“Naquela
sociedade que brotava do areal costeiro (...) viver o dia-a-dia já era uma
aventura. Imagine-se o que não sofreram estes pioneiros. A “incapacidade das
coisas” com que contavam, segundo diz um desses povoadores, era notória: não
passavam de barracas de couro, ou de ranchos cobertos de santa-fé suas moradas.
E havia falta de tudo: de remédios, de igrejas, de tecidos, de cal, de pregos,
de pedras, de ferro, de telhas, de madeira, de mulheres, de distrações, de
moedas e de tijolos. O soldo das tropas nunca era pago em dia: e, às vezes,
levava anos a chegar”. (Guilhermino Cesar)
OS DRAGÕES
Os
Dragões constituíram um corpo de cavalaria que deveria possuir ágil mobilidade
tática podendo atuar como corpo de infantaria num período de intensas disputas
entre portugueses e espanhóis, e também durante a guerra guaranítica (1752-56).
Quando, em 19 de fevereiro de 1737, o brigadeiro José da Silva Paes inicia a
ocupação do Rio Grande, 37 dragões faziam parte do efetivo militar composto por
410 homens. Em 1738 o coronel Diogo Osório Cardoso organizou o Primeiro
Regimento dos Dragões do Rio Grande, cuja 1ª Companhia foi entregue ao capitão
Cristóvão Pereira de Abreu e ao tenente Francisco Pinto Bandeira. Este primeiro
núcleo foi composto a partir de uma companhia de Dragões de Minas Gerais. A
atuação militar na manutenção das fronteiras portuguesas foram amplamente
destacadas pela historiografia de tendência luso-brasileira no Rio Grande do
Sul. Entretanto, o movimento social de rebeldia protagonizado por estes atores
da trama histórica colonial não recebeu a devida atenção. A importância da
Revolta dos Dragões pode ser evidenciada a seguir.
A REVOLTA
As
promessas iniciais da Coroa Portuguesa no sentido de promover boas condições
para o estabelecimento de povoadores e militares nas fortificações construídas
em Rio Grande, foram sendo frustradas nos cinco primeiros anos de ocupação. O
não pagamento de soldos, a carência de alimentos, as condições climáticas, o
isolamento geográfico e a repressão sistemática da tropa são alguns dos fatores
que motivaram a revolta. No dia 5 de janeiro de 1742 o movimento teve início,
quando soldados negaram obediência aos seus superiores. Conforme documento do
Comandante Militar Diogo Osório Cardoso a revolta teve início entre “quatro e
cinco da tarde, depois de rendida a guarda, juntou-se grande quantidade de
soldados num capão de mato junto à barra, e dali saindo, tentaram aprisionar um
cabo de esquadra que passava; este, a cavalo, fugiu e foi dar notícia ao
comandante de que algo de anormal ocorria. Todas as providências tomadas –
reforço da guarda do Porto, envio de oficiais e soldados para a praça de armas,
reunião dos paisanos armados, para a defesa da autoridade – caíram no vácuo. Ninguém
deu um tiro. Os soldados incumbidos de dominar o motim fizeram causa comum com
os seus companheiros”.
O
fulminante movimento teve apoio da população, impossibilitando uma repressão
aos rebeldes. O clima de insatisfação pelo abandono e repressão vivenciados
pelos soldados ganhava um contorno dramático para as autoridades aqui
estabelecidas e para o projeto português no sul do Brasil. Numa conjuntura de
confronto entre lusos e espanhóis pela posse da Colônia do Sacramento e pelo
controle da navegação no Rio da Prata, a insubordinação dos soldados poderia
significar o aproveitamento político por parte dos espanhóis para repelirem o
controle português da barra do Rio Grande. A base de apoio à Sacramento poderia
ser perdida, comprometendo os planos expansionistas do Conselho Ultramarino
Português no Prata. Apaziguar os ânimos e garantir a fidelidade ao rei de
Portugal era indispensável para a continuidade do projeto.
A
fidelidade ao Rei não dependia mais de impor a autoridade e a repressão como
vinha sendo exercido até então. Negociar e promover concessões frente às
exigências dos rebeldes, tornou-se indispensável para os negociadores que
representam a Coroa. Os rebeldes reivindicavam assistência aos doentes; o fim
dos castigos corporais pela simples suspeita de deserção; a suspensão do
recolhimento compulsório ao quartel durante a noite; a possibilidade de
possuírem canoas e cavalos. Diogo Osório Cardoso, para contornar a situação,
aceita as reivindicações e garante o perdão para os rebeldes. A mobilização continua
até o mês de fevereiro quando o brigadeiro José da Silva Paes, que traria os
soldos atrasados e mantimentos, frustrou as expectativas não cumprindo as
promessas. A movimentação reacende com possível quebra de fidelidade, quando
Gomes Freire de Andrada assinou o Registro
de Ratificação do Perdão dos Dragões (15/02/1742) apaziguando o movimento.
Neste documento, Andrada destaca uma das maiores exigências “que se não proceda
a castigo grave sem prova, por suspeita de deserção, pois cai infâmia no soldado
e sua família quando chega a ser castigado pela abominável delito de
desertor...”.
Numa
fronteira em construção, o ato de desertar era fator para legitimar
espancamentos fundamentados ou arbitrários. A revolta serviu para evidenciar o
uso da brutalidade e do terror para assegurar a posse e garantir a defesa de
uma determinada nacionalidade, pois o horizonte contínuo em direção ao Prata
poderia seduzir os soldados a seguirem as trilhas do caminhar vagabundo dos gauchos platinos.
UM BALANÇO DO MOVIMENTO
O historiador Francisco das Neves Alves
considera que a Revolta dos Dragões consistiu na primeira manifestação rebelde
e de cunho acentuadamente popular ocorrida no Rio Grande do Sul. Segundo ele, a
importância secundária que o movimento recebeu nos estudos históricos “acabou
por alijá-la de certa maneira da tradição e herança revolucionárias imputadas
aos rio-grandenses”. A revolta assinalou também, a “primeira vez em que um
governo central aceitou praticamente todas as condições reivindicadas pelos rebeldes,
devido às dificuldades em organizar forças coercitivas e à posição estratégica
ocupada por aquele estabelecimento na defesa das fronteiras ainda em formação”.
Segundo
ele, os rebeldes tiveram “praticamente todos os seus objetivos atingidos, sendo
que, inclusive, alguns oficiais acusados em suas reivindicações, principalmente
por castigos injustificados, foram punidos. Dessa maneira, os soldados
conseguiram suavizar um pouco a precária existência que levavam na nova
colônia”. Porém, o perdão governamental não está relacionado a uma atitude
altruísta das autoridades portuguesas e sim, tinha o objetivo de resguardar a
estabilidade do empreendimento colonial através da fidelidade à Coroa lusitana.
(ALVES, Francisco das Neves. A Revolta dos Dragões na visão dos náufragos do
Wager In: ALVES, F.N. & TORRES, L.H. (Orgs.) A Cidade do Rio Grande: estudos históricos. Rio Grande: FURG/SMEC,
1995).
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