Está disponível para leitura ou download o livro "História do Rio Grande do Sul - Período Colonial". É o volume dois da série voltada à formação histórica Rio-Grandense que terá como novo lançamento (2019) o volume três "Período Imperial".
A proposta deste blog é instigar a leitura, o conhecimento e a investigação dos processos históricos. Livros com temas ligados a História do RS e Hist. do Município do Rio Grande estão disponíveis para leitura ou baixar (basta clicar em cima da imagem da capa do livro ou copiar o link com o botão direito do mouse). Também serão abordados temas de "História e Terror", "Literatura Fantástica", "Graphic Novel-HQ" etc. Administradora: Rejane Martins Torres. Facebook: Professor Torres
Porto do Rio Grande em 1908
quarta-feira, 31 de outubro de 2018
terça-feira, 30 de outubro de 2018
PRAÇAS DA CIDADE DO RIO GRANDE
PRAÇA JÚLIO DE CASTILHOS
Praça Júlio de Castilhos por volta de 1930. |
Conforme Antenor Monteiro em sua coluna Rebuscos (Jornal Rio Grande) a Praça
Júlio de Castilhos já foi denominada de Praça do Largo da Quitanda, São Pedro
de Alcântara, São Pedro e Largo do Teatro (em referência a localizar-se nas
imediações do Teatro Sete de Setembro). Em documento da Câmara Municipal de 27
de março de 1824, o juiz almotacé propõe a abertura da “travessa da Alfândega
(atual rua Andradas) até o campo e fazer
uma praça no fim das ruas do Pito (rua República do Líbano) e do Fogo (rua Luiz
Loréa).” Outra referência sobre o surgimento da praça foi feita em 6 de outubro
de 1827, quando a Câmara pede ao Comandante da Vila do Rio Grande de São Pedro
para continuar a mandar prisioneiros para a terraplanagem da Praça São Pedro,
onde acordaram fundar a Casa da Câmara e a Cadeia. Na planta da Vila do Rio
Grande de São Pedro do ano de 1829 foi feita a seguinte referência: “A Praça S.
Pedro criada pelo Meritíssimo Juiz de Fora, desta Vila, Agostinho Moreira
Guerra, em 1828, que depois desta planta feita se soube”. Portanto, as
primeiras iniciativas para o surgimento da Praça recuam a 1824 e a sua
oficialização a 1828. A Praça também não tem relação com a Igreja Matriz de São
Pedro ou com o Largo Dr. Pio.
Conforme
o Código de Posturas de 17 de dezembro de 1836, a Praça era um espaço para a
venda de verduras, frutas e produtos oriundos das localidades vizinhas como o
Povo Novo e que chegavam de carretas a cidade do Rio Grande. Esta prática
começou a ser oficialmente questionada em 1855, pelos vereadores Eufrásio Lopes
de Araújo e Miguel Tito Sá, os quais argumentam que “não convinha que aí
estacionassem as carretas que vinham do Povo Novo pelo abuso de conservarem
soltos os animais que as puxavam”. Além deste espaço para a uma espécie de
Feira Livre a praça também teve a função essencial para o centro urbano ligado
a coleta de água. A Câmara em sessão de 10 de julho de 1834 resolveu utilizar
pedras e tijolos que haviam “sobrado dos poços do Moinho de Vento e manda
construir um Poço na São Pedro”. Posteriormente, a Companhia Hidráulica que em
1874 importou da França os chafarizes colocados nas praças da cidade
construiu no lugar do poço uma coluna de ferro com torneiras laterais. No alto
desta coluna de ferro ficava a Vênus no Banho, estátua que é a mais antiga da
cidade em espaço público e que se encontra pelo menos desde a década de 1910 na
Praça Tamandaré.
A
arborização da Praça recua a 1878 aí também funcionou o Circo de Cavalinhos
(assim como no Largo Dr. Pio) e nas proximidades do Teatro Sete de Setembro
existiu um Tambo onde se vendia leite diretamente a população. Nesta área um
comerciante proprietário da loja de fazendas Ao Torrador, Pedro Lourenço
de Oliveira, o Pedro Torrador, obteve a concessão para edificar aí um Mercado,
concessão que foi anulada em 1890.
Fotografia da praça por volta de 1925. Relatório da Prefeitura Municipal do Rio Grande. |
O nome
de Praça Júlio de Castilhos foi dado pelo Decreto Municipal n. 16, de 15 de
novembro de 1894, em homenagem da Intendência Municipal a Júlio Prates de
Castilhos, chefe do Partido Republicano Rio-Grandense. O busto em bronze que foi edificado a mando da Intendência Municipal é obra do
escultor Décio Vilares e o pedestal foi feito na Escola de Engenharia de Porto
Alegre sendo originalmente colocado na Praça Marques do Herval em 21 de abril
de 1918. Em 1925, com a remodelação da Praça Júlio de Castilhos, o monumento
foi para ela transferido. Na época ficou próximo a um dos grandes centros de
fluxo urbano que era o Teatro Sete de Setembro (1832), onde poderia ser visto pelos
populares.
PRAÇA SETE DE SETEMBRO
Cartão-postal da praça Sete de Setembro. Foto-postal Colombo. Meados dos anos 1950. |
Este é o
mais antigo espaço público e urbano da formação luso-brasileira no Rio Grande
do Sul por estar situada nas imediações do Forte Jesus-Maria-José a qual é a
mais antiga fortificação que de forma sistemática buscou fixar a presença
portuguesa no extremo Sul do Brasil. Com o surgimento do Forte em fevereiro de 1737,
surgiu uma cacimba para captação de água próxima a face com a atual rua
República do Líbano. Em mapa da Vila do Rio Grande de 1829 esta área é chamada
de Praça do Poço. O poço foi encontrado quando de escavações arqueológicas realizadas pela equipe do prof. Pedro Mentz Ribeiro na década de 1990. Anteriormente teve os nomes de Largo do Forte, Largo do Poço
e Lago da Conceição em referência a Igreja da Conceição que foi inaugurada em
dezembro de 1874. Oficialmente, pela Resolução de 31 de julho de 1858 a Câmara
Municipal em homenagem a Independência do Brasil lhe da à denominação de Praça
Sete de Setembro. Neste local, nas décadas de 1850-60, se realizavam as comemorações do dia máximo da Pátria.
A Câmara
Municipal manda plantar em 1854 álamos e figueiras no “Largo do Poço”. Não
dando bons resultados, em 1858 são plantados umbus. Em 1874, a Companhia
Hidráulica instala neste local o seu primeiro chafariz trazido da França e construído na Fundição Durrene. O chafariz foi removido na década de 1910.
