Porto do Rio Grande em 1908

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quarta-feira, 24 de outubro de 2018

A CASA DA RODA DOS EXPOSTOS



    “Durante o período colonial, muitas mulheres viram-se diante da necessidade de abandonar os próprios filhos. Não é exagero afirmar que a história do abandono de crianças é a história secreta da dor feminina, principalmente da dor compartilhada por mulheres que enfrentavam obstáculos intransponíveis ao tentar assumir e sustentar os filhos legítimos ou nascidos fora das fronteiras matrimoniais”. Renato Venâncio. Maternidade Negada In: PRIORE, Mary (Org.) História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.

        O abandono de bebes recém-nascidos ou de crianças era uma prática comum nos séculos XVII e XVIII no Brasil colonial. Meninas e meninos eram abandonados em calçadas, praias ou terrenos baldios, falecendo por falta de alimentos, pelo frio ou passando a conviver com as lixeiras, e tendo por companhia cães, porcos e ratos existentes nas ruas fétidas das desorganizadas e nascentes cidades brasileiras.
         Ainda no século XVI os padres jesuítas criaram colégios para receberem os meninos índios que perderam a família devido às pestes ou conflitos com os colonizadores europeus. O abandono das crianças intensificou-se entre a população portuguesa no século XVII, especialmente com a dinamização econômica e incremento demográfico.
        O catolicismo lusitano era fundado na crença da danação das almas que faleciam sem receber o sacramento do batismo ou a assistência espiritual cristã (ficando no limbo uma espécie de purgatório para crianças), portanto o abandono dos menores era fator de indignação. A compreensão de alguns era de que os inocentes enjeitados que morriam sem receber o sacramento cristão não poderiam ser penalizados por erros e faltas cometidas pelos pais e que provocaram o seu abandono. A partir do século XIII, na Itália, Espanha, Portugal e França foram criadas casas de caridade e instituições voltadas a retirar os bebês do caminho do limbo através da obtenção do sacramento do batismo.
No Brasil, o futuro espiritual dos enjeitados era fator de inquietação da elite esclarecida ligada as câmaras municipais, ao comércio ou por parte de cristãos preocupados com a salvação da alma através da atuação caridosa para com os inocentes. A Santa Casa de Misericórdia difundida pelo Brasil foi um centro de convergências de ações e contribuições financeiras voltadas à guarda e organização destas ações individuais ou de grupos. A motivação inicial de caráter religioso numa densa formação espiritual católica da sociedade brasileira transcendeu a salvação das almas e obteve uma grande repercussão na atitude social perante o menor e o abandono. Somente os estabelecimentos da Santa Casa do Rio de Janeiro receberam mais de cinqüenta mil crianças enjeitadas entre os séculos XVIII e XIX, o que assinala a dimensão do problema.
       O abandono no campo era mais raro, pois os enjeitados acabavam sendo adotados como filhos de criação ou agregados. No trabalho agrícola toda mão-de-obra era bem vinda e desde cedo, a criança já trabalhava na terra ou em atividades campesinas. Os pequenos agricultores e os pescadores pobres não tinham acesso à mão-de-obra dos escravos que era cara, recorrendo à força de trabalho familiar seja de crianças, adultos ou idosos. O núcleo doméstico deveria produzir os alimento necessário para a subsistência na medida em que o nível de renda gerado era baixo.   Acompanhados das mães, desde cedo as crianças desempenham atividades voltadas à sobrevivência da família, seja auxiliando no preparo de alimentos, transportando água, alimentando animais domésticos e de abate ou auxiliando na capina da roça. O abandono das crianças era evitado, pois sua função produtiva estava garantida já que a sobrevivência exigia um trabalho contínuo para garantir a manutenção do grupo. Nos centros urbanos, o trabalho infantil apresentava um valor reduzido ou dispensável. A mão-de-obra nas artesanias exigia especialização profissional e, no caso das atividades portuárias, era preciso muita força física para embarcar e desembarcar os produtos. Além disso, no meio rural havia pobreza, mas não a miséria existente nos maiores centros urbano como Rio de Janeiro, Salvador, Vila Rica e São Paulo, onde a brutalização era mais acentuada devido à falta de condições mínimas de vida de milhares de indivíduos.
Entre os séculos XIII e XIX a sociedade ocidental católica desenvolveu uma forma de assistência infantil chamada de Casa Roda dos Expostos que deveria garantir a sobrevivência do enjeitado e preservar oculto a identidade da pessoa que abandonou ou encontrou abandonado um bebê. Estas rodas eram “de forma cilíndrica e com uma divisória no meio, esse dispositivo era fixado no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro inferior da parte externa, o expositor colocava a criança que enjeitava, girava a Roda e puxava um cordão com uma sineta para avisar à vigilante – ou Rodeira – que um bebê acabara de ser abandonado, retirando-se furtivamente do local, sem ser reconhecido” (MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998). Após ser recolhida pela porteira (uma mulher de avançada idade e de costumes honestos) e identificado o seu estado de saúde e nutrição, a criança era encaminhada a uma ama-de-leite e depois a uma ama-seca ou de criação (requisitadas entre as expostas) que cuidava do menino ou menina até os sete anos de idade. A criação também poderia ser feita por pessoas que enviavam um requerimento a Santa Casa desejando criar os enjeitados devendo informar regularmente sobre as condições de saúde da criança à administração da Santa Casa. Para isto recebiam um pagamento mensal para custear a criação da criança, até chegar aos oito anos de idade para meninas ou sete anos para meninos. Nesta idade, a criança deveria ser devolvida a Casa da Roda (Santa Casa que administrava a Roda dos Expostos). Não ocorrendo à devolução, a criança ficaria sob-responsabilidade da mãe criadeira até a idade de 12 anos sem receber pagamento da Santa Casa. Após os doze anos a responsabilidade passava ao Juiz de Órfãos. Para a manutenção dos pagamentos das crianças mantidas nas Casa da Roda, a Santa Casa utilizava recursos próprios, de doações de particulares, do governo, das câmaras municipais e dos rendimentos dos bens dos expostos oriundos de doações.
No Rio Grande do Sul, a Casa da Roda foi instituída por lei provincial nº 9 de 22 de novembro de 1837, funcionando inicialmente na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Posteriormente, a Santa Casa de Misericórdia da cidade do Rio Grande passará a prestar este serviço. 
Roda dos Expostos. Autor: ilustração de Thomas Ewbank (século XIX). 


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