nasceu em 29 de fevereiro de 1792 na cidade de Pessaro e faleceu em 13 de novembro de 1869 em Passy, ambas cidades da Itália.
A primeira apresentação ocorreu em 20 de setembro de 1891 quando das festividades da Revolução Farroupilha. Desde 1882 com a fundação do Clube Vinte de Setembro, o movimento farroupilha e o republicanismo sofreram um resgate histórico por intelectuais e políticos. Em 1889, com a queda da monarquia, a república foi instaurada no Brasil e em nível regional, o Partido Republicano Rio-Grandense começou a impor sua modalidade de prática administrativa. A banda nasceu num momento político tumultuado de transição da monarquia para a república com enfrentamentos entre monarquistas, liberais e conservadores.

AS BANDAS

Em sua origem, a banda era um grupo de instrumentistas, de sopro e percussão, que marchava à frente das formações militares ou dos cortejos festivos, remontando o seu uso aos povos orientais, gregos e romanos. Mais tarde, esses conjuntos foram-se aprimorando com a adoção de instrumentos mais aperfeiçoados (trompas, trombetas, tubas, flautas, tambores, etc), e nos exércitos são constituídos  por soldados destinados unicamente à música. A banda militar ou marcial desenvolveu-se sempre dentro do princípio de conduzir a tropa, e ainda hoje se destina a estabelecer o ritmo da marcha. Num sentido genérico a banda consiste num conjunto de músicos em que predominam os executantes de instrumentos de metal e tambores, destinados tanto ao uso militar quanto ao civil.
Conforme José Ramos Tinhorão, uma das poucas oportunidades que a maioria da população das principais cidades brasileiras tinha de ouvir qualquer espécie de música instrumental, na segunda metade do século 19, era a música domingueira dos coretos e praças, proporcionada pelas bandas marciais. Foi desta necessidade de entremear as marchas militares com músicas do agrado do público de gosto eminentemente popular, que as bandas de corporações militares começaram a incluir em seus repertórios os gêneros mais em voga do tempo: as valsas, as polcas, as mazurcas e o maxixe. Eram esses ritmos populares, que algumas dessas bandas já estavam tocando nos bailes de máscaras realizados nos teatros, durante o carnaval, e logo passariam a tocar também nas sedes das chamadas Sociedades – os clubes formados por foliões que disputavam a primazia carnavalesca em desfiles com carros alegóricos.
Empregadas como conjuntos instrumentais para animar bailes carnavalescos e tocar em coretos, procissões e festas de adro de igreja, as bandas de corporações fardadas iam encontrar em 1896, o mais duradouro núcleo de formação de instrumentistas já criado no Brasil: a Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro.
A popularização do gênero musical se deu com as bandas militares, porém paulatinamente surgem as bandas sem esta vinculação como é o caso da Banda Rossini.

A CIDADE E A BANDA

A Banda Rossini há 109 anos participa de acontecimentos ligados à história da cidade do Rio Grande. Quando do acidente com o navio Araçatuba no molhe leste, no ano de 1933, a Banda percorreu as ruas de São José do Norte acompanhando o entusiasmo da população pelo sucesso no salvamento dos passageiros. Segundo informações de Antonio Baldez Ávila (presidente da Banda), inúmeros acontecimentos são comentados ou relembrados pelos atuais membros. Quando do cinqüentenário da Rossini, o Jornal Rio Grande (19/11/1940) divulgou a programação das comemorações com apresentação da Banda no Club-Teatro Leão XIII, missa na Igreja Nossa Senhora Auxiliadora, retreta na Praça Xavier Ferreira e desfile pelas ruas da cidade com as músicas que embalavam aquele tumultuado período marcado pela Segunda Guerra Mundial. Uma curiosidade deste período é que entre os festejos do cinqüentenário ocorreu uma atividade que foi encerrada ao som do Hino Nacional, sendo posteriormente servido um copo d’água aos participantes. Na época, “copo d’água” significava refrigerante e/ou cerveja.
A festa dos Navegantes de São José do Norte, uma devoção popular que remonta a primeira metade do século 19, teve uma sistemática participação da Banda. No Jornal Eco do Norte (15/02/1951) há uma referência a Rossini a qual apesar de “muito procurada na cidade fronteira veio abrilhantar as solenidades da festa dos Navegantes”. Numa destas passagens por São José do Norte um dos músicos, devido ao forte frio que fazia na cidade vizinha, pediu uma sopa quente “para restabelecer o ânimo”. No desdobramento do episódio a corporação passou a ser conhecida, até a atualidade, como banda da sopa quente.

         Dada a longevidade de mais de um século, a Banda apresenta uma historicidade que precisa ser pesquisada e cujo trabalho deve ser conhecido pela comunidade local. Quando falamos em patrimônio não devemos pensar apenas nos bens materiais dos períodos colonial, imperial ou republicano. A cultura acumulada na trajetória musical da Banda Rossini não consiste apenas em fragmentos do passado mas faz parte da historicidade atual. É parte do patrimônio Rio-grandino, o qual não se restringe a prédios, ruas ou documentos, mas também a notas e sons, a musicalidade no presente.
Banda Rossini. Década de 1920. 