Em 1883, somente a
face norte estava calçada sendo as outras faces “verdadeiros charcos” como
afirmou um vereador. Este calçamento, ainda existente, é um dos mais antigos da
cidade junto com o da rua Luiz Loréa que desemboca na Praça devendo remontar as
décadas de 1860-70. Em 1884, foi apresentado à Câmara um projeto de aterro,
calçamento e arborização. Em 1887, foi organizada uma comissão para angariar
donativos para o ajardinamento da Praça Sete de Setembro e também da Praça São
Pedro. O calçamento das três ruas no padrão “lisboeta” foi realizado em 1925.
Neste mesmo ano, a 10 de fevereiro por iniciativa de uma Comissão de
Conselheiros da cidade, foi inaugurado o monumento do Barão do Rio Branco. O
bronze foi feito em Porto Alegre pela firma H. Brachsler & Filhos e o
pedestal por Cardório & de Angeli.
Cartão-postal da Praça Sete de Sembro por volta de 1940. |
Ao lado do Forte de
Santana do Estreito foi nesta praça e em seu entorno é que surgiram as
primeiras modalidades urbanas e sociabilidades da nascente formação
luso-brasileira, a capela do Forte Jesus-Maria-José desenvolveu as primeiras
práticas religiosas e registros paroquiais em 1737. Posteriormente, nas décadas
seguintes é que surgirá a rua Direita (atual Bacelar) e a rua da Praia (atual
Marechal Floriano) redirecionando o fluxo urbano. A revitalização da Praça Sete
de Setembro permitiria contar uma parte da história luso-brasileira no Rio
Grande do Sul.
Velódromo (corrida de bicicletas) na praça Sete de Setembro. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense. |
domingo, 28 de outubro de 2018
MIRAGUAIA
A miraguaia ou
miragaia (Pogonis cromis; Linnaeus, 1766) é também chamada de burriquete,
corvina negra e Black drum consistindo num peixe que deixou um legado de
histórias para os pescadores da Barra do Rio Grande mas que atualmente, devido
a captura excessiva realizada entre as décadas de 1950-1980 está quase desaparecida
do litoral do Rio Grande do Sul. É um peixe de porte avantajado que pode
atingir mais de 1,40 metros de comprimento, cerca de 40 kg de peso e pode viver
por mais de 40 anos. Conforme o livro “Peixes Estuarinos e Costeiros” de
autoria de Luciano Gomes Fischer, Luiz Eduardo Dias Pereira e João Paes Vieira (2.
ed. – Rio Grande: Luciano Gomes Fischer, 2011), a miraguaia “ocorre de
Massachusetts, EUA, ao longo das Antilhas e norte da América do Sul, até a
Argentina. É uma espécie demersal encontrada em águas costeiras. No sul do
Brasil ocorre até 40 m de profundidade”. É lembrada por ser um peixe que
propicia uma briga demorada exigindo muita energia do pescador que utilizar
molinete ou linha de mão. Algumas décadas atrás - comprovado por fotografias
tiradas nos Molhes da Barra e no Clube de Regatas Rio Grande-, era um dos peixes
mais procurados pelos pescadores e dos mais festejados quando retirado das
águas, sendo cortado em postas ou em largos files para salgamento. Em 1885 a miraguaia
já constava na lista dos peixes mais valorizados que chegavam ao Mercado
Público para venda e exportação, conforme artigo do naturalista alemão Hermann
Von Ihering.
Vou destacar um documento pouco conhecido (de
1798, final do século XVIII) que já apontava a Miraguaia como uma promissora e
lucrativa atividade que era equiparada a pesca do bacalhau. A ocupação
sistemática do atual município do Rio Grande só ocorreu cerca de 4 décadas depois
da escrita deste documento, mas o potencial pesqueiro já se fazia divulgar em
Portugal em relação à Barra do Rio Grande.
O documento foi escrito por Hipólito José da
Costa Pereira (publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Rio de Janeiro: 1858, vol. 21) que foi encarregado pelo Príncipe
Regente de Portugal (D. João de Bragança) para viajar a América Setentrional e
enviar informações sobre as atividades econômicas realizadas por
norte-americanos e ingleses, especialmente as atividades pesqueiras. Ele partiu
de Lisboa aos 16 de outubro de 1798 e chegou na Filadélfia após 59 dias de
viagem marítima.
Pereira deixou documentado um dos mais
antigos registros sobre o potencial pesqueiro do litoral de Santa Catarina e
junto a Barra do Rio Grande de São Pedro.
“Desde que os Holandeses deixaram as suas
pescarias pelo risco que os navios estão expostos, de serem tomados pelos
Ingleses, os Americanos suprem a Europa com azeite de peixe, espermacete, barba
de baleia além da grande quantidade de peixe salgado que exportam para
Portugal, Espanha e portos do Mediterrâneo. No artigo das baleias, se nos
propusermos estabelecer os mesmos regulamentos e leis que eles têm, indubitável
que este extenso ramo de comércio cairá exclusivamente em nossas mãos, por que
nós temos sobre eles estas vantagens: 1. maior barateza nas soldadas dos
marinheiros por que se achando entre nós bastante oito ou dez mil reis por mês,
nos portos da América, precisam pagá-los dezesseis e vinte e quatro mil réis
ainda as mais das vezes custa a encontrá-los; 2. Os Americanos tem de fazer sua
viagem da América a costa do Brasil, onde fazem principalmente as pescas e
depois à volta; a demora, despesa, risco e empate de dinheiro, que ha durante
este tempo, é salva para nós, que fazemos pesca ao pé das nossas Costas. 3. Os
nossos navios que pescam pelas costas do Brasil tem lá os nossos portos, onde
podem facilmente acolher-se para se repararem, ou proverem do que houverem
mister; comodidade que falta também aos Americanos, pois precisam estar sobre a
vela desde que saem, até que acabam a pescaria. Os Americanos porém estão de
tal modo experimentados neste tráfico, que meu plano seria convidar um número
de famílias de pescadores na América, das que vivem principalmente em Nantuket,
fazê-las estabelecer em dois pontos diferentes no Brasil, adir-lhes marinheiros
Portugueses, associar-lhes nos fundos negociantes do país usando depois disto
para com os pescadores das mesmas liberalidades e isenções que os Americanos
tem; não pode haver a menor dúvida, que em dois anos, não mais, o comércio das
baleias estará inteiramente nas mãos do Portugal. Quanto ao peixe salgado ha
toda probabilidade, que o bacalhau se encontrará em abundancia nas costas do
Sul, de S. Catarina para baixo mas ainda caso não se ache, temos miraguaia, um
peixe de arribação de que Rio Grande de S. Pedro, e outros portos imediatos,
abundam em tal quantidade, que podem suprir Portugal de peixe salgado, com toda
fartura, mais barato do que importam os Ingleses e Americanos. Se V. Ex. supuser
que este artigo merece alguma atenção, terei grande satisfação de reduzir ordem
as minhas ideias sobre isto, de ter honra de às apresentar a V. Ex. ou a Real
Junta do Comércio, ou mesmo de conferir, explanar circunstanciadamente com
qualquer pessoa que V. Ex. queira encarregar com execução deste projeto”.
