Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

NOVIDADE

        Está disponível para leitura ou download o livro "História do Rio Grande do Sul - Período Colonial". É o volume dois da série voltada à formação histórica Rio-Grandense que terá como novo lançamento (2019) o volume três "Período Imperial". 

História do Rio Grande do Sul - Período Colonial

terça-feira, 30 de outubro de 2018

PRAÇAS DA CIDADE DO RIO GRANDE



          Espaços públicos ajudam a contar a História da Cidade do Rio Grande. Antigamente, o convívio com estes espaços era mais intenso e direcionado como forma de lazer e recreação daí o enfoque nos cuidados estéticos e nos monumentos que poderiam fixar acontecimentos, personagens e ideologias, verdadeiras aulas ao ar livre na época e aulas pelo passado histórico na atualidade. Muitos monumentos estão esquecidos e espaços públicos mais parecem pontos de travessia que foram engolidos pela cidade (a Praça Júlio de Castilhos) ou encontra-se em relativo abandono (a Praça Sete de Setembro). Foram perdendo a sua historicidade, mas de fato estão repletos de história. Estes locais são interessantes de serem lembrados e valorizados pelo grande esforço feito pelas autoridades e populares desde o século XIX para a fixação de espaços de públicos de sociabilidade.   

PRAÇA JÚLIO DE CASTILHOS
Praça Júlio de Castilhos por volta de 1930. 

         Conforme Antenor Monteiro em sua coluna Rebuscos (Jornal Rio Grande) a Praça Júlio de Castilhos já foi denominada de Praça do Largo da Quitanda, São Pedro de Alcântara, São Pedro e Largo do Teatro (em referência a localizar-se nas imediações do Teatro Sete de Setembro). Em documento da Câmara Municipal de 27 de março de 1824, o juiz almotacé propõe a abertura da “travessa da Alfândega (atual rua  Andradas) até o campo e fazer uma praça no fim das ruas do Pito (rua República do Líbano) e do Fogo (rua Luiz Loréa).” Outra referência sobre o surgimento da praça foi feita em 6 de outubro de 1827, quando a Câmara pede ao Comandante da Vila do Rio Grande de São Pedro para continuar a mandar prisioneiros para a terraplanagem da Praça São Pedro, onde acordaram fundar a Casa da Câmara e a Cadeia. Na planta da Vila do Rio Grande de São Pedro do ano de 1829 foi feita a seguinte referência: “A Praça S. Pedro criada pelo Meritíssimo Juiz de Fora, desta Vila, Agostinho Moreira Guerra, em 1828, que depois desta planta feita se soube”. Portanto, as primeiras iniciativas para o surgimento da Praça recuam a 1824 e a sua oficialização a 1828. A Praça também não tem relação com a Igreja Matriz de São Pedro ou com o Largo Dr. Pio.
         Conforme o Código de Posturas de 17 de dezembro de 1836, a Praça era um espaço para a venda de verduras, frutas e produtos oriundos das localidades vizinhas como o Povo Novo e que chegavam de carretas a cidade do Rio Grande. Esta prática começou a ser oficialmente questionada em 1855, pelos vereadores Eufrásio Lopes de Araújo e Miguel Tito Sá, os quais argumentam que “não convinha que aí estacionassem as carretas que vinham do Povo Novo pelo abuso de conservarem soltos os animais que as puxavam”. Além deste espaço para a uma espécie de Feira Livre a praça também teve a função essencial para o centro urbano ligado a coleta de água. A Câmara em sessão de 10 de julho de 1834 resolveu utilizar pedras e tijolos que haviam “sobrado dos poços do Moinho de Vento e manda construir um Poço na São Pedro”. Posteriormente, a Companhia Hidráulica que em 1874 importou da França os chafarizes colocados nas praças da cidade construiu no lugar do poço uma coluna de ferro com torneiras laterais. No alto desta coluna de ferro ficava a Vênus no Banho, estátua que é a mais antiga da cidade em espaço público e que se encontra pelo menos desde a década de 1910 na Praça Tamandaré.
         A arborização da Praça recua a 1878 aí também funcionou o Circo de Cavalinhos (assim como no Largo Dr. Pio) e nas proximidades do Teatro Sete de Setembro existiu um Tambo onde se vendia leite diretamente a população. Nesta área um comerciante proprietário da loja de fazendas Ao Torrador, Pedro Lourenço de Oliveira, o Pedro Torrador, obteve a concessão para edificar aí um Mercado, concessão que foi anulada em 1890.
Fotografia da praça por volta de 1925. Relatório da Prefeitura Municipal do Rio Grande.

         O nome de Praça Júlio de Castilhos foi dado pelo Decreto Municipal n. 16, de 15 de novembro de 1894, em homenagem da Intendência Municipal a Júlio Prates de Castilhos, chefe do Partido Republicano Rio-Grandense. O busto em bronze que foi edificado a mando da Intendência Municipal é obra do escultor Décio Vilares e o pedestal foi feito na Escola de Engenharia de Porto Alegre sendo originalmente colocado na Praça Marques do Herval em 21 de abril de 1918. Em 1925, com a remodelação da Praça Júlio de Castilhos, o monumento foi para ela transferido. Na época ficou próximo a um dos grandes centros de fluxo urbano que era o Teatro Sete de Setembro (1832), onde poderia ser visto pelos populares.
        
PRAÇA SETE DE SETEMBRO
Cartão-postal da praça Sete de Setembro. Foto-postal Colombo. Meados dos anos 1950. 

