Porto do Rio Grande em 1908

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domingo, 6 de agosto de 2017

A TERRA SEM MAL

O grupo lingüístico Tupi-Guarani dispõe, desde o século 16, de ampla documentação etno-histórica para estudo. A dispersão espacial dos Tupi-Guarani históricos corresponde a uma vasta área geográfica, ocupando basicamente todo o centro-leste da América do Sul.
Os Tupi-Guarani relatados etnograficamente eram horticultores de floresta tropical e subtropical, cultivando principalmente a mandioca, o milho, batata-doce, feijões etc, fazendo uso da caça e pesca para obtenção de proteínas, sendo que toda uma tecnologia foi desenvolvida  para permitir este tipo de subsistência. Viviam basicamente em grandes casas comunais de madeira e palha, onde a coesão social superava os laços políticos que definiam organizativamente o grupo.
Estamos frente a uma sociedade auto-gerida onde a religião é a sociedade e não a alienação desta sociedade e onde a contra-ordem é fruto da ordem interna gerada pelas transformações na organização social. São forças sociais que atuam numa sociedade que mantém a sua integridade cultural e não a reação social – messiânica – frente à divisão e reincorporação desta divisão num todo incoerente e artificioso.

O DISCURSO DOS PROFETAS: A TERRA SEM MAL


O messianismo é derivado da agressão externa que atinge a essência social de um grupo. O profetismo não necessita de um agressor externo – como por exemplo, o contato com a civilização ocidental -, pois o seu mal é fruto da própria dinâmica da sociedade. O profetismo não é uma reação a um agressor, mas o apego do passado mítico e a negação total do social  enquanto ordem estabelecida.
    A organização Tupi-guarani não está fundada na divisão. Para os ocidentais é  muito brumoso pensar uma sociedade assim, afinal, a divisão é a lógica em nosso contexto histórico. É difícil imaginar o social, o político e o mito pensado numa unidade coerente e não como campos significativos onde às esferas de poder se articulam. Mas quem eram e o que diziam os profetas?
      A vida religiosa dos Tupi-Guarani centrava-se no xamanismo, isto é, certos personagens chamados xamãs eram os intermediários na ligação entre o mundo humano e o sobrenatural, desempenhando as funções terapêuticas de curar doentes, de predizer o futuro, garantir um bom tempo para as colheitas, fazer a interpretação dos sonhos ou visões. Estas sociedades atuam como uma unidade coerente onde o social, o religioso, o cotidiano e o sobrenatural, não apresentam uma nítida linha de demarcação. E dentro desta unidade, o xamã reveste-se de essencialidade por interagir em cada esfera indivisa da vida individual ou coletiva do grupo.
         Estes xamãs, atuavam na difusão dos heróis culturais e na manutenção da tradição de cataclismologia que eram os fundamentos do mundo mítico Tupi-Guarani. A documentação etno-histórica refere-se à existência de personagens enigmáticos chamados caraí que se diferenciavam dos xamãs pela ausência da prática ritual e terapêutica e, por circunscreverem suas atividades ao campo da palavra. O poder social do discurso era utilizado pelo caraí para transmitir sua replicante mensagem de ruptura com as mudanças que a sociedade vinha sofrendo. Os profetas afirmavam o “caráter mau do mundo”, fruto de mudanças que irromperam na vida social e que ameaçavam destruir a sociedade e trazer a infelicidade ao grupo. As lentas desfigurações que a sociedade Tupi-Guarani estava vivendo, teria sido trabalhada pelos caraí como sendo a desintegradora “força do mal” engendrada pela própria prática social, onde apenas o espírito errante da procura de uma Terra sem Mal poderia salvar a sociedade da doença profunda que é a desigualdade.
         O discurso dos profetas exortava os índios a abandonarem a “terra má” e irem em busca da Terra sem Mal. Para Pierre Clastres, esta última é, de fato, o lugar de repouso dos deuses, onde as flechas partem sozinhas a procura da caça, onde o milho cresce sem que ninguém cuide dele, território dos adivinhos, do qual toda alienação está ausente, território que foi, antes da destruição da primeira humanidade pelo dilúvio universal, o lugar comum aos humanos e aos divinos. É portanto o retorno ao passado mítico que fornecia aos profetas o meio de escapar ao mundo presente.
        Uma carga de destruição de toda regra e norma na tentativa de subverter a ordem que se institucionalizava, a ordem de destruição da sociedade enquanto unidade não autoritária.
        As palavras desejam conduzir a um lugar em que o divino e o humano se conjuguem numa ordem harmônica, na contra-ordem do real, fora do espaço e do tempo do social. O nome deste lugar, conforme Hélène Clastres é Terra sem Mal um espaço sem lugares marcados, onde se apagam as relações sociais, um tempo sem pontos de referência, em que se abolem as gerações. É o aguyje, a completude; no conjunto dos homens cada um se vê restituído a si próprio, suprimida a dupla distância que os fazia dependentes uns dos outros e separados dos deuses – lei de sociedade, lei de natureza: o mal radical. Para alcançar esta verdade é necessário abandonar o sedentário, negar o já estabelecido e perder todas as certezas. É preciso permanentemente renunciar ao enraizamento e nutrir o espírito vagabundo da busca.
       O encontro com o mítico é a fusão do humano com o sobrenatural. Talvez o impulso de negação não apenas da divisão social, mas, do próprio social enquanto forma de coletivização da historicidade do indivíduo.
      O caminhar errante de um espírito vagabundo. Talvez aqui a solidão dos profetas se torne mais socializada: na busca coletiva de uma historicidade que somente o indivíduo pode alcançar.

O DESENRAIZAMENTO

    Assim como nenhuma organização social é paradisíaca, o desenraizamento não garante a felicidade. É preciso criar um paraíso que não está neste mundo e que nem poderia estar; um lugar onde a temporalidade não é histórica, onde o tempo não possui referenciais entre o antes e o depois, onde o tempo basta-se em si. Sociedade primitivas ou sociedade com Estado: não há garantias em ser feliz.
    Numa especulação a-diacrônica, os profetas já deviam saber que escolher entre o Estado burguês e a barbárie é demonstrar falta de imaginação: não há escolhas a fazer pois qualquer escolha estará sempre para além das possibilidades de concretização. Os profetas também deveriam saber que não podemos ser deuses assim como  não podemos ser rochas; nem deuses e nem rochas, mas homens ou seja, conflito.
      As possibilidades estarão sempre num plano mágico de realização, estarão sempre no impulso criativo do sujeito. Se os Tupi-Guarani tinham a Terra sem Mal para buscar, hoje se vive não mais numa aldeia grupal e sim numa aldeia global. Os caminhos das florestas já foram percorridos e não há mais espaço no planeta para uma Terra sem Mal. O caminhar vagabundo continua sem direção... (matéria publicada em 1999). 


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