Miraguaia. In: http://ambientes.ambientebrasil.com.br |
sábado, 27 de outubro de 2018
ESCAVAÇÕES NA CATEDRAL DE SÃO PEDRO
Igreja Matriz de São Pedro por volta de 1920. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense. |
Os trabalhos de restauração da Catedral
de São Pedro foram amplos: arquitetura, escultura, história, arqueologia etc. A
equipe da FURG coordenada pelo prof. Dr. Pedro Augusto Mentz Ribeiro realizou
escavações no interior do templo em busca de evidências históricas ligadas aos
enterramentos. As escavações estão completando 22 anos (1996) e ressaltaram a
importância deste que é o prédio (de ocupação contínua) mais antigo do Rio
Grande do Sul. O artigo com parte dos dados levantados foi publicado no livro de
Pedro Augusto Mentz Ribeiro (Org.) Escritos
sobre Arqueologia. Rio Grande: FURG, 2001, Coleção Pensar a História
Sul-Rio-Grandense, n.14.
“As escavações na catedral de São Pedro, cidade do Rio Grande, revelaram
alguns detalhes importantes. Inaugurada em 1755, é a primeira igreja no Rio Grande
do Sul. Conforme o Monsenhor Ruben Neis, algumas pessoas eram enterradas no
interior da catedral. Quando da sua restauração, particularmente no ano de
1996, realizamos dois cortes experimentais no seu interior, um na nave e outro
junto ao altar, totalizando 5 043m2 e profundidade 1,30m. O corte na
nave, da mureta para seu interior, o material encontrava-se perturbado até 1,0m
de profundidade, revelou o seguinte: a composição da estrutura do alicerce; foi
descoberto uma mureta, paralela a parede lateral e ao longo de toda a nave
(servia para suportar as traves sobre as quais se assentava o assoalho) -
alicerce e mureta foram construídos com tijolos maciços; grande quantidade de
ossos e de dentes humanos de indivíduos jovens e adultos, botões, contas de rosário,
alfinetes, fragmentos de louça (faiança, faiança fina, porcelana, cerâmica
colonial), fivelas, fragmentos de caixão de madeira, tecido (verde) de caixão,
solas e saltos de sapatos de crianças e adultos, homens e mulheres, uma moeda
do Império brasileiro (1825-1835). Entre 1,0 e 1,30m registramos a ocorrência
de dois sepultamentos estendidos, em decúbito dorsal, os braços dobrados sobre
o peito e a mão direita ultrapassando a esquerda e colocada sobre o antebraço
esquerdo, os pés voltados para o altar, um com o crânio na vertical e o outro
levemente inclinado para a direita.
A escavação entre a mureta e a parede externa da nave revelou entulhos tais como terra, areia, cascote, conchas, ossos de bovinos, aves, peixes (inclusive escamas), etc.
A escavação entre a mureta e a parede externa da nave revelou entulhos tais como terra, areia, cascote, conchas, ossos de bovinos, aves, peixes (inclusive escamas), etc.
As escavações
junto ao altar, com 1,50 x 2,05m, lado esquerdo, revelaram a mesma disposição
da nave, ou seja: junto à parede até 50cm de largura, entulhos e, após, os
sepultamentos com material: ossos e dentes humanos esparsos, até fragmentos de
caixão, tecido verde, pinos, fivelas, solas e saltos de sapatos de adultos,
botões, etc., perturbado até 1,0m de profundidade. Abaixo disto encontramos um
sepultamento articulado e outros dois atingidos parcialmente pela escavação.
Todos na mesma posição dos dois da nave, ou seja, estendidos com os pés
voltados para o altar e o crânio na vertical.
Estudos de
Antropologia Física, realizados pelo Dr. Horácio Manuel Cigliano da Silva,
legista do Hospital Universitário da FURG, revelaram o seguinte: Sepultamento
da nave: idade entre 45 e 50 anos, sexo masculino, altura de mais ou menos
1,60m, com cárie em alguns dentes (somente um analisado). Sepultamento do
altar: idade entre 50 e 60 anos, sexo masculino, altura entre 1,60 e 1,70m,
indivíduo magro, franzino; foram constatadas duas lesões ósseas na superfície
externa do frontal e exostose no osso do maxilar inferior. Conforme os dados
históricos, o governador Brigadeiro Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara
foi enterrado no altar do lado do evangelho que corresponde ao lado esquerdo do
observador.
A escolha do local da escavação foi guiada por esta informação. Tratar-se-ia
efetivamente do governador o sepultamento encontrado, uma vez que existem
outros naquela área?
Comparamos os
dados históricos com os antropológicos físicos: sexo, idade (o governador ao
falecer tinha 59 anos de idade) e “causa mortis”. Conforme a História o
governador teria morrido de diarréia, após longa (4 anos) enfermidade. Os
sinais no crânio e a exostose no maxilar revelam que ele teria morrido de uma
doença infecto-contagiosa crônica, que evoluía em estágios. Dentre as doenças
infecciosas, a sífilis é a lesão característica do esqueleto estudado. Esta
poderia ter sido adquirida por transfusão de sangue (descartada para a época:
1801) ou doença venérea. Sebastião da Câmara era solteiro, militar, português,
um homem que se deslocava muito (demarcou nossas fronteiras com o Uruguai) e
que, devido à promiscuidade, poderia ter adquirido aquele tipo de doença. A
sífilis evolui em quatro estágios, sendo que afeta os ossos no terceiro. Neste,
atinge os órgãos, produzindo lesões necróticas que levam a ulcerações na camada
mucosa dos órgãos ocos e, quando cicatrizam, diminuem o lume, produzindo prisão
de ventre e depois diarréia. Se o processo continuar pode causar a morte devido
às alterações hidro-eletrolíticas, diminuição de potássio com arritmia cardíaca”.