         Este é o mais antigo espaço público e urbano da formação luso-brasileira no Rio Grande do Sul por estar situada nas imediações do Forte Jesus-Maria-José a qual é a mais antiga fortificação que de forma sistemática buscou fixar a presença portuguesa no extremo Sul do Brasil. Com o surgimento do Forte em fevereiro de 1737, surgiu uma cacimba para captação de água próxima a face com a atual rua República do Líbano. Em mapa da Vila do Rio Grande de 1829 esta área é chamada de Praça do Poço. O poço foi encontrado quando de escavações arqueológicas realizadas pela equipe do prof. Pedro Mentz Ribeiro na década de 1990. Anteriormente teve os nomes de Largo do Forte, Largo do Poço e Lago da Conceição em referência a Igreja da Conceição que foi inaugurada em dezembro de 1874. Oficialmente, pela Resolução de 31 de julho de 1858 a Câmara Municipal em homenagem a Independência do Brasil lhe da à denominação de Praça Sete de Setembro. Neste local, nas décadas de 1850-60, se realizavam as comemorações do dia máximo da Pátria. 
         A Câmara Municipal manda plantar em 1854 álamos e figueiras no “Largo do Poço”. Não dando bons resultados, em 1858 são plantados umbus. Em 1874, a Companhia Hidráulica instala neste local o seu primeiro chafariz trazido da França e construído na Fundição Durrene. O chafariz foi removido na década de 1910. 
Em 1883, somente a face norte estava calçada sendo as outras faces “verdadeiros charcos” como afirmou um vereador. Este calçamento, ainda existente, é um dos mais antigos da cidade junto com o da rua Luiz Loréa que desemboca na Praça devendo remontar as décadas de 1860-70. Em 1884, foi apresentado à Câmara um projeto de aterro, calçamento e arborização. Em 1887, foi organizada uma comissão para angariar donativos para o ajardinamento da Praça Sete de Setembro e também da Praça São Pedro. O calçamento das três ruas no padrão “lisboeta” foi realizado em 1925. Neste mesmo ano, a 10 de fevereiro por iniciativa de uma Comissão de Conselheiros da cidade, foi inaugurado o monumento do Barão do Rio Branco. O bronze foi feito em Porto Alegre pela firma H. Brachsler & Filhos e o pedestal por Cardório & de Angeli.
Cartão-postal da Praça Sete de Sembro por volta de 1940. 

Ao lado do Forte de Santana do Estreito foi nesta praça e em seu entorno é que surgiram as primeiras modalidades urbanas e sociabilidades da nascente formação luso-brasileira, a capela do Forte Jesus-Maria-José desenvolveu as primeiras práticas religiosas e registros paroquiais em 1737. Posteriormente, nas décadas seguintes é que surgirá a rua Direita (atual Bacelar) e a rua da Praia (atual Marechal Floriano) redirecionando o fluxo urbano. A revitalização da Praça Sete de Setembro permitiria contar uma parte da história luso-brasileira no Rio Grande do Sul.
Velódromo (corrida de bicicletas) na praça Sete de Setembro. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense.  


domingo, 28 de outubro de 2018

MIRAGUAIA



        A miraguaia ou miragaia (Pogonis cromis; Linnaeus, 1766) é também chamada de burriquete, corvina negra e Black drum consistindo num peixe que deixou um legado de histórias para os pescadores da Barra do Rio Grande mas que atualmente, devido a captura excessiva realizada entre as décadas de 1950-1980 está quase desaparecida do litoral do Rio Grande do Sul. É um peixe de porte avantajado que pode atingir mais de 1,40 metros de comprimento, cerca de 40 kg de peso e pode viver por mais de 40 anos. Conforme o livro “Peixes Estuarinos e Costeiros” de autoria de Luciano Gomes Fischer, Luiz Eduardo Dias Pereira e João Paes Vieira (2. ed. – Rio Grande: Luciano Gomes Fischer, 2011), a miraguaia “ocorre de Massachusetts, EUA, ao longo das Antilhas e norte da América do Sul, até a Argentina. É uma espécie demersal encontrada em águas costeiras. No sul do Brasil ocorre até 40 m de profundidade”. É lembrada por ser um peixe que propicia uma briga demorada exigindo muita energia do pescador que utilizar molinete ou linha de mão. Algumas décadas atrás - comprovado por fotografias tiradas nos Molhes da Barra e no Clube de Regatas Rio Grande-, era um dos peixes mais procurados pelos pescadores e dos mais festejados quando retirado das águas, sendo cortado em postas ou em largos files para salgamento. Em 1885 a miraguaia já constava na lista dos peixes mais valorizados que chegavam ao Mercado Público para venda e exportação, conforme artigo do naturalista alemão Hermann Von Ihering.  
        Vou destacar um documento pouco conhecido (de 1798, final do século XVIII) que já apontava a Miraguaia como uma promissora e lucrativa atividade que era equiparada a pesca do bacalhau. A ocupação sistemática do atual município do Rio Grande só ocorreu cerca de 4 décadas depois da escrita deste documento, mas o potencial pesqueiro já se fazia divulgar em Portugal em relação à Barra do Rio Grande.
         O documento foi escrito por Hipólito José da Costa Pereira (publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: 1858, vol. 21) que foi encarregado pelo Príncipe Regente de Portugal (D. João de Bragança) para viajar a América Setentrional e enviar informações sobre as atividades econômicas realizadas por norte-americanos e ingleses, especialmente as atividades pesqueiras. Ele partiu de Lisboa aos 16 de outubro de 1798 e chegou na Filadélfia após 59 dias de viagem marítima.  
      Pereira deixou documentado um dos mais antigos registros sobre o potencial pesqueiro do litoral de Santa Catarina e junto a Barra do Rio Grande de São Pedro. 
         “Desde que os Holandeses deixaram as suas pescarias pelo risco que os navios estão expostos, de serem tomados pelos Ingleses, os Americanos suprem a Europa com azeite de peixe, espermacete, barba de baleia além da grande quantidade de peixe salgado que exportam para Portugal, Espanha e portos do Mediterrâneo. No artigo das baleias, se nos propusermos estabelecer os mesmos regulamentos e leis que eles têm, indubitável que este extenso ramo de comércio cairá exclusivamente em nossas mãos, por que nós temos sobre eles estas vantagens: 1. maior barateza nas soldadas dos marinheiros por que se achando entre nós bastante oito ou dez mil reis por mês, nos portos da América, precisam pagá-los dezesseis e vinte e quatro mil réis ainda as mais das vezes custa a encontrá-los; 2. Os Americanos tem de fazer sua viagem da América a costa do Brasil, onde fazem principalmente as pescas e depois à volta; a demora, despesa, risco e empate de dinheiro, que ha durante este tempo, é salva para nós, que fazemos pesca ao pé das nossas Costas. 3. Os nossos navios que pescam pelas costas do Brasil tem lá os nossos portos, onde podem facilmente acolher-se para se repararem, ou proverem do que houverem mister; comodidade que falta também aos Americanos, pois precisam estar sobre a vela desde que saem, até que acabam a pescaria. Os Americanos porém estão de tal modo experimentados neste tráfico, que meu plano seria convidar um número de famílias de pescadores na América, das que vivem principalmente em Nantuket, fazê-las estabelecer em dois pontos diferentes no Brasil, adir-lhes marinheiros Portugueses, associar-lhes nos fundos negociantes do país usando depois disto para com os pescadores das mesmas liberalidades e isenções que os Americanos tem; não pode haver a menor dúvida, que em dois anos, não mais, o comércio das baleias estará inteiramente nas mãos do Portugal. Quanto ao peixe salgado ha toda probabilidade, que o bacalhau se encontrará em abundancia nas costas do Sul, de S. Catarina para baixo mas ainda caso não se ache, temos miraguaia, um peixe de arribação de que Rio Grande de S. Pedro, e outros portos imediatos, abundam em tal quantidade, que podem suprir Portugal de peixe salgado, com toda fartura, mais barato do que importam os Ingleses e Americanos. Se V. Ex. supuser que este artigo merece alguma atenção, terei grande satisfação de reduzir ordem as minhas ideias sobre isto, de ter honra de às apresentar a V. Ex. ou a Real Junta do Comércio, ou mesmo de conferir, explanar circunstanciadamente com qualquer pessoa que V. Ex. queira encarregar com execução deste projeto”.


