Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

terça-feira, 23 de outubro de 2018

A PRÁTICA DA MEDICINA EM RIO GRANDE (1809)

“A história da Medicina é instrutiva, porquanto mostra a extraordinária dificuldade de se assentar uma habilidade prática sobre uma base científica sólida. Quase todos os progressos verificados na prática médica, até tempos bem recentes, foram alcançados através da observação direta, da experimentação, ou da simples dedução a partir de uma ampla variedade de fatos bem conhecidos”. (John Ziman. A Força do Conhecimento,1977)


Entre os escritos deixados pelo comerciante inglês John Luccock (Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil) quando de sua passagem pela Vila do Rio Grande de São Pedro, os apontamentos sobre as precárias atividades médicas são relevantes para observar o imaginário da época.
Luccock relatou que havia um médico alemão em Rio Grande que falava “extraordinariamente bem a nossa língua e por vezes comparecia aos jantares da colônia inglesa”. Este médico freqüentava os jantares organizados pelos comerciantes ingleses e num destes encontros, comentou-se que em certo mês do ano de 1809, ocorreram poucos assassinatos. O alemão replicou dizendo que “somente onze casos lhe havia chegado ao conhecimento, sendo que em nenhum deles o atentado fora de conseqüência fatal”. Luccock desconfiou que o número fosse exagerado, “todavia essa observação prova que era comum darem-se muitos casos dessa espécie. Na realidade, é provável que a facada que é infelizmente tão comum por todo o Brasil, nem sempre seja dada na intenção de matar, o que não impede que os ferimentos provocados sejam freqüentemente graves. A maldade deliberada leva a assaltos em casa ou despacha a vítima por meio do veneno.”

O MÉDICO ALEMÃO
      Para o comerciante inglês que já expressava a tradicional relação antagônica teuto-britânica, a situação da medicina no Rio Grande dificilmente poderia ser melhor ilustrada do que através de alguns detalhes do caráter e das vicissitudes desse médico alemão. Ele era natural de Hanôver, tendo por algum templo clinicado ilegalmente na Alemanha, viajou para Constantinopla, ali se fixou por breve tempo. Posteriormente, foi para França, tornou-se cirurgião de uma fragata e nessa situação veio parar na América do Sul, onde, deixando seu navio em Santa Catarina, aí figurou como cônsul francês. Como a Vila do Rio Grande de São Pedro “oferecia campo de extensas práticas de medicina, mudou-se para lá, onde atualmente goza de muita fama em sua profissão, não tendo concorrentes por todo um círculo de trinta milhas de raio. Tive ocasião de ver, em sua residência pacientes, que vinham dessa distância, reputados ricos e com aparência respeitável. O notável Doutor praticava tanto a cirurgia como a medicina e de uma feita os instrumentos que usava caíram sob os meus olhos. Estava na maior das desordens e absolutamente impróprios para a mais vulgar das intervenções.” Segundo Luccock o alemão teria pego uma serra enferrujada sendo questionado se ‘se atreveria a amputar um membro com semelhante instrumento’, ele respondeu ‘Por que não?’ afinal, ‘é a melhor que possuo e ninguém mais aqui é capaz de realizar tal operação’, concluiu.
Este episódio fez o inglês refletir sobre os grandes “padecimentos dos doentes destas paragens, pois que raro é que pensem em recorrer a conselho médico, enquanto a natureza não se acha quase que por completo exausta, para, então, serem muitos deles arrastados em toscos carros, através do ínvio sertão, por muitas léguas cansativas, expostos à chuva, ao vento e ao sol e talvez a todos estes alternativamente. Estranho seria que a morte não viesse freqüentemente interromper bruscamente a jornada ou torná-las bem depressa completamente inúteis.”
Porém, as orientações da medicina lusitana também são criticas pelo inglês: “as agruras da busca pelo doutor e a sua falta de habilidade não são as únicas dificuldades com que o paciente tem que lutar. De acordo com as leis coloniais de Portugal, por essa época em pleno vigor, os boticários eram obrigados a ter sobre o balcão dois velhos livros de receitas, a que deviam seguir sem vacilar. Cifrava-se seu ofício em diagnosticar a moléstia, pois que os sábios de Lisboa, dois séculos antes, já haviam estabelecido à maneira invariável de as curar. Tão pouco é essa bárbara técnica, de parceria com pomposa estupidez e palavreado sem sentido, posta inteiramente de lado nos demais lugares do Brasil até hoje. Não somente a ciência médica, como qualquer ciência, é ali planta exótica”.
O fracasso destas práticas médicas levaram o povo a perceber “a natureza enganosa de semelhantes posturas”, o que era “bem visível pela ânsia com que buscam alívio para as suas saúdes, junto a todo bretão”.

 

NASCE UM MÉDICO BRETÃO

Luccock acaba assumindo a prática médica: “Meu hospedeiro, que era asmático, na suposição de eu partilhar da habilidade comum aos meus patrícios, rogou-me que o curasse. Nada sei de medicina; em todo caso, arrisquei-me a dar-lhe umas tantas poções triviais que me pareceram capazes de lhe aliviar tanto o espírito como a tosse. Parecendo-lhe ter melhorado, logo proclamou minha fama, de maneira tal que fui assediado por pacientes portadores de todas as espécies de moléstias, muitas das quais levariam o próprio Esculápio a quebrar a cabeça. Nos casos em que não havia perigo de causar dano, muitas vezes me sentia na obrigação de receitar; noutros, porém, recusava-me decididamente. Foi isso motivo para que minha reputação assumisse um feitio diverso, pois que me tinham por grosseiro, quando na realidade era apenas tímido, pela consciência da minha ignorância.
        O muito que se disse a meu respeito, foi mais longe do que me era dado esperar. Na minha volta ulterior para o Rio [de Janeiro], aconteceu de cair doente um da equipagem, sendo-me pedido que usasse em seu benefício da habilidade que não duvidavam que eu possuía, apoiando o rogatório pela observação de não haver perigo que eu fosse aborrecido pelo doente, como me acontecera no Rio Grande. O sofrimento e a simplicidade reunidos recomendavam o doente à minha atenção, e eu dei-lhe uns poucos grãos de calomelano; depois do que, mas não sei dizer em conseqüência de que, ele logo melhorou”.

Nos primórdios do século XIX as condições médico-higienistas e sanitaristas na Vila do Rio Grande de São Pedro eram precárias. Os comentários de Luccock permitem refletir dos sofrimentos da população que necessitasse de orientação ou intervenção médica. Ao longo daquele século em todos os países, a crença na Medicina foi abalada por sistemáticas epidemias, momentos culminantes que evidenciavam a precariedade e fragilidade do saber médico. 


Quadro de Rembrandt de 1632. Título: A Lição de Anatomia do Dr. Tulp. 

Carta de Exame para exercer a Medicina no Brasil em 1820. Arquivo Nacional. 


Um comentário:

  1. Professor. Os livros estão todos editados ou somente alguns? Gostaria de comprar alguns, principalmente esse que me surpreendeu: "Histórias Irreais do Rio Grande". Gostaria de adquiri-lo na versão impressa. Onde encontro? Abraço. Guilherme Saliés PS: Quem sabe uma parceria em pesquisas sobre crimes e processos judiciais na cidade do Rio Grande? Eu entro com a análise jurídica e auxilio na pesquisa, e o Sr. com o livro. Isso foi uma coisa que sempre quis pesquisar... Contos de horror... reais.

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