A
urna com os ossos do Brigadeiro Sebastião da Câmara está em exposição no
interior da Igreja de São Pedro.
sexta-feira, 26 de outubro de 2018
CENAS PLATINAS
Muitas das imagens até o presente compartilhadas como sendo do passado
histórico Rio-Grandense possui um conexão direta ou indireta com os cenários do
Rio da Prata, em especial, os do Uruguai e da Argentina. Mesmo que se expresse
de forma mais sistemática nas áreas de fronteira, muitas das cenas cotidianas
são comuns à formação cultural do Rio Grande do Sul. A maior parte das fontes
iconográficas que demarcam o dia-a-dia destas populações dos séculos XVIII e
XIX remete aos documentos espanhóis.
Apenas como aproximação e não como necessário reflexo, são reproduzidas
algumas cenas dos usos e costumes que compunham a materialidade e expressões
culturais do pampa platino-rio-grandense. A autoria é do pintor argentino
Carlos Morel (1813-1894) que retratou
cenas do cotidiano platino no século XIX. As imagens são do livro “Usos y
Costumbres del Rio de la Plata” (Buenos Aires, 1845).
quarta-feira, 24 de outubro de 2018
A CASA DA RODA DOS EXPOSTOS
“Durante o período colonial, muitas mulheres
viram-se diante da necessidade de abandonar os próprios filhos. Não é exagero
afirmar que a história do abandono de crianças é a história secreta da dor
feminina, principalmente da dor compartilhada por mulheres que enfrentavam
obstáculos intransponíveis ao tentar assumir e sustentar os filhos legítimos ou
nascidos fora das fronteiras matrimoniais”. Renato Venâncio. Maternidade
Negada In: PRIORE, Mary (Org.) História das Mulheres no Brasil. São
Paulo: Contexto, 1997.
O abandono de bebes recém-nascidos ou de crianças era uma
prática comum nos séculos XVII e XVIII no Brasil colonial. Meninas e meninos
eram abandonados em calçadas, praias ou terrenos baldios, falecendo por falta
de alimentos, pelo frio ou passando a conviver com as lixeiras, e tendo por
companhia cães, porcos e ratos existentes nas ruas fétidas das desorganizadas e
nascentes cidades brasileiras.
Ainda no século XVI os padres jesuítas criaram colégios
para receberem os meninos índios que perderam a família devido às pestes ou
conflitos com os colonizadores europeus. O abandono das crianças
intensificou-se entre a população portuguesa no século XVII, especialmente com
a dinamização econômica e incremento demográfico.
O catolicismo lusitano era fundado na crença da danação das
almas que faleciam sem receber o sacramento do batismo ou a assistência
espiritual cristã (ficando no limbo uma espécie de purgatório para crianças),
portanto o abandono dos menores era fator de indignação. A compreensão de
alguns era de que os inocentes enjeitados que morriam sem receber o sacramento
cristão não poderiam ser penalizados por erros e faltas cometidas pelos pais e
que provocaram o seu abandono. A partir do século XIII, na Itália, Espanha,
Portugal e França foram criadas casas de caridade e instituições voltadas a
retirar os bebês do caminho do limbo através da obtenção do sacramento do
batismo.
No Brasil, o futuro espiritual dos enjeitados
era fator de inquietação da elite esclarecida ligada as câmaras municipais, ao
comércio ou por parte de cristãos preocupados com a salvação da alma através da
atuação caridosa para com os inocentes. A Santa Casa de Misericórdia difundida
pelo Brasil foi um centro de convergências de ações e contribuições financeiras
voltadas à guarda e organização destas ações individuais ou de grupos. A
motivação inicial de caráter religioso numa densa formação espiritual católica
da sociedade brasileira transcendeu a salvação das almas e obteve uma grande
repercussão na atitude social perante o menor e o abandono. Somente os
estabelecimentos da Santa Casa do Rio de Janeiro receberam mais de cinqüenta
mil crianças enjeitadas entre os séculos XVIII e XIX, o que assinala a dimensão
do problema.
O abandono no campo era mais raro, pois os enjeitados
acabavam sendo adotados como filhos de criação ou agregados. No trabalho
agrícola toda mão-de-obra era bem vinda e desde cedo, a criança já trabalhava
na terra ou em atividades campesinas. Os pequenos agricultores e os pescadores
pobres não tinham acesso à mão-de-obra dos escravos que era cara, recorrendo à
força de trabalho familiar seja de crianças, adultos ou idosos. O núcleo
doméstico deveria produzir os alimento necessário para a subsistência na medida
em que o nível de renda gerado era baixo.
Acompanhados das mães, desde cedo as crianças desempenham atividades
voltadas à sobrevivência da família, seja auxiliando no preparo de alimentos,
transportando água, alimentando animais domésticos e de abate ou auxiliando na
capina da roça. O abandono das crianças era evitado, pois sua função produtiva
estava garantida já que a sobrevivência exigia um trabalho contínuo para
garantir a manutenção do grupo. Nos centros urbanos, o trabalho infantil
apresentava um valor reduzido ou dispensável. A mão-de-obra nas artesanias
exigia especialização profissional e, no caso das atividades portuárias, era
preciso muita força física para embarcar e desembarcar os produtos. Além disso,
no meio rural havia pobreza, mas não a miséria existente nos maiores centros
urbano como Rio de Janeiro, Salvador, Vila Rica e São Paulo, onde a
brutalização era mais acentuada devido à falta de condições mínimas de vida de
milhares de indivíduos.
Entre os séculos XIII e XIX a sociedade
ocidental católica desenvolveu uma forma de assistência infantil chamada de
Casa Roda dos Expostos que deveria garantir a sobrevivência do enjeitado e
preservar oculto a identidade da pessoa que abandonou ou encontrou abandonado
um bebê. Estas rodas eram “de forma cilíndrica e com uma divisória no meio,
esse dispositivo era fixado no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro
inferior da parte externa, o expositor colocava a criança que enjeitava, girava
a Roda e puxava um cordão com uma sineta para avisar à vigilante – ou Rodeira –
que um bebê acabara de ser abandonado, retirando-se furtivamente do local, sem
ser reconhecido” (MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada.
São Paulo: Hucitec, 1998). Após ser recolhida pela porteira (uma mulher de
avançada idade e de costumes honestos) e identificado o seu estado de saúde e
nutrição, a criança era encaminhada a uma ama-de-leite e depois a uma ama-seca
ou de criação (requisitadas entre as expostas) que cuidava do menino ou menina
até os sete anos de idade. A criação também poderia ser feita por pessoas que
enviavam um requerimento a Santa Casa desejando criar os enjeitados devendo
informar regularmente sobre as condições de saúde da criança à administração da
Santa Casa. Para isto recebiam um pagamento mensal para custear a criação da
criança, até chegar aos oito anos de idade para meninas ou sete anos para
meninos. Nesta idade, a criança deveria ser devolvida a Casa da Roda (Santa
Casa que administrava a Roda dos Expostos). Não ocorrendo à devolução, a
criança ficaria sob-responsabilidade da mãe criadeira até a idade de 12
anos sem receber pagamento da Santa Casa. Após os doze anos a responsabilidade
passava ao Juiz de Órfãos. Para a manutenção dos pagamentos das crianças
mantidas nas Casa da Roda, a Santa Casa utilizava recursos próprios, de doações
de particulares, do governo, das câmaras municipais e dos rendimentos dos bens
dos expostos oriundos de doações.
