Porto do Rio Grande em 1908

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domingo, 6 de agosto de 2017

DRAGÕES: UMA REVOLTA SOCIAL NO SÉCULO XVIII

“Naquela sociedade que brotava do areal costeiro (...) viver o dia-a-dia já era uma aventura. Imagine-se o que não sofreram estes pioneiros. A “incapacidade das coisas” com que contavam, segundo diz um desses povoadores, era notória: não passavam de barracas de couro, ou de ranchos cobertos de santa-fé suas moradas. E havia falta de tudo: de remédios, de igrejas, de tecidos, de cal, de pregos, de pedras, de ferro, de telhas, de madeira, de mulheres, de distrações, de moedas e de tijolos. O soldo das tropas nunca era pago em dia: e, às vezes, levava anos a chegar”. (Guilhermino Cesar)


OS DRAGÕES

Os Dragões constituíram um corpo de cavalaria que deveria possuir ágil mobilidade tática podendo atuar como corpo de infantaria num período de intensas disputas entre portugueses e espanhóis, e também durante a guerra guaranítica (1752-56). Quando, em 19 de fevereiro de 1737, o brigadeiro José da Silva Paes inicia a ocupação do Rio Grande, 37 dragões faziam parte do efetivo militar composto por 410 homens. Em 1738 o coronel Diogo Osório Cardoso organizou o Primeiro Regimento dos Dragões do Rio Grande, cuja 1ª Companhia foi entregue ao capitão Cristóvão Pereira de Abreu e ao tenente Francisco Pinto Bandeira. Este primeiro núcleo foi composto a partir de uma companhia de Dragões de Minas Gerais. A atuação militar na manutenção das fronteiras portuguesas foram amplamente destacadas pela historiografia de tendência luso-brasileira no Rio Grande do Sul. Entretanto, o movimento social de rebeldia protagonizado por estes atores da trama histórica colonial não recebeu a devida atenção. A importância da Revolta dos Dragões pode ser evidenciada a seguir.

A REVOLTA

As promessas iniciais da Coroa Portuguesa no sentido de promover boas condições para o estabelecimento de povoadores e militares nas fortificações construídas em Rio Grande, foram sendo frustradas nos cinco primeiros anos de ocupação. O não pagamento de soldos, a carência de alimentos, as condições climáticas, o isolamento geográfico e a repressão sistemática da tropa são alguns dos fatores que motivaram a revolta. No dia 5 de janeiro de 1742 o movimento teve início, quando soldados negaram obediência aos seus superiores. Conforme documento do Comandante Militar Diogo Osório Cardoso a revolta teve início entre “quatro e cinco da tarde, depois de rendida a guarda, juntou-se grande quantidade de soldados num capão de mato junto à barra, e dali saindo, tentaram aprisionar um cabo de esquadra que passava; este, a cavalo, fugiu e foi dar notícia ao comandante de que algo de anormal ocorria. Todas as providências tomadas – reforço da guarda do Porto, envio de oficiais e soldados para a praça de armas, reunião dos paisanos armados, para a defesa da autoridade – caíram no vácuo. Ninguém deu um tiro. Os soldados incumbidos de dominar o motim fizeram causa comum com os seus companheiros”.
O fulminante movimento teve apoio da população, impossibilitando uma repressão aos rebeldes. O clima de insatisfação pelo abandono e repressão vivenciados pelos soldados ganhava um contorno dramático para as autoridades aqui estabelecidas e para o projeto português no sul do Brasil. Numa conjuntura de confronto entre lusos e espanhóis pela posse da Colônia do Sacramento e pelo controle da navegação no Rio da Prata, a insubordinação dos soldados poderia significar o aproveitamento político por parte dos espanhóis para repelirem o controle português da barra do Rio Grande. A base de apoio à Sacramento poderia ser perdida, comprometendo os planos expansionistas do Conselho Ultramarino Português no Prata. Apaziguar os ânimos e garantir a fidelidade ao rei de Portugal era indispensável para a continuidade do projeto.
A fidelidade ao Rei não dependia mais de impor a autoridade e a repressão como vinha sendo exercido até então. Negociar e promover concessões frente às exigências dos rebeldes, tornou-se indispensável para os negociadores que representam a Coroa. Os rebeldes reivindicavam assistência aos doentes; o fim dos castigos corporais pela simples suspeita de deserção; a suspensão do recolhimento compulsório ao quartel durante a noite; a possibilidade de possuírem canoas e cavalos. Diogo Osório Cardoso, para contornar a situação, aceita as reivindicações e garante o perdão para os rebeldes. A mobilização continua até o mês de fevereiro quando o brigadeiro José da Silva Paes, que traria os soldos atrasados e mantimentos, frustrou as expectativas não cumprindo as promessas. A movimentação reacende com possível quebra de fidelidade, quando Gomes Freire de Andrada assinou o Registro de Ratificação do Perdão dos Dragões (15/02/1742) apaziguando o movimento. Neste documento, Andrada destaca uma das maiores exigências “que se não proceda a castigo grave sem prova, por suspeita de deserção, pois cai infâmia no soldado e sua família quando chega a ser castigado pela abominável delito de desertor...”.
Numa fronteira em construção, o ato de desertar era fator para legitimar espancamentos fundamentados ou arbitrários. A revolta serviu para evidenciar o uso da brutalidade e do terror para assegurar a posse e garantir a defesa de uma determinada nacionalidade, pois o horizonte contínuo em direção ao Prata poderia seduzir os soldados a seguirem as trilhas do caminhar vagabundo dos gauchos platinos.


UM BALANÇO DO MOVIMENTO

 O historiador Francisco das Neves Alves considera que a Revolta dos Dragões consistiu na primeira manifestação rebelde e de cunho acentuadamente popular ocorrida no Rio Grande do Sul. Segundo ele, a importância secundária que o movimento recebeu nos estudos históricos “acabou por alijá-la de certa maneira da tradição e herança revolucionárias imputadas aos rio-grandenses”. A revolta assinalou também, a “primeira vez em que um governo central aceitou praticamente todas as condições reivindicadas pelos rebeldes, devido às dificuldades em organizar forças coercitivas e à posição estratégica ocupada por aquele estabelecimento na defesa das fronteiras ainda em formação”.

Segundo ele, os rebeldes tiveram “praticamente todos os seus objetivos atingidos, sendo que, inclusive, alguns oficiais acusados em suas reivindicações, principalmente por castigos injustificados, foram punidos. Dessa maneira, os soldados conseguiram suavizar um pouco a precária existência que levavam na nova colônia”. Porém, o perdão governamental não está relacionado a uma atitude altruísta das autoridades portuguesas e sim, tinha o objetivo de resguardar a estabilidade do empreendimento colonial através da fidelidade à Coroa lusitana. (ALVES, Francisco das Neves. A Revolta dos Dragões na visão dos náufragos do Wager In: ALVES, F.N. & TORRES, L.H. (Orgs.) A Cidade do Rio Grande: estudos históricos. Rio Grande: FURG/SMEC, 1995).

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