Setenta e dois anos após a fundação de
fortificações militares que deram origem
a Rio Grande (1737) esteve na cidade o comerciante inglês John Luccock.
Transcorria o ano de 1809, a
preponderância inglesa no comércio exterior para o Brasil ampliava-se desde a
vinda da família real portuguesa para residir no Rio de Janeiro fugindo do
avanço napoleônico sobre Portugal.
Luccock trazia da Inglaterra tecidos de lã, cutelaria
e ferragens para revender no mercado brasileiro em expansão com a permanência
da nobreza lusitana. A forte concorrência de outros comerciantes ingleses na
praça do Rio de Janeiro, o leva a Buenos Aires e a Rio Grande em busca de
mercado para seus produtos.
Durante
os dois meses em que permaneceu em Rio Grande , Luccock descreve em seu diário (LUCCOCK,
John. Notas sobre o Rio de Janeiro e
partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo:
Ed. da Universidade de São Paulo, 1975) as realizações e frustrações de suas
atividades, tornando-se a melhor fonte de viajantes estrangeiros para o
entendimento da vida econômica e social da cidade na primeira década do século
XIX.
Um
lugar comum nas descrições dos viajantes estrangeiros é a dificuldade de acesso
para desembarque no porto devido aos bancos de areia e a comprovação da
indispensável atuação dos práticos. Conforme Luccock, após muita ansiedade dos
tripulantes e passageiros do navio em que estava, “surgiu um bote que veio ao
nosso encontro, com um piloto a bordo que, por meio de sinais apropriados”,
indicou a rota que a embarcação devia seguir. Na chegada pela barra, o inglês
fez a seguinte observação das cercanias: “Para leste somente areões soltos eram
visíveis; mais além, uma ampla linha d’água, a Baía da Mangueira e ainda mais
longe a pequenina e linda cidadezinha branca de São Pedro do Sul, mais
comumente chamada de Rio Grande”.
O ancoradouro do navio prossegue Luccock,
ficava “rente à aldeia de São Pedro do Norte” e a três milhas da “cidade
principal, já que os bancos de areia não permitiram uma maior proximidade”. Da
entrada do rio até o ancoradouro, por uma extensão de nove milhas “predominam
as mesmas obstruções, deixando apenas um canal estreito e intrincado com água
escassamente suficiente para um brique
bem carregado”.
Ao
desembarcar, o inglês foi conduzido por uma sentinela à presença do Governador
Dom Diogo de Souza que o encaminhou para contatos com “meus conterrâneos e a
outras pessoas cujas relações pudessem ser-me agradáveis”. A cidade, situada quase
ao nível das águas “contém cerca de quinhentas habitações, e o total de
habitantes fixos talvez ascenda a dois mil”. A distribuição urbana está
constantemente ameaçada pelos personagens
areia e vento:
A
fileira principal de casas corre em direção leste-oeste, gozando de suas
janelas de rótula a perspectiva de uma ilha extensa, chata e despida, do outro
lado de um canal de cerca de seiscentas jardas de largura. Por trás dessa
fileira de casas, que é realmente bonita e graciosa, fica uma rua de cabanas pequeninas
e baixas, feitas de barro e cobertas de palha, habitações das classe mais
baixas. Nesse lugar, aquelas acumulações de areia de que já falamos,
freqüentemente se dão, e, durante a minha estada em São Pedro , muitas dessas
casas foram quase soterradas e muito danificadas. Se não fosse essa barreira,
as casas melhores estariam expostas ao mesmo destino.(p.117)
Ao
descrever os edifícios públicos e as residências “das personalidades mais
iminentes da comunidade”, o comerciante destacava a “Catedral, cuja singeleza,
tanto por fora como por dentro, não impede que seja um belo edifício”. A igreja, erguida na metade do século XVIII,
apresenta em seu interior “espaços gradeados reservados aos fiéis homens,
enquanto que no centro se acha a localidade das mulheres”. O prédio possui uma
altura de quinze pés acumulando-se a areia a igual altura. O vento soprando
constantemente, “fez com que a areia se afastasse das paredes formando uma
espécie de desfiladeiro profundo e sombrio que conduz à porta”.
A
permanência de dois meses em
Rio Grande não foi um
sucesso financeiro, mas em termos de registro da economia e sociedade nos
primórdios do século XIX, os escritos preservaram importantes detalhes do
modo-de-vida. O desenvolvimento capitalista e a expansão de um mercado
consumidor provincial não correspondeu a expectativa de Luccock, pois não
encontrou em Rio Grande
e em suas adjacências, campo suficiente para a comercialização de mercadorias
devido a restrita circulação de numerário e de público consumidor. Os escravos
e a população campeira, estavam à margem do consumo e representavam
considerável parcela dos habitantes. Apesar do fracasso econômico, o
comerciante inglês tinha uma forte expectativa de crescimento econômico e
populacional para a então Vila do Rio Grande de São Pedro. O porto representava
a dinâmica de interação da Província com o demais centros comerciais:
A
proximidade do oceano, porém, garante-lhe uma preeminência permanente. É aqui
que todos os navios tem que entregar seus papéis, sendo que a maior parte deles
raramente segue adiante. É aqui também que os principais negociantes residem ou
tem seus agentes estabelecidos; de tal maneira que ela pode ser considerada
como o maior mercado do Brasil Meridional. (p. 116-117)
Capa da edição de 1942 da obra de Luccock. |
Cadeira de arruar. |
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