Miraguaia. In: http://ambientes.ambientebrasil.com.br

sábado, 27 de outubro de 2018

ESCAVAÇÕES NA CATEDRAL DE SÃO PEDRO

Igreja Matriz de São Pedro por volta de 1920. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense.

         Os trabalhos de restauração da Catedral de São Pedro foram amplos: arquitetura, escultura, história, arqueologia etc. A equipe da FURG coordenada pelo prof. Dr. Pedro Augusto Mentz Ribeiro realizou escavações no interior do templo em busca de evidências históricas ligadas aos enterramentos. As escavações estão completando 22 anos (1996) e ressaltaram a importância deste que é o prédio (de ocupação contínua) mais antigo do Rio Grande do Sul. O artigo com parte dos dados levantados foi publicado no livro de Pedro Augusto Mentz Ribeiro (Org.) Escritos sobre Arqueologia. Rio Grande: FURG, 2001, Coleção Pensar a História Sul-Rio-Grandense, n.14.
“As escavações na catedral de São Pedro, cidade do Rio Grande, revelaram alguns detalhes importantes. Inaugurada em 1755, é a primeira igreja no Rio Grande do Sul. Conforme o Monsenhor Ruben Neis, algumas pessoas eram enterradas no interior da catedral. Quando da sua restauração, particularmente no ano de 1996, realizamos dois cortes experimentais no seu interior, um na nave e outro junto ao altar, totalizando 5 043m2 e profundidade 1,30m. O corte na nave, da mureta para seu interior, o material encontrava-se perturbado até 1,0m de profundidade, revelou o seguinte: a composição da estrutura do alicerce; foi descoberto uma mureta, paralela a parede lateral e ao longo de toda a nave (servia para suportar as traves sobre as quais se assentava o assoalho) - alicerce e mureta foram construídos com tijolos maciços; grande quantidade de ossos e de dentes humanos de indivíduos jovens e adultos, botões, contas de rosário, alfinetes, fragmentos de louça (faiança, faiança fina, porcelana, cerâmica colonial), fivelas, fragmentos de caixão de madeira, tecido (verde) de caixão, solas e saltos de sapatos de crianças e adultos, homens e mulheres, uma moeda do Império brasileiro (1825-1835). Entre 1,0 e 1,30m registramos a ocorrência de dois sepultamentos estendidos, em decúbito dorsal, os braços dobrados sobre o peito e a mão direita ultrapassando a esquerda e colocada sobre o antebraço esquerdo, os pés voltados para o altar, um com o crânio na vertical e o outro levemente inclinado para a direita.
A escavação entre a mureta e a parede externa da nave revelou entulhos tais como terra, areia, cascote, conchas, ossos de bovinos, aves, peixes (inclusive escamas), etc.
As escavações junto ao altar, com 1,50 x 2,05m, lado esquerdo, revelaram a mesma disposição da nave, ou seja: junto à parede até 50cm de largura, entulhos e, após, os sepultamentos com material: ossos e dentes humanos esparsos, até fragmentos de caixão, tecido verde, pinos, fivelas, solas e saltos de sapatos de adultos, botões, etc., perturbado até 1,0m de profundidade. Abaixo disto encontramos um sepultamento articulado e outros dois atingidos parcialmente pela escavação. Todos na mesma posição dos dois da nave, ou seja, estendidos com os pés voltados para o altar e o crânio na vertical.
Estudos de Antropologia Física, realizados pelo Dr. Horácio Manuel Cigliano da Silva, legista do Hospital Universitário da FURG, revelaram o seguinte: Sepultamento da nave: idade entre 45 e 50 anos, sexo masculino, altura de mais ou menos 1,60m, com cárie em alguns dentes (somente um analisado). Sepultamento do altar: idade entre 50 e 60 anos, sexo masculino, altura entre 1,60 e 1,70m, indivíduo magro, franzino; foram constatadas duas lesões ósseas na superfície externa do frontal e exostose no osso do maxilar inferior. Conforme os dados históricos, o governador Brigadeiro Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara foi enterrado no altar do lado do evangelho que corresponde ao lado esquerdo do observador. 
A escolha do local da escavação foi guiada por esta informação. Tratar-se-ia efetivamente do governador o sepultamento encontrado, uma vez que existem outros naquela área?

Comparamos os dados históricos com os antropológicos físicos: sexo, idade (o governador ao falecer tinha 59 anos de idade) e “causa mortis”. Conforme a História o governador teria morrido de diarréia, após longa (4 anos) enfermidade. Os sinais no crânio e a exostose no maxilar revelam que ele teria morrido de uma doença infecto-contagiosa crônica, que evoluía em estágios. Dentre as doenças infecciosas, a sífilis é a lesão característica do esqueleto estudado. Esta poderia ter sido adquirida por transfusão de sangue (descartada para a época: 1801) ou doença venérea. Sebastião da Câmara era solteiro, militar, português, um homem que se deslocava muito (demarcou nossas fronteiras com o Uruguai) e que, devido à promiscuidade, poderia ter adquirido aquele tipo de doença. A sífilis evolui em quatro estágios, sendo que afeta os ossos no terceiro. Neste, atinge os órgãos, produzindo lesões necróticas que levam a ulcerações na camada mucosa dos órgãos ocos e, quando cicatrizam, diminuem o lume, produzindo prisão de ventre e depois diarréia. Se o processo continuar pode causar a morte devido às alterações hidro-eletrolíticas, diminuição de potássio com arritmia cardíaca”.
         A urna com os ossos do Brigadeiro Sebastião da Câmara está em exposição no interior da Igreja de São Pedro.



sexta-feira, 26 de outubro de 2018

CENAS PLATINAS


      Muitas das imagens até o presente compartilhadas como sendo do passado histórico Rio-Grandense possui um conexão direta ou indireta com os cenários do Rio da Prata, em especial, os do Uruguai e da Argentina. Mesmo que se expresse de forma mais sistemática nas áreas de fronteira, muitas das cenas cotidianas são comuns à formação cultural do Rio Grande do Sul. A maior parte das fontes iconográficas que demarcam o dia-a-dia destas populações dos séculos XVIII e XIX remete aos documentos espanhóis.