No Rio Grande do Sul, a Casa da Roda foi
instituída por lei provincial nº 9 de 22 de novembro de 1837, funcionando inicialmente
na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Posteriormente, a Santa Casa de
Misericórdia da cidade do Rio Grande passará a prestar este serviço.
Roda dos Expostos. Autor: ilustração de Thomas Ewbank (século XIX). |
A RODA DOS EXPOSTOS EM RIO GRANDE
A Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre
foi fundada em 1803. O atendimento hospitalar à população carente teve início
em Rio Grande no ano de 1806, quando o padre Francisco Ignácio da Silveira,
criou uma sociedade beneficiente voltada ao auxílio das famílias carentes com
distribuição de esmolas e alimentos. Em 1807, esta sociedade tentou construir
um prédio para ser utilizado como hospital uma obra que foi paralisada em 1811
pela falta de recursos financeiros. Em 1831, a Sociedade Beneficiencia foi
criada para ajudar os enfermos com esmolas para os familiares. Esta sociedade
em março de 1835 constitui a irmandade da Santa Casa sob invocação do Espírito
Santo. Esta irmandade é que na década de 1840 passou a administrar os Expostos.
“Todas as
misérias e todos os achaques que pesam sobre a humanidade recebem nestas casas
estabelecidas para tão piedoso fim, alívios e socorros eficazes. Muitos entram
vergados sob as dores e os tormentos das enfermidades, e saem enriquecidos de um
tesouro que só deles depende a conservação – a saúde. Mas completa não é nossa
missão, cujos embaraços aumentam apesar de todos os cuidados, planos e bons
desejos que se empregam para realizá-la, ou pelo menos torná-la digna de sua
instituição, que falar dos Expostos, daquelas inocentes criaturas, que antes e
depois de nascidas, bebem a longos sorvos na taça da desgraça, e talvez do
crime que lhes propina o veneno, para ocultar uma vergonha antes desconhecida,
onde os prazeres, as paixões, ou talvez o interesse encubram com flores os
espinhos agudos, que deviam rasgar o véu de um falso pudor ou a venda com que
se procura mascarar os resultados de um passo errado. Tudo é lícito supor da
parte dos entes desalmados que abandonam à caridade pública seus inocentes
filhos, frutos de amores ilícitos, da devassidão e da preguiça. Um crime prende
sempre outro crime, e os prejuízos, que tanta influência tem na sociedade,
aconselham muitas vezes um atentado oculto, para impedir a fronte de corar e
conservar-se altiva, embora a consciência reprove pretensões, honras e
respeitos unicamente devidos à virtude!
A mortalidade em todas as partes onde existem estabelecimentos para a
infância abandonada induz a crer que é devida a tentativas feitas antes de
nascerem para delas verem-se livres as mães desalmadas que as geraram.
Infanticídios estes, que não são provados porque os filhos mal manipulados, ou
as doses despropositadas não preencheram os desejos e impediram a realização
completa do crime: algumas horas de uma existência dúbia é bastante para lançar
na roda dos infelizes salvar as aparências condenatórias e aumentar nos anais
da santa Casa o rol dos óbitos, atribuídos à falta de cuidados, ou vigilância
dos empregados desta, quando a maior parte das criaturas beberam com a vida
venenos lentos ou sofreram suplícios a que não eram condenadas, porque não
pediram a existência aos entes bárbaros que lhes deram sem quererem
conserva-la. É fora de dúvida que a mortalidade dos recém-nascidos, lançados na
roda da Santa Casa, não pode ser atribuída a outras causas, que não sejam os
maus tratamentos, a privação de alimentos necessários, ou os cálculos de evitar
algumas despesas para os últimos deveres, pois que muitas destas criaturas tem
expirado poucas horas depois de haverem sido recolhidas na roda.
O nosso estabelecimento de expostos teve
princípio em julho de 1843. A Câmara Municipal era quem até então se
encarregava deste serviço, que passou a Santa Casa por proposta da presidência
da Província, de 22 de dezembro de 1842 e recebeu da Câmara duas meninas que
continuaram a ser socorridas e um prédio sito à rua da Praia que produz
anualmente 480$000 réis de aluguel único patrimônio que esta repartição possui.
Desde que a Santa Casa tomou a seu cargo curar dos expostos, até 30 de junho de
1860, vieram a roda 139 crianças com aquelas duas que recebeu da Câmara, e mais
11 que a roda recebeu neste último ano compromissal, fazem o número de 152;
sendo 78 do sexo feminino e 74 do masculino; 121 brancos, 23 pardos e 8 pretos.
Foram reclamados por seus parentes 9, ficaram maiores e a cargo das pessoas que
os criaram 36, faleceram 81, existindo agora 26. Destes últimos, 15 são do sexo
feminino e 11 do masculino; 23 brancos e 3 pardos. Destes, 9 percebem a
mensalidade de 16$000 réis e 17 a de 12$000 réis, na forma estatuída. Nesta
cidade criam-se em casas particulares 15, e fora delas 11. Pela estatística que
vos apresento, tereis, como eu, de lastimar a extraordinária mortalidade destas
infelizes criaturas, já este ramo de serviço havia ocupado a atenção de meus
predecessores, que não puderam atingir o alvo que tanto desejavam, nem
encontrar um remédio a tantas desgraças.
Com todo o desvelo me ocupei de prevenir a perda de tantas vidas;
estudei todos os meios; observei as causas; consultei pessoas habilitadas e
tenho de confessar que não pude atribuí-la a outros motivos senão aos que
aponto no princípio do relatório. Busquei até o estimulo no interesse
estabelecendo gratificações às amas durante os dois primeiros anos dos
expostos, visitei-os e cuide que não lhes faltasse, e pouco consegui; porque a
substância principal falta aos recém-nascidos: os carinhos maternais, aqueles
cuidados que o coração inspira e que por uma espécie de influência magnética se
infiltram nas tenras criaturas, não podem ser supridos por amas de empréstimo e
assalariadas. No entanto, devemos confessar que todos nossos esforços não tem
sido infrutíferos, atentas as dificuldades de meios e nosso atraso de
conhecimento em tais materiais.
