O grupo lingüístico Tupi-Guarani dispõe,
desde o século 16, de ampla documentação etno-histórica para estudo. A
dispersão espacial dos Tupi-Guarani históricos corresponde a uma vasta área
geográfica, ocupando basicamente todo o centro-leste da América do Sul.
Os Tupi-Guarani relatados etnograficamente
eram horticultores de floresta tropical e subtropical, cultivando
principalmente a mandioca, o milho, batata-doce, feijões etc, fazendo uso da
caça e pesca para obtenção de proteínas, sendo que toda uma tecnologia foi
desenvolvida para permitir este tipo de
subsistência. Viviam basicamente em grandes casas comunais de madeira e palha,
onde a coesão social superava os laços políticos que definiam organizativamente
o grupo.
Estamos frente a uma sociedade auto-gerida
onde a religião é a sociedade e não a alienação desta sociedade e onde a
contra-ordem é fruto da ordem interna gerada pelas transformações na
organização social. São forças sociais que atuam numa sociedade que mantém a
sua integridade cultural e não a reação social – messiânica – frente à divisão
e reincorporação desta divisão num todo incoerente e artificioso.
O DISCURSO DOS PROFETAS: A TERRA SEM MAL
O messianismo é derivado da agressão externa
que atinge a essência social de um grupo. O profetismo não necessita de um
agressor externo – como por exemplo, o contato com a civilização ocidental -,
pois o seu mal é fruto da própria dinâmica da sociedade. O profetismo não é uma
reação a um agressor, mas o apego do passado mítico e a negação total do social enquanto ordem estabelecida.
A
organização Tupi-guarani não está fundada na divisão. Para os ocidentais é muito brumoso pensar uma sociedade assim,
afinal, a divisão é a lógica em nosso contexto histórico. É difícil imaginar o
social, o político e o mito pensado numa unidade coerente e não como campos
significativos onde às esferas de poder se articulam. Mas quem eram e o que
diziam os profetas?
A
vida religiosa dos Tupi-Guarani centrava-se no xamanismo, isto é, certos
personagens chamados xamãs eram os
intermediários na ligação entre o mundo humano e o sobrenatural, desempenhando
as funções terapêuticas de curar doentes, de predizer o futuro, garantir um bom
tempo para as colheitas, fazer a interpretação dos sonhos ou visões. Estas
sociedades atuam como uma unidade coerente onde o social, o religioso, o
cotidiano e o sobrenatural, não apresentam uma nítida linha de demarcação. E
dentro desta unidade, o xamã
reveste-se de essencialidade por interagir em cada esfera indivisa da vida
individual ou coletiva do grupo.
Estes
xamãs, atuavam na difusão dos heróis
culturais e na manutenção da tradição de cataclismologia que eram os
fundamentos do mundo mítico Tupi-Guarani. A documentação etno-histórica
refere-se à existência de personagens enigmáticos chamados caraí que se diferenciavam dos xamãs
pela ausência da prática ritual e terapêutica e, por circunscreverem suas
atividades ao campo da palavra. O poder social do discurso era utilizado pelo caraí para transmitir sua replicante
mensagem de ruptura com as mudanças que a sociedade vinha sofrendo. Os profetas
afirmavam o “caráter mau do mundo”, fruto de mudanças que irromperam na vida
social e que ameaçavam destruir a sociedade e trazer a infelicidade ao grupo. As lentas desfigurações que a sociedade Tupi-Guarani
estava vivendo, teria sido trabalhada pelos caraí
como sendo a desintegradora “força do mal” engendrada pela própria prática
social, onde apenas o espírito errante da procura de uma Terra sem Mal poderia
salvar a sociedade da doença profunda que é a desigualdade.
O
discurso dos profetas exortava os índios a abandonarem a “terra má” e irem em
busca da Terra sem Mal. Para Pierre Clastres, esta última é, de fato, o lugar
de repouso dos deuses, onde as flechas partem sozinhas a procura da caça, onde
o milho cresce sem que ninguém cuide dele, território dos adivinhos, do qual
toda alienação está ausente, território que foi, antes da destruição da
primeira humanidade pelo dilúvio universal, o lugar comum aos humanos e aos
divinos. É portanto o retorno ao passado mítico que fornecia aos profetas o
meio de escapar ao mundo presente.
Uma
carga de destruição de toda regra e norma na tentativa de subverter a ordem que
se institucionalizava, a ordem de destruição da sociedade enquanto unidade não
autoritária.
As
palavras desejam conduzir a um lugar em que o divino e o humano se conjuguem
numa ordem harmônica, na contra-ordem do real, fora do espaço e do tempo do
social. O nome deste lugar, conforme Hélène Clastres é Terra sem Mal um espaço
sem lugares marcados, onde se apagam as relações sociais, um tempo sem pontos
de referência, em que se abolem as gerações. É o aguyje, a completude; no conjunto dos homens cada um se vê
restituído a si próprio, suprimida a dupla distância que os fazia dependentes
uns dos outros e separados dos deuses – lei de sociedade, lei de natureza: o
mal radical. Para alcançar esta verdade é necessário abandonar o sedentário,
negar o já estabelecido e perder todas as certezas. É preciso permanentemente
renunciar ao enraizamento e nutrir o espírito vagabundo da busca.
O
encontro com o mítico é a fusão do humano com o sobrenatural. Talvez o impulso
de negação não apenas da divisão social, mas, do próprio social enquanto forma
de coletivização da historicidade do indivíduo.
O
caminhar errante de um espírito vagabundo. Talvez aqui a solidão dos profetas
se torne mais socializada: na busca coletiva de uma historicidade que somente o
indivíduo pode alcançar.
O DESENRAIZAMENTO
Assim
como nenhuma organização social é paradisíaca, o desenraizamento não garante a
felicidade. É preciso criar um paraíso que não está neste mundo e que nem
poderia estar; um lugar onde a temporalidade não é histórica, onde o tempo não
possui referenciais entre o antes e o depois, onde o tempo basta-se em si.
Sociedade primitivas ou sociedade com Estado: não há garantias em ser feliz.
Numa
especulação a-diacrônica, os profetas já deviam saber que escolher entre o
Estado burguês e a barbárie é demonstrar falta de imaginação: não há escolhas a
fazer pois qualquer escolha estará sempre para além das possibilidades de
concretização. Os profetas também deveriam saber que não podemos ser deuses
assim como não podemos ser rochas; nem
deuses e nem rochas, mas homens ou seja, conflito.
As
possibilidades estarão sempre num plano mágico de realização, estarão sempre no
impulso criativo do sujeito. Se os Tupi-Guarani tinham a Terra sem Mal para
buscar, hoje se vive não mais numa aldeia grupal e sim numa aldeia global. Os
caminhos das florestas já foram percorridos e não há mais espaço no planeta
para uma Terra sem Mal. O caminhar vagabundo continua sem direção... (matéria publicada em 1999).
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