    Apenas como aproximação e não como necessário reflexo, são reproduzidas algumas cenas dos usos e costumes que compunham a materialidade e expressões culturais do pampa platino-rio-grandense. A autoria é do pintor argentino Carlos Morel  (1813-1894) que retratou cenas do cotidiano platino no século XIX. As imagens são do livro “Usos y Costumbres del Rio de la Plata” (Buenos Aires, 1845).








quarta-feira, 24 de outubro de 2018

A CASA DA RODA DOS EXPOSTOS



    “Durante o período colonial, muitas mulheres viram-se diante da necessidade de abandonar os próprios filhos. Não é exagero afirmar que a história do abandono de crianças é a história secreta da dor feminina, principalmente da dor compartilhada por mulheres que enfrentavam obstáculos intransponíveis ao tentar assumir e sustentar os filhos legítimos ou nascidos fora das fronteiras matrimoniais”. Renato Venâncio. Maternidade Negada In: PRIORE, Mary (Org.) História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.

        O abandono de bebes recém-nascidos ou de crianças era uma prática comum nos séculos XVII e XVIII no Brasil colonial. Meninas e meninos eram abandonados em calçadas, praias ou terrenos baldios, falecendo por falta de alimentos, pelo frio ou passando a conviver com as lixeiras, e tendo por companhia cães, porcos e ratos existentes nas ruas fétidas das desorganizadas e nascentes cidades brasileiras.
         Ainda no século XVI os padres jesuítas criaram colégios para receberem os meninos índios que perderam a família devido às pestes ou conflitos com os colonizadores europeus. O abandono das crianças intensificou-se entre a população portuguesa no século XVII, especialmente com a dinamização econômica e incremento demográfico.
        O catolicismo lusitano era fundado na crença da danação das almas que faleciam sem receber o sacramento do batismo ou a assistência espiritual cristã (ficando no limbo uma espécie de purgatório para crianças), portanto o abandono dos menores era fator de indignação. A compreensão de alguns era de que os inocentes enjeitados que morriam sem receber o sacramento cristão não poderiam ser penalizados por erros e faltas cometidas pelos pais e que provocaram o seu abandono. A partir do século XIII, na Itália, Espanha, Portugal e França foram criadas casas de caridade e instituições voltadas a retirar os bebês do caminho do limbo através da obtenção do sacramento do batismo.
No Brasil, o futuro espiritual dos enjeitados era fator de inquietação da elite esclarecida ligada as câmaras municipais, ao comércio ou por parte de cristãos preocupados com a salvação da alma através da atuação caridosa para com os inocentes. A Santa Casa de Misericórdia difundida pelo Brasil foi um centro de convergências de ações e contribuições financeiras voltadas à guarda e organização destas ações individuais ou de grupos. A motivação inicial de caráter religioso numa densa formação espiritual católica da sociedade brasileira transcendeu a salvação das almas e obteve uma grande repercussão na atitude social perante o menor e o abandono. Somente os estabelecimentos da Santa Casa do Rio de Janeiro receberam mais de cinqüenta mil crianças enjeitadas entre os séculos XVIII e XIX, o que assinala a dimensão do problema.
       O abandono no campo era mais raro, pois os enjeitados acabavam sendo adotados como filhos de criação ou agregados. No trabalho agrícola toda mão-de-obra era bem vinda e desde cedo, a criança já trabalhava na terra ou em atividades campesinas. Os pequenos agricultores e os pescadores pobres não tinham acesso à mão-de-obra dos escravos que era cara, recorrendo à força de trabalho familiar seja de crianças, adultos ou idosos. O núcleo doméstico deveria produzir os alimento necessário para a subsistência na medida em que o nível de renda gerado era baixo.   Acompanhados das mães, desde cedo as crianças desempenham atividades voltadas à sobrevivência da família, seja auxiliando no preparo de alimentos, transportando água, alimentando animais domésticos e de abate ou auxiliando na capina da roça. O abandono das crianças era evitado, pois sua função produtiva estava garantida já que a sobrevivência exigia um trabalho contínuo para garantir a manutenção do grupo. Nos centros urbanos, o trabalho infantil apresentava um valor reduzido ou dispensável. A mão-de-obra nas artesanias exigia especialização profissional e, no caso das atividades portuárias, era preciso muita força física para embarcar e desembarcar os produtos. Além disso, no meio rural havia pobreza, mas não a miséria existente nos maiores centros urbano como Rio de Janeiro, Salvador, Vila Rica e São Paulo, onde a brutalização era mais acentuada devido à falta de condições mínimas de vida de milhares de indivíduos.
Entre os séculos XIII e XIX a sociedade ocidental católica desenvolveu uma forma de assistência infantil chamada de Casa Roda dos Expostos que deveria garantir a sobrevivência do enjeitado e preservar oculto a identidade da pessoa que abandonou ou encontrou abandonado um bebê. Estas rodas eram “de forma cilíndrica e com uma divisória no meio, esse dispositivo era fixado no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro inferior da parte externa, o expositor colocava a criança que enjeitava, girava a Roda e puxava um cordão com uma sineta para avisar à vigilante – ou Rodeira – que um bebê acabara de ser abandonado, retirando-se furtivamente do local, sem ser reconhecido” (MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998). Após ser recolhida pela porteira (uma mulher de avançada idade e de costumes honestos) e identificado o seu estado de saúde e nutrição, a criança era encaminhada a uma ama-de-leite e depois a uma ama-seca ou de criação (requisitadas entre as expostas) que cuidava do menino ou menina até os sete anos de idade. A criação também poderia ser feita por pessoas que enviavam um requerimento a Santa Casa desejando criar os enjeitados devendo informar regularmente sobre as condições de saúde da criança à administração da Santa Casa. Para isto recebiam um pagamento mensal para custear a criação da criança, até chegar aos oito anos de idade para meninas ou sete anos para meninos. Nesta idade, a criança deveria ser devolvida a Casa da Roda (Santa Casa que administrava a Roda dos Expostos). Não ocorrendo à devolução, a criança ficaria sob-responsabilidade da mãe criadeira até a idade de 12 anos sem receber pagamento da Santa Casa. Após os doze anos a responsabilidade passava ao Juiz de Órfãos. Para a manutenção dos pagamentos das crianças mantidas nas Casa da Roda, a Santa Casa utilizava recursos próprios, de doações de particulares, do governo, das câmaras municipais e dos rendimentos dos bens dos expostos oriundos de doações.
No Rio Grande do Sul, a Casa da Roda foi instituída por lei provincial nº 9 de 22 de novembro de 1837, funcionando inicialmente na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Posteriormente, a Santa Casa de Misericórdia da cidade do Rio Grande passará a prestar este serviço. 
Roda dos Expostos. Autor: ilustração de Thomas Ewbank (século XIX). 