Consola-nos
poder reconhecer que temos alcançado, salvar, em proporção guardada maior
número de expostos, dos quais nunca sobreviveram na Europa 40%. Geralmente os
expostos a cargo da Santa Casa são bem tratados e entregues a amas escolhidas.
Pela conta da receita e despesa desta repartição, vereis que há um déficit
contra a Santa Casa de Rs. 1:010$013; tendo a Assembléia Provincial consignado
apenas Rs. 5:000$000, impondo a obrigação de curar os presos e as praças de
polícia. A Santa Casa aceitando o convite que lhe fez a Presidência da Província
em 1842, cumpriu um dever, contribuiu poderosamente para o bem estar dos
infelizes expostos e disso deve gloriar-se; porém, sendo diminuta a subvenção
concedida pela Assembléia, priva a pobreza de uma quantia anual, que lhe é
indispensável, diminui os seus recursos e lesa realmente os interesses da Santa
Casa.”
O serviço
dos Expostos foi assumido pela Santa Casa de Misericórdia do Rio Grande a
partir de 1843.Constata-se que a mortalidade era muito alta entre os expostos,
justificada pelo Provedor devido aos maus cuidados da mãe ou familiares antes
de entregar o bebê à roda. O dinheiro para manutenção era insuficiente, daí a
pressão ao governo provincial para liberação de mais recursos. O pagamento para
famílias criarem os expostos também era baixo, o que poderia resultar em
problemas de nutrição e saúde que possam explicar uma mortalidade tão elevada.
Cartão-postal da Santa Casa do Rio Grande (aproximadamente 1909). |
terça-feira, 23 de outubro de 2018
A PRÁTICA DA MEDICINA EM RIO GRANDE (1809)
“A história da Medicina é instrutiva, porquanto mostra a extraordinária dificuldade de se assentar uma habilidade prática sobre uma base científica sólida. Quase todos os progressos verificados na prática médica, até tempos bem recentes, foram alcançados através da observação direta, da experimentação, ou da simples dedução a partir de uma ampla variedade de fatos bem conhecidos”. (John Ziman. A Força do Conhecimento,1977)
Entre os escritos deixados pelo comerciante inglês John Luccock (Notas sobre o Rio de Janeiro e partes
meridionais do Brasil) quando de sua passagem pela Vila do Rio Grande de
São Pedro, os apontamentos sobre as precárias atividades médicas são relevantes
para observar o imaginário da época.
Luccock relatou que havia um médico alemão em Rio Grande que falava
“extraordinariamente bem a nossa língua e por vezes comparecia aos jantares da
colônia inglesa”. Este médico freqüentava os jantares organizados pelos
comerciantes ingleses e num destes encontros, comentou-se que em certo mês do
ano de 1809, ocorreram poucos assassinatos. O alemão replicou dizendo que
“somente onze casos lhe havia chegado ao conhecimento, sendo que em nenhum
deles o atentado fora de conseqüência fatal”. Luccock desconfiou que o número
fosse exagerado, “todavia essa observação prova que era comum darem-se muitos
casos dessa espécie. Na realidade, é provável que a facada que é infelizmente
tão comum por todo o Brasil, nem sempre seja dada na intenção de matar, o que
não impede que os ferimentos provocados sejam freqüentemente graves. A maldade
deliberada leva a assaltos em casa ou despacha a vítima por meio do veneno.”
O MÉDICO ALEMÃO
Para o comerciante inglês que já expressava a
tradicional relação antagônica teuto-britânica, a situação da medicina no Rio
Grande dificilmente poderia ser melhor ilustrada do que através de alguns
detalhes do caráter e das vicissitudes desse médico alemão. Ele era natural de
Hanôver, tendo por algum templo clinicado ilegalmente na Alemanha, viajou para
Constantinopla, ali se fixou por breve tempo. Posteriormente, foi para França,
tornou-se cirurgião de uma fragata e nessa situação veio parar na América do
Sul, onde, deixando seu navio em Santa Catarina, aí figurou como cônsul
francês. Como a Vila do Rio Grande de São Pedro “oferecia campo de extensas
práticas de medicina, mudou-se para lá, onde atualmente goza de muita fama em
sua profissão, não tendo concorrentes por todo um círculo de trinta milhas de
raio. Tive ocasião de ver, em sua residência pacientes, que vinham dessa
distância, reputados ricos e com aparência respeitável. O notável Doutor
praticava tanto a cirurgia como a medicina e de uma feita os instrumentos que
usava caíram sob os meus olhos. Estava na maior das desordens e absolutamente
impróprios para a mais vulgar das intervenções.” Segundo Luccock o alemão teria
pego uma serra enferrujada sendo questionado se ‘se atreveria a amputar um
membro com semelhante instrumento’, ele respondeu ‘Por que não?’ afinal, ‘é a
melhor que possuo e ninguém mais aqui é capaz de realizar tal operação’,
concluiu.
Este
episódio fez o inglês refletir sobre os grandes “padecimentos dos doentes
destas paragens, pois que raro é que pensem em recorrer a conselho médico,
enquanto a natureza não se acha quase que por completo exausta, para, então,
serem muitos deles arrastados em toscos carros, através do ínvio sertão, por
muitas léguas cansativas, expostos à chuva, ao vento e ao sol e talvez a todos
estes alternativamente. Estranho seria que a morte não viesse freqüentemente
interromper bruscamente a jornada ou torná-las bem depressa completamente
inúteis.”
Porém, as
orientações da medicina lusitana também são criticas pelo inglês: “as agruras
da busca pelo doutor e a sua falta de habilidade não são as únicas dificuldades
com que o paciente tem que lutar. De acordo com as leis coloniais de Portugal,
por essa época em pleno vigor, os boticários eram obrigados a ter sobre o
balcão dois velhos livros de receitas, a que deviam seguir sem vacilar.
Cifrava-se seu ofício em diagnosticar a moléstia, pois que os sábios de Lisboa,
dois séculos antes, já haviam estabelecido à maneira invariável de as curar.
Tão pouco é essa bárbara técnica, de parceria com pomposa estupidez e
palavreado sem sentido, posta inteiramente de lado nos demais lugares do Brasil
até hoje. Não somente a ciência médica, como qualquer ciência, é ali planta
exótica”.
O fracasso
destas práticas médicas levaram o povo a perceber “a natureza enganosa de
semelhantes posturas”, o que era “bem visível pela ânsia com que buscam alívio
para as suas saúdes, junto a todo bretão”.