CARTAS CONSULARES: A OBSERVAÇÃO NORTE-AMERICANA

No final dos séculos 18 e primeira metade do 19, os movimentos liberais e republicanos difundem-se na América do Sul e promovem uma série de rebeliões em países governados por monarquias absolutistas baseadas no direito divino dos reis. A Revolução Farroupilha foi uma das rebeliões que questionaram o centralismo imposto após a independência do Brasil em 1822, independência que assegurou a continuidade da monarquia, na forma de um estado unitário e com os poderes recaindo no executivo.
         Esta revolução que eclodiu em 20 setembro de 1835, não surgiu do nada, mas é a culminância de um desgaste entre as aspirações de maior autonomia da elite pecuarista e demais segmentos sociais descontentes do Rio Grande do Sul, e o descaso do Governo Central com as reivindicações político-econômicas. Difunde-se na Província o ideário liberal radical de autonomia, federalismo, e, após a proclamação da República Rio-Grandense em setembro de 1836, de separatismo do Império Brasileiro. Abandonando as propostas de autonomia provincial e de reivindicações de alteração na política fiscal, setores das elites locais colocam em prática um projeto liberal  e republicano, que dividiu a província entre farroupilhas e legalistas.

OS INTERESSES NORTE-AMERICANOS

 As relações comerciais entre os Estados Unidos (país que se tornou republicano em 1776) e o Rio Grande do Sul, já são efetivas no ano de 1817. Rio Grande já mantinha intercâmbio com os portos norte-americanos de New York, Boston, Salem, Filadélfia e New Haven. O principal gênero importado era a farinha de trigo, além do sal, artigos industriais e de mobiliário. Ao retornar, os barcos americanos transportavam couros, chifres e demais derivados do gado. O crescimento do intercâmbio comercial acarretou na presença de agentes consulares atuantes desde 1829. Em correspondência dirigida no dia 1º de dezembro de 1829 ao Secretário de Estado dos Estados Unidos, Austin Hayes cônsul dos Estados Unidos no Rio Grande de São Pedro escreveu: “Tenho a honra de acusar o recebimento de seu comunicado de 8 de junho passado, juntamente com minha nomeação pelo Presidente para Cônsul para este porto e suas cercanias”. Rio Grande e Porto Alegre são as duas localidades em que a documentação é escrita, ocorrendo um deslocamento sistemático do cônsul neste trajeto.

 A REPRESSÃO AO CÔNSUL REPUBLICANO


O cônsul Austin Hayes, escreveu do consulado em Porto Alegre no dia 7 de dezembro de 1835, apreensivo com o movimento revolucionário em curso: “O presidente Antônio Rodrigues Fernandes Braga (juntamente com os oficiais ligados ao seu partido) fugiram para a cidade de São Pedro do Sul, deixando sua esposa, família e chaves do palácio, etc, aos meus cuidados, o temor na época era grande e minha casa permaneceu por semanas repleta de famílias desprotegidas procurando segurança sob a bandeira americana (...) Estamos esperando um novo presidente do Rio de Janeiro, que espero que seja aceito e restaure a ordem; se não o for, minha opinião é de esta Província separar-se-á do Governo Central no Rio de Janeiro, tornando-se uma república”. Em primeiro de janeiro de 1836, Hayes ao escrever ao Secretario de Estado em Washington afirmou que a Província continua em estado de desordem “e posso apenas insistir que alguns de nossos navios de guerra deveriam se fazer aqui presentes”.
O porto em Rio Grande esteve fechado por tropas imperiais desde abril de 1836, provocando protestos dos navios norte-americanos que ficam retidos nos portos de São José do Norte e Rio Grande. O cônsul apresenta uma posição atuante na defesa dos interesses de seu país, afirmando da necessidade da vinda de “um navio armado de nossa esquadra a Rio Grande”. Hayes acaba envolvido nos acontecimentos de retomada de Porto Alegre pelas tropas imperiais em junho de 1836 sendo acusado e preso de ter apoiado revolucionários republicanos. As agressões sofridas e a prisão, foram registradas num instrumento público de protesto em que é exigida uma indenização de duzentos mil dólares espanhóis devido às contra ele cometidas sob a bandeira do Imperador D. Pedro II. Considerando que uma grave questão diplomática ocorrera, o cônsul afirma que embarcará para os Estados Unidos a fim de apresentar “um relato ao nosso Governo, convencido como estou, de que meus compatriotas rapidamente procurarão reparação pelos insultos recebidos por sua bandeira através das medidas injustas, ilegais e primárias usadas pelo Governo Brasileiro”. A proposta de retaliação somada com a sugestão de que navios de guerra norte-americanos estivessem disponíveis para a ação, demonstra um possível interesse de uma intervenção militar que nunca chegou a efetivar-se. Consumando-se o separatismo dos republicanos farroupilhas, qual seria a postura do governo republicano norte-americano?

A GUERRA E OS ESTRANGEIROS

 Em correspondência de 30 de junho de 1836, Hayes refere-se a uma proclamação publicada em Porto Alegre em que norte-americanos são acusados de estarem envolvidos em distúrbios políticos. O cônsul solicita das autoridades imperiais “os nomes de quaisquer cidadãos dos Estados Unidos da América que tenham de qualquer maneira interferido nas questões políticas da Província”. É também renovada “minhas garantias de neutralidade”. O envolvimento de Hayes vai além da prática diplomática, pois ele está diretamente preocupado com os negócios ligados a firma em que é proprietário a Hayes, Engerer & Cia. As acusações dos monarquistas é que o diplomata apoiava financeiramente os republicanos e também contrabandeara armas e munições para os revolucionários.

Com a partida de Hayes para os EUA, Ralph Peacock assume em Rio Grande como Vice-cônsul. Em abril de 1837 os problemas persistem: “lamento dizer que este Governo continua a praticar abusos contra estrangeiros através do aprisionamento e expulsão à força do País”. A escuna de guerra Dolphin deslocou-se para Rio Grande para fazer frente à situação de perseguição política e dificuldades econômicas impostas aos norte-americanos. A documentação diplomática também assinala a perspectiva de que a guerra  deveria ser longa. Uma projeção correta para um conflito de difícil solução que perdurou por dez anos.