A RODA DOS EXPOSTOS EM RIO GRANDE


A Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre foi fundada em 1803. O atendimento hospitalar à população carente teve início em Rio Grande no ano de 1806, quando o padre Francisco Ignácio da Silveira, criou uma sociedade beneficiente voltada ao auxílio das famílias carentes com distribuição de esmolas e alimentos. Em 1807, esta sociedade tentou construir um prédio para ser utilizado como hospital uma obra que foi paralisada em 1811 pela falta de recursos financeiros. Em 1831, a Sociedade Beneficiencia foi criada para ajudar os enfermos com esmolas para os familiares. Esta sociedade em março de 1835 constitui a irmandade da Santa Casa sob invocação do Espírito Santo. Esta irmandade é que na década de 1840 passou a administrar os Expostos.
          Em 1861, o Irmão-Provedor da Santa Casa de Misericórdia da cidade do Rio Grande Porfírio Ferreira Nunes apresentou um relatório das atividades desta irmandade. Neste relatório é possível inferir sobre a situação dos Expostos na cidade.
         “Todas as misérias e todos os achaques que pesam sobre a humanidade recebem nestas casas estabelecidas para tão piedoso fim, alívios e socorros eficazes. Muitos entram vergados sob as dores e os tormentos das enfermidades, e saem enriquecidos de um tesouro que só deles depende a conservação – a saúde. Mas completa não é nossa missão, cujos embaraços aumentam apesar de todos os cuidados, planos e bons desejos que se empregam para realizá-la, ou pelo menos torná-la digna de sua instituição, que falar dos Expostos, daquelas inocentes criaturas, que antes e depois de nascidas, bebem a longos sorvos na taça da desgraça, e talvez do crime que lhes propina o veneno, para ocultar uma vergonha antes desconhecida, onde os prazeres, as paixões, ou talvez o interesse encubram com flores os espinhos agudos, que deviam rasgar o véu de um falso pudor ou a venda com que se procura mascarar os resultados de um passo errado. Tudo é lícito supor da parte dos entes desalmados que abandonam à caridade pública seus inocentes filhos, frutos de amores ilícitos, da devassidão e da preguiça. Um crime prende sempre outro crime, e os prejuízos, que tanta influência tem na sociedade, aconselham muitas vezes um atentado oculto, para impedir a fronte de corar e conservar-se altiva, embora a consciência reprove pretensões, honras e respeitos unicamente devidos à virtude!
A mortalidade em todas as partes onde existem estabelecimentos para a infância abandonada induz a crer que é devida a tentativas feitas antes de nascerem para delas verem-se livres as mães desalmadas que as geraram. Infanticídios estes, que não são provados porque os filhos mal manipulados, ou as doses despropositadas não preencheram os desejos e impediram a realização completa do crime: algumas horas de uma existência dúbia é bastante para lançar na roda dos infelizes salvar as aparências condenatórias e aumentar nos anais da santa Casa o rol dos óbitos, atribuídos à falta de cuidados, ou vigilância dos empregados desta, quando a maior parte das criaturas beberam com a vida venenos lentos ou sofreram suplícios a que não eram condenadas, porque não pediram a existência aos entes bárbaros que lhes deram sem quererem conserva-la. É fora de dúvida que a mortalidade dos recém-nascidos, lançados na roda da Santa Casa, não pode ser atribuída a outras causas, que não sejam os maus tratamentos, a privação de alimentos necessários, ou os cálculos de evitar algumas despesas para os últimos deveres, pois que muitas destas criaturas tem expirado poucas horas depois de haverem sido recolhidas na roda.
O nosso estabelecimento de expostos teve princípio em julho de 1843. A Câmara Municipal era quem até então se encarregava deste serviço, que passou a Santa Casa por proposta da presidência da Província, de 22 de dezembro de 1842 e recebeu da Câmara duas meninas que continuaram a ser socorridas e um prédio sito à rua da Praia que produz anualmente 480$000 réis de aluguel único patrimônio que esta repartição possui. Desde que a Santa Casa tomou a seu cargo curar dos expostos, até 30 de junho de 1860, vieram a roda 139 crianças com aquelas duas que recebeu da Câmara, e mais 11 que a roda recebeu neste último ano compromissal, fazem o número de 152; sendo 78 do sexo feminino e 74 do masculino; 121 brancos, 23 pardos e 8 pretos. Foram reclamados por seus parentes 9, ficaram maiores e a cargo das pessoas que os criaram 36, faleceram 81, existindo agora 26. Destes últimos, 15 são do sexo feminino e 11 do masculino; 23 brancos e 3 pardos. Destes, 9 percebem a mensalidade de 16$000 réis e 17 a de 12$000 réis, na forma estatuída. Nesta cidade criam-se em casas particulares 15, e fora delas 11. Pela estatística que vos apresento, tereis, como eu, de lastimar a extraordinária mortalidade destas infelizes criaturas, já este ramo de serviço havia ocupado a atenção de meus predecessores, que não puderam atingir o alvo que tanto desejavam, nem encontrar um remédio a tantas desgraças.
Com todo o desvelo me ocupei de prevenir a perda de tantas vidas; estudei todos os meios; observei as causas; consultei pessoas habilitadas e tenho de confessar que não pude atribuí-la a outros motivos senão aos que aponto no princípio do relatório. Busquei até o estimulo no interesse estabelecendo gratificações às amas durante os dois primeiros anos dos expostos, visitei-os e cuide que não lhes faltasse, e pouco consegui; porque a substância principal falta aos recém-nascidos: os carinhos maternais, aqueles cuidados que o coração inspira e que por uma espécie de influência magnética se infiltram nas tenras criaturas, não podem ser supridos por amas de empréstimo e assalariadas. No entanto, devemos confessar que todos nossos esforços não tem sido infrutíferos, atentas as dificuldades de meios e nosso atraso de conhecimento em tais materiais.
     Consola-nos poder reconhecer que temos alcançado, salvar, em proporção guardada maior número de expostos, dos quais nunca sobreviveram na Europa 40%. Geralmente os expostos a cargo da Santa Casa são bem tratados e entregues a amas escolhidas. Pela conta da receita e despesa desta repartição, vereis que há um déficit contra a Santa Casa de Rs. 1:010$013; tendo a Assembléia Provincial consignado apenas Rs. 5:000$000, impondo a obrigação de curar os presos e as praças de polícia. A Santa Casa aceitando o convite que lhe fez a Presidência da Província em 1842, cumpriu um dever, contribuiu poderosamente para o bem estar dos infelizes expostos e disso deve gloriar-se; porém, sendo diminuta a subvenção concedida pela Assembléia, priva a pobreza de uma quantia anual, que lhe é indispensável, diminui os seus recursos e lesa realmente os interesses da Santa Casa.”