NASCE UM MÉDICO BRETÃO
Luccock
acaba assumindo a prática médica: “Meu hospedeiro, que era asmático, na
suposição de eu partilhar da habilidade comum aos meus patrícios, rogou-me que
o curasse. Nada sei de medicina; em todo caso, arrisquei-me a dar-lhe umas
tantas poções triviais que me pareceram capazes de lhe aliviar tanto o espírito
como a tosse. Parecendo-lhe ter melhorado, logo proclamou minha fama, de
maneira tal que fui assediado por pacientes portadores de todas as espécies de
moléstias, muitas das quais levariam o próprio Esculápio a quebrar a cabeça.
Nos casos em que não havia perigo de causar dano, muitas vezes me sentia na
obrigação de receitar; noutros, porém, recusava-me decididamente. Foi isso
motivo para que minha reputação assumisse um feitio diverso, pois que me tinham
por grosseiro, quando na realidade era apenas tímido, pela consciência da minha
ignorância.
O muito que se disse a meu respeito, foi mais
longe do que me era dado esperar. Na minha volta ulterior para o Rio [de
Janeiro], aconteceu de cair doente um da equipagem, sendo-me pedido que usasse
em seu benefício da habilidade que não duvidavam que eu possuía, apoiando o
rogatório pela observação de não haver perigo que eu fosse aborrecido pelo
doente, como me acontecera no Rio Grande. O sofrimento e a simplicidade
reunidos recomendavam o doente à minha atenção, e eu dei-lhe uns poucos grãos
de calomelano; depois do que, mas não sei dizer em conseqüência de que, ele logo
melhorou”.
Nos primórdios do século XIX as condições médico-higienistas e sanitaristas na Vila do Rio Grande de São Pedro eram precárias. Os comentários de Luccock permitem refletir dos sofrimentos da população que necessitasse de orientação ou intervenção médica. Ao longo daquele século em todos os países, a crença na Medicina foi abalada por sistemáticas epidemias, momentos culminantes que evidenciavam a precariedade e fragilidade do saber médico.
Quadro de Rembrandt de 1632. Título: A Lição de Anatomia do Dr. Tulp. |
Carta de Exame para exercer a Medicina no Brasil em 1820. Arquivo Nacional. |
sexta-feira, 19 de outubro de 2018
CARTA DO CACIQUE SEATTLE
Cacique Seattle em 1864. Museum of History and Industry à Seattle. |
Os discursos estão repletos de verdades e de
mentiras. A boca que os pronuncia pode expressar a sinceridade ou as mais
infames inveracidades. A sociedade ocidental se construiu em cima de discursos
legitimadores e muitas vezes distantes dos reais interesses que continham. Análises
do discurso são úteis para desvelar o que está por trás do argumento, do
excesso de palavras ou do silêncio de uma fala.
Um discurso notável e de desconcertante
inteligência foi pronunciado por um cacique indígena da tribo Duwamich no atual
estado de Washington, Estados Unidos. A pureza das palavras até hoje soam com
veracidade, com uma força crítica que rompe a acomodação cotidiana. O cacique
Seattle (1786-1866) teria pronunciado o discurso em 1854 ou 1855 e a lenda diz
que ele enviara uma suposta carta ao presidente dos Estados Unidos Franklin
Pierce. Uma versão mais confiável é de que o discurso foi proferido naquele
período e anotado pelo Dr. Henry Smith sendo publicado no jornal Seattle Sunday
Star no ano de 1887. O Dr.Smith teria
estado presente quando do pronunciamento do Grande Cacique, tendo o texto do
artigo se baseado nas anotações que seu autor teria feito na ocasião do
discurso. Conforme o Smith, o “velho cacique Seattle era o maior índio que
eu jamais havia visto. E o que tinha aparência mais nobre. Em seus mocassins,
ele media mais de 1,80m, ombros largos, tórax amplo e traços finos. Seus olhos
eram grandes, inteligentes, expressemos e amigáveis quando em repouso, e
espelhavam fielmente os variados estados de espírito da grande alma que olhava
através deles”.
No dia do discurso, ele havia sido procurado pelo comissário para assuntos indígenas (a mando
do presidente americano) para fazer uma oferta de compra das terras da tribo
Duwamish. Neste encontro, conforme anotações de Smith quando do ocorrido, o cacique Seattle
levantou-se e colocou uma mão sobre a cabeça do comissário e lentamente
apontando para o céu com o dedo indicador da outra, em tom solene e
impressionante, começou seu memorável pronunciamento:
“O grande chefe de
Washington mandou dizer que quer comprar a nossa terra. O grande chefe
assegurou-nos também da sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte,
pois sabemos que ele não necessita da nossa amizade. Nós vamos pensar na sua
oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e
tomará a nossa terra. O grande chefe de Washington pode acreditar no que o
chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem
confiar na mudança das estações do ano. Minha palavra é como as estrelas, elas
não empalidecem.
Como se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia é estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água. Como pode então comprá-los de nós? Decidimos apenas sobre as coisas do nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo.
Como se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia é estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água. Como pode então comprá-los de nós? Decidimos apenas sobre as coisas do nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo.
Sabemos que o
homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um torrão de terra
é igual ao outro. Porque ele é um estranho, que vem de noite e rouba da terra
tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, nem sua amiga, e depois de exauri-la
ele vai embora. Deixa para trás o túmulo de seu pai sem remorsos. Rouba a terra
de seus filhos, nada respeita. Esquece os antepassados e os direitos dos
filhos. Sua ganância empobrece a terra e deixa atrás de si os desertos. Suas
cidades são um tormento para os olhos do homem vermelho, mas talvez seja assim
por ser o homem vermelho um selvagem que nada compreende.
Não se pode
encontrar paz nas cidades do homem branco. Nem lugar onde se possa ouvir o
desabrochar da folhagem na primavera ou o zunir das asas dos insetos. Talvez
por ser um selvagem que nada entende, o barulho das cidades é terrível para os
meus ouvidos. E que espécie de vida é aquela em que o homem não pode ouvir a
voz do corvo noturno ou a conversa dos sapos no brejo à noite? Um índio prefere
o suave sussurro do vento sobre o espelho d'água e o próprio cheiro do vento,
purificado pela chuva do meio-dia e com aroma de pinho. O ar é precioso para o
homem vermelho, porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar, animais,
árvores, homens. Não parece que o homem branco se importe com o ar que respira.
Como um moribundo, ele é insensível ao mau cheiro.
Se eu me decidir a
aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais como se
fossem seus irmãos. Sou um selvagem e não compreendo que possa ser de outra
forma. Vi milhares de bisões apodrecendo nas pradarias abandonados pelo homem
branco que os abatia a tiros disparados do trem. Sou um selvagem e não
compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais valioso que um
bisão, que nós, peles vermelhas matamos apenas para sustentar a nossa própria
vida. O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem os homens
morreriam de solidão espiritual, porque tudo quanto acontece aos animais pode
também afetar os homens. Tudo quanto fere a terra fere também os filhos da
terra.