         O serviço dos Expostos foi assumido pela Santa Casa de Misericórdia do Rio Grande a partir de 1843.Constata-se que a mortalidade era muito alta entre os expostos, justificada pelo Provedor devido aos maus cuidados da mãe ou familiares antes de entregar o bebê à roda. O dinheiro para manutenção era insuficiente, daí a pressão ao governo provincial para liberação de mais recursos. O pagamento para famílias criarem os expostos também era baixo, o que poderia resultar em problemas de nutrição e saúde que possam explicar uma mortalidade tão elevada.

Cartão-postal da Santa Casa do Rio Grande (aproximadamente 1909). 

terça-feira, 23 de outubro de 2018

A PRÁTICA DA MEDICINA EM RIO GRANDE (1809)

“A história da Medicina é instrutiva, porquanto mostra a extraordinária dificuldade de se assentar uma habilidade prática sobre uma base científica sólida. Quase todos os progressos verificados na prática médica, até tempos bem recentes, foram alcançados através da observação direta, da experimentação, ou da simples dedução a partir de uma ampla variedade de fatos bem conhecidos”. (John Ziman. A Força do Conhecimento,1977)


Entre os escritos deixados pelo comerciante inglês John Luccock (Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil) quando de sua passagem pela Vila do Rio Grande de São Pedro, os apontamentos sobre as precárias atividades médicas são relevantes para observar o imaginário da época.
Luccock relatou que havia um médico alemão em Rio Grande que falava “extraordinariamente bem a nossa língua e por vezes comparecia aos jantares da colônia inglesa”. Este médico freqüentava os jantares organizados pelos comerciantes ingleses e num destes encontros, comentou-se que em certo mês do ano de 1809, ocorreram poucos assassinatos. O alemão replicou dizendo que “somente onze casos lhe havia chegado ao conhecimento, sendo que em nenhum deles o atentado fora de conseqüência fatal”. Luccock desconfiou que o número fosse exagerado, “todavia essa observação prova que era comum darem-se muitos casos dessa espécie. Na realidade, é provável que a facada que é infelizmente tão comum por todo o Brasil, nem sempre seja dada na intenção de matar, o que não impede que os ferimentos provocados sejam freqüentemente graves. A maldade deliberada leva a assaltos em casa ou despacha a vítima por meio do veneno.”

O MÉDICO ALEMÃO
      Para o comerciante inglês que já expressava a tradicional relação antagônica teuto-britânica, a situação da medicina no Rio Grande dificilmente poderia ser melhor ilustrada do que através de alguns detalhes do caráter e das vicissitudes desse médico alemão. Ele era natural de Hanôver, tendo por algum templo clinicado ilegalmente na Alemanha, viajou para Constantinopla, ali se fixou por breve tempo. Posteriormente, foi para França, tornou-se cirurgião de uma fragata e nessa situação veio parar na América do Sul, onde, deixando seu navio em Santa Catarina, aí figurou como cônsul francês. Como a Vila do Rio Grande de São Pedro “oferecia campo de extensas práticas de medicina, mudou-se para lá, onde atualmente goza de muita fama em sua profissão, não tendo concorrentes por todo um círculo de trinta milhas de raio. Tive ocasião de ver, em sua residência pacientes, que vinham dessa distância, reputados ricos e com aparência respeitável. O notável Doutor praticava tanto a cirurgia como a medicina e de uma feita os instrumentos que usava caíram sob os meus olhos. Estava na maior das desordens e absolutamente impróprios para a mais vulgar das intervenções.” Segundo Luccock o alemão teria pego uma serra enferrujada sendo questionado se ‘se atreveria a amputar um membro com semelhante instrumento’, ele respondeu ‘Por que não?’ afinal, ‘é a melhor que possuo e ninguém mais aqui é capaz de realizar tal operação’, concluiu.
Este episódio fez o inglês refletir sobre os grandes “padecimentos dos doentes destas paragens, pois que raro é que pensem em recorrer a conselho médico, enquanto a natureza não se acha quase que por completo exausta, para, então, serem muitos deles arrastados em toscos carros, através do ínvio sertão, por muitas léguas cansativas, expostos à chuva, ao vento e ao sol e talvez a todos estes alternativamente. Estranho seria que a morte não viesse freqüentemente interromper bruscamente a jornada ou torná-las bem depressa completamente inúteis.”
Porém, as orientações da medicina lusitana também são criticas pelo inglês: “as agruras da busca pelo doutor e a sua falta de habilidade não são as únicas dificuldades com que o paciente tem que lutar. De acordo com as leis coloniais de Portugal, por essa época em pleno vigor, os boticários eram obrigados a ter sobre o balcão dois velhos livros de receitas, a que deviam seguir sem vacilar. Cifrava-se seu ofício em diagnosticar a moléstia, pois que os sábios de Lisboa, dois séculos antes, já haviam estabelecido à maneira invariável de as curar. Tão pouco é essa bárbara técnica, de parceria com pomposa estupidez e palavreado sem sentido, posta inteiramente de lado nos demais lugares do Brasil até hoje. Não somente a ciência médica, como qualquer ciência, é ali planta exótica”.
O fracasso destas práticas médicas levaram o povo a perceber “a natureza enganosa de semelhantes posturas”, o que era “bem visível pela ânsia com que buscam alívio para as suas saúdes, junto a todo bretão”.

 

NASCE UM MÉDICO BRETÃO

Luccock acaba assumindo a prática médica: “Meu hospedeiro, que era asmático, na suposição de eu partilhar da habilidade comum aos meus patrícios, rogou-me que o curasse. Nada sei de medicina; em todo caso, arrisquei-me a dar-lhe umas tantas poções triviais que me pareceram capazes de lhe aliviar tanto o espírito como a tosse. Parecendo-lhe ter melhorado, logo proclamou minha fama, de maneira tal que fui assediado por pacientes portadores de todas as espécies de moléstias, muitas das quais levariam o próprio Esculápio a quebrar a cabeça. Nos casos em que não havia perigo de causar dano, muitas vezes me sentia na obrigação de receitar; noutros, porém, recusava-me decididamente. Foi isso motivo para que minha reputação assumisse um feitio diverso, pois que me tinham por grosseiro, quando na realidade era apenas tímido, pela consciência da minha ignorância.
        O muito que se disse a meu respeito, foi mais longe do que me era dado esperar. Na minha volta ulterior para o Rio [de Janeiro], aconteceu de cair doente um da equipagem, sendo-me pedido que usasse em seu benefício da habilidade que não duvidavam que eu possuía, apoiando o rogatório pela observação de não haver perigo que eu fosse aborrecido pelo doente, como me acontecera no Rio Grande. O sofrimento e a simplicidade reunidos recomendavam o doente à minha atenção, e eu dei-lhe uns poucos grãos de calomelano; depois do que, mas não sei dizer em conseqüência de que, ele logo melhorou”.

Nos primórdios do século XIX as condições médico-higienistas e sanitaristas na Vila do Rio Grande de São Pedro eram precárias. Os comentários de Luccock permitem refletir dos sofrimentos da população que necessitasse de orientação ou intervenção médica. Ao longo daquele século em todos os países, a crença na Medicina foi abalada por sistemáticas epidemias, momentos culminantes que evidenciavam a precariedade e fragilidade do saber médico. 


Quadro de Rembrandt de 1632. Título: A Lição de Anatomia do Dr. Tulp. 

Carta de Exame para exercer a Medicina no Brasil em 1820. Arquivo Nacional. 


sexta-feira, 19 de outubro de 2018

CARTA DO CACIQUE SEATTLE



Cacique Seattle em 1864.   Museum of History and Industry à Seattle.

Os discursos estão repletos de verdades e de mentiras. A boca que os pronuncia pode expressar a sinceridade ou as mais infames inveracidades. A sociedade ocidental se construiu em cima de discursos legitimadores e muitas vezes distantes dos reais interesses que continham. Análises do discurso são úteis para desvelar o que está por trás do argumento, do excesso de palavras ou do silêncio de uma fala.
Um discurso notável e de desconcertante inteligência foi pronunciado por um cacique indígena da tribo Duwamich no atual estado de Washington, Estados Unidos. A pureza das palavras até hoje soam com veracidade, com uma força crítica que rompe a acomodação cotidiana. O cacique Seattle (1786-1866) teria pronunciado o discurso em 1854 ou 1855 e a lenda diz que ele enviara uma suposta carta ao presidente dos Estados Unidos Franklin Pierce. Uma versão mais confiável é de que o discurso foi proferido naquele período e anotado pelo Dr. Henry Smith sendo publicado no jornal Seattle Sunday Star no ano de 1887. O Dr.Smith teria estado presente quando do pronunciamento do Grande Cacique, tendo o texto do artigo se baseado nas anotações que seu autor teria feito na ocasião do discurso. Conforme o Smith, o “velho cacique Seattle era o maior índio que eu jamais havia visto. E o que tinha aparência mais nobre. Em seus mocassins, ele media mais de 1,80m, ombros largos, tórax amplo e traços finos. Seus olhos eram grandes, inteligentes, expressemos e amigáveis quando em repouso, e espelhavam fielmente os variados estados de espírito da grande alma que olhava através deles”.
No dia do discurso, ele havia sido procurado pelo comissário para assuntos indígenas (a mando do presidente americano) para fazer uma oferta de compra das terras da tribo Duwamish. Neste encontro, conforme anotações de Smith quando do ocorrido, o cacique Seattle levantou-se e colocou uma mão sobre a cabeça do comissário e lentamente apontando para o céu com o dedo indicador da outra, em tom solene e impressionante, começou seu memorável pronunciamento:

“O grande chefe de Washington mandou dizer que quer comprar a nossa terra. O grande chefe assegurou-nos também da sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não necessita da nossa amizade. Nós vamos pensar na sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará a nossa terra. O grande chefe de Washington pode acreditar no que o chefe Seattle diz com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na mudança das estações do ano. Minha palavra é como as estrelas, elas não empalidecem.
Como se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia é estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água. Como pode então comprá-los de nós? Decidimos apenas sobre as coisas do nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo.
Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um torrão de terra é igual ao outro. Porque ele é um estranho, que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, nem sua amiga, e depois de exauri-la ele vai embora. Deixa para trás o túmulo de seu pai sem remorsos. Rouba a terra de seus filhos, nada respeita. Esquece os antepassados e os direitos dos filhos. Sua ganância empobrece a terra e deixa atrás de si os desertos. Suas cidades são um tormento para os olhos do homem vermelho, mas talvez seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que nada compreende.
Não se pode encontrar paz nas cidades do homem branco. Nem lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o zunir das asas dos insetos. Talvez por ser um selvagem que nada entende, o barulho das cidades é terrível para os meus ouvidos. E que espécie de vida é aquela em que o homem não pode ouvir a voz do corvo noturno ou a conversa dos sapos no brejo à noite? Um índio prefere o suave sussurro do vento sobre o espelho d'água e o próprio cheiro do vento, purificado pela chuva do meio-dia e com aroma de pinho. O ar é precioso para o homem vermelho, porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar, animais, árvores, homens. Não parece que o homem branco se importe com o ar que respira. Como um moribundo, ele é insensível ao mau cheiro.
Se eu me decidir a aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e não compreendo que possa ser de outra forma. Vi milhares de bisões apodrecendo nas pradarias abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais valioso que um bisão, que nós, peles vermelhas matamos apenas para sustentar a nossa própria vida. O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem os homens morreriam de solidão espiritual, porque tudo quanto acontece aos animais pode também afetar os homens. Tudo quanto fere a terra fere também os filhos da terra.
Os nossos filhos viram os pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio e envenenam seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias. Eles não são muitos. Mais algumas horas ou até mesmo alguns invernos e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nestas terras ou que tem vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará para chorar, sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso.
De uma coisa sabemos, que o homem branco talvez venha há um dia descobrir: o nosso Deus é o mesmo Deus. Julga, talvez, que pode ser dono Dele da mesma maneira como deseja possuir a nossa terra. Mas não pode. Ele é Deus de todos. E quer bem da mesma maneira ao homem vermelho como ao branco. A terra é amada por Ele. Causar dano a terra é demonstrar desprezo pelo Criador. O homem branco também vai desaparecer, talvez mais depressa do que as outras raças. Continua sujando a sua própria cama e há de morrer, uma noite, sufocado nos seus próprios dejetos. Depois de abatido o último bisão e domados todos os cavalos selvagens, quando as matas misteriosas federem à gente, quando as colinas escarpadas se encherem de fios que falam, onde ficarão então os sertões? Terão acabado. E as águias? Terão ido embora. Restará dar adeus à andorinha da torre e à caça; o fim da vida e o começo pela luta pela sobrevivência”.