Os nossos filhos viram os pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio e envenenam seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias. Eles não são muitos. Mais algumas horas ou até mesmo alguns invernos e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nestas terras ou que tem vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará para chorar, sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.
Os nossos filhos viram os pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio e envenenam seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias. Eles não são muitos. Mais algumas horas ou até mesmo alguns invernos e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nestas terras ou que tem vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará para chorar, sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.
De uma coisa
sabemos, que o homem branco talvez venha há um dia descobrir: o nosso Deus é o
mesmo Deus. Julga, talvez, que pode ser dono Dele da mesma maneira como deseja
possuir a nossa terra. Mas não pode. Ele é Deus de todos. E quer bem da mesma
maneira ao homem vermelho como ao branco. A terra é amada por Ele. Causar dano a
terra é demonstrar desprezo pelo Criador. O homem branco também vai
desaparecer, talvez mais depressa do que as outras raças. Continua sujando a
sua própria cama e há de morrer, uma noite, sufocado nos seus próprios dejetos.
Depois de abatido o último bisão e domados todos os cavalos selvagens, quando
as matas misteriosas federem à gente, quando as colinas escarpadas se encherem
de fios que falam, onde ficarão então os sertões? Terão acabado. E as águias?
Terão ido embora. Restará dar adeus à andorinha da torre e à caça; o fim da
vida e o começo pela luta pela sobrevivência”.
Índia Suquamish em 1912. Fotografo: Edward Curtiss. |
quarta-feira, 10 de outubro de 2018
CENTENÁRIO DA GRIPE ESPANHOLA
As epidemias acompanham a trajetória humana desde tempos imemoriais. O homo sapiens já sobreviveu há inúmeras epidemias, mas nenhuma foi tão devastadora como a Gripe Espanhola. O ano de 1918 assinalou o final da Primeira Grande Guerra que matou 10 milhões de pessoas. Também foi marcado por uma pandemia de gripe que eclodiu na Espanha em fevereiro espalhando-se pela Europa e outros Continentes. Uma gripe benigna de rápida difusão e baixa letalidade que quando retornou em junho deste mesmo ano, trouxe a ilusão de repetir à anterior. Ilusão que foi desfeita pela alta letalidade associada ao vírus influenza H1N1. A alta virulência e o extenso obituário provocado pela Gripe Espanhola de 1918 marcaram a geração que sobreviveu a sua passagem pelo Planeta.
Em 1918, o estado sanitário na Europa era precário. Doenças como o tifo, tuberculose, cólera e disenteria tinham cunho epidêmico. Desde 1914, a Primeira Guerra Mundial provocava devastação e alta mortalidade. A primeira onda epidêmica de gripe espalhou-se pela Europa, América do Norte, Nova Zelândia, Índia e África do Sul, não sendo considerada grave e decaindo no final de julho. A segunda onda epidêmica iniciou em fins de agosto culminando em setembro de 1918. Somente não alcançou algumas ilhas do Pacífico Sul e Nova Guiné. A virulência foi imensa e a mortalidade excepcional, inclusive na faixa dos 15 aos 45 anos. Em cerca de seis meses a epidemia matou mais que quatro anos de guerra. Estima-se pelo menos 20 milhões de mortos (1,5% da população do planeta e 600 milhões de infectados). A denominação de Gripe Espanhola foi divulgada na Inglaterra quando da primeira onda epidêmica em abril de 1918. Na Espanha causou grande mortalidade, porém, não há indícios que aí teve origem. A denominação 'gripe espanhola' partia deste pressuposto equivocado de que a moléstia havia se originado na Espanha e/ou lá fizera o maior número de vítimas. Outra explicação dizia que a Espanha, país neutro durante a Primeira Guerra Mundial, não censurava as notícias sobre a existência da gripe epidêmica, daí a dedução de que a moléstia matava mais naquele país. A Gripe Espanhola atingiu Dacar na África contaminando soldados brasileiros e matando mais de uma centena. Mesmo longe de casa os brasileiros começavam a morrer com a epidemia antes do final de agosto de 1918.
Acervo: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/ha-100-anos-gripe-espanhola |
O vírus de 1918 foi identificado em 2006, denominado H1N1 é um vírus oriundo das aves (uma gripe aviária) que sofreu uma mutação e formou uma cepa letal que causou à grande devastação no Planeta. Qual era a letalidade da gripe de 1918? Conforme Gina Kolata era 25 vezes mais mortal do que as gripes comuns. Essa gripe matou 2,5 por cento de suas vítimas.
Em breve o livro estará disponível para download. |
A EPIDEMIA E A ESPANHOLA
A epidemia é uma ruptura do cotidiano onde o medo, o isolamento, a desintegração dos vínculos sociais do espaço, da rua e das sociabilidades, a perda de entes queridos que são referenciais de segurança e continuidade, são fatores que convergem para um colapso do tempo presente.
Segundo Jean Delumeau (História do Medo no Ocidente), o período epidêmico desperta um comportamento coletivo de insegurança não apenas pela atuação da doença, mas pela desestruturação do ambiente cotidiano, das sociabilidades, do espaço do fazer na rua e dos projetos do futuro. O medo do isolamento e da falta de perspectivas, com a morte rondando inclusive as pessoas próximas, produz um efeito psíquico também devastador. O trabalho e as práticas cotidianas se desintegram sem uma perspectiva sólida de superação.
Em todo o mundo entre 20 e 50 milhões de pessoas morreram com a gripe espanhola. No Brasil, mais de 300 mil pessoas sucumbiram e milhões contraíram a doença. Associado a epidemia, às sociedades evidenciam a fragilidade dos serviços públicos e privados e a desestruturação do cotidiano perdendo a expectativa do futuro. As precárias condições de atendimento médico-hospitalar, as insalubres condições de higiene, a desestruturação do sistema produtivo da agricultura-pecuária-comércio e indústria, levaram ao desabastecimento e à especulação desenfreada que conduziu ao desencadeamento de processos inflacionários. Desafios e enfrentamentos que foram travados em diferentes locais do planeta em busca da sobrevivência, as materialidades e imaterialidades do cotidiano, são fragmentos complexos e produtivos para as incursões dos historiadores.
Hospital militar em Camp Funston, Kansas In: http//www.army.mil |
Medicamento para gripe da Bayer e a representação da morte (o ceifador). Revista A Cigarra 219 (1921). |
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