Índia Suquamish em 1912. Fotografo: Edward Curtiss.  


quarta-feira, 10 de outubro de 2018

CENTENÁRIO DA GRIPE ESPANHOLA

As epidemias acompanham a trajetória humana desde tempos imemoriais. O homo sapiens já sobreviveu há inúmeras epidemias, mas nenhuma foi tão devastadora como a Gripe Espanhola. O ano de 1918 assinalou o final da Primeira Grande Guerra que matou 10 milhões de pessoas. Também foi marcado por uma pandemia de gripe que eclodiu na Espanha em fevereiro espalhando-se pela Europa e outros Continentes. Uma gripe benigna de rápida difusão e baixa letalidade que quando retornou em junho deste mesmo ano, trouxe a ilusão de repetir à anterior. Ilusão que foi desfeita pela alta letalidade associada ao vírus influenza H1N1. A alta virulência e o extenso obituário provocado pela Gripe Espanhola de 1918 marcaram a geração que sobreviveu a sua passagem pelo Planeta.
Em 1918, o estado sanitário na Europa era precário. Doenças como o tifo, tuberculose, cólera e disenteria tinham cunho epidêmico. Desde 1914, a Primeira Guerra Mundial provocava devastação e alta mortalidade. A primeira onda epidêmica de gripe espalhou-se pela Europa, América do Norte, Nova Zelândia, Índia e África do Sul, não sendo considerada grave e decaindo no final de julho. A segunda onda epidêmica iniciou em fins de agosto culminando em setembro de 1918. Somente não alcançou algumas ilhas do Pacífico Sul e Nova Guiné. A virulência foi imensa e a mortalidade excepcional, inclusive na faixa dos 15 aos 45 anos. Em cerca de seis meses a epidemia matou mais que quatro anos de guerra. Estima-se pelo menos 20 milhões de mortos (1,5% da população do planeta e 600 milhões de infectados). A denominação de Gripe Espanhola foi divulgada na Inglaterra quando da primeira onda epidêmica em abril de 1918. Na Espanha causou grande mortalidade, porém, não há indícios que aí teve origem. A denominação 'gripe espanhola' partia deste pressuposto equivocado de que a moléstia havia se originado na Espanha e/ou lá fizera o maior número de vítimas. Outra explicação dizia que a Espanha, país neutro durante a Primeira Guerra Mundial, não censurava as notícias sobre a existência da gripe epidêmica, daí a dedução de que a moléstia matava mais naquele país. A Gripe Espanhola atingiu Dacar na África contaminando soldados brasileiros e matando mais de uma centena. Mesmo longe de casa os brasileiros começavam a morrer com a epidemia antes do final de agosto de 1918.
Acervo: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/ha-100-anos-gripe-espanhola


O vírus de 1918 foi identificado em 2006, denominado H1N1 é um vírus oriundo das aves (uma gripe aviária) que sofreu uma mutação e formou uma cepa letal que causou à grande devastação no Planeta. Qual era a letalidade da gripe de 1918? Conforme Gina Kolata era 25 vezes mais mortal do que as gripes comuns. Essa gripe matou 2,5 por cento de suas vítimas.

Em breve o livro estará disponível para download. 

A EPIDEMIA E A ESPANHOLA

A epidemia é uma ruptura do cotidiano onde o medo, o isolamento, a desintegração dos vínculos sociais do espaço, da rua e das sociabilidades, a perda de entes queridos que são referenciais de segurança e continuidade, são fatores que convergem para um colapso do tempo presente.
Segundo Jean Delumeau (História do Medo no Ocidente), o período epidêmico desperta um comportamento coletivo de insegurança não apenas pela atuação da doença, mas pela desestruturação do ambiente cotidiano, das sociabilidades, do espaço do fazer na rua e dos projetos do futuro. O medo do isolamento e da falta de perspectivas, com a morte rondando inclusive as pessoas próximas, produz um efeito psíquico também devastador. O trabalho e as práticas cotidianas se desintegram sem uma perspectiva sólida de superação.
Em todo o mundo entre 20 e 50 milhões de pessoas morreram com a gripe espanhola. No Brasil, mais de 300 mil pessoas sucumbiram e milhões contraíram a doença. Associado a epidemia, às sociedades evidenciam a fragilidade dos serviços públicos e privados e a desestruturação do cotidiano perdendo a expectativa do futuro. As precárias condições de atendimento médico-hospitalar, as insalubres condições de higiene, a desestruturação do sistema produtivo da agricultura-pecuária-comércio e indústria, levaram ao desabastecimento e à especulação desenfreada que conduziu ao desencadeamento de processos inflacionários. Desafios e enfrentamentos que foram travados em diferentes locais do planeta em busca da sobrevivência, as materialidades e imaterialidades do cotidiano, são fragmentos complexos e produtivos para as incursões dos historiadores.

Hospital militar em Camp Funston, Kansas In: http//www.army.mil 
Medicamento para gripe da Bayer e a representação da morte (o ceifador). Revista A Cigarra 219 (1921).