“Durante o período colonial, muitas mulheres
viram-se diante da necessidade de abandonar os próprios filhos. Não é exagero
afirmar que a história do abandono de crianças é a história secreta da dor
feminina, principalmente da dor compartilhada por mulheres que enfrentavam
obstáculos intransponíveis ao tentar assumir e sustentar os filhos legítimos ou
nascidos fora das fronteiras matrimoniais”. Renato Venâncio. Maternidade
Negada In: PRIORE, Mary (Org.) História das Mulheres no Brasil. São
Paulo: Contexto, 1997.
O abandono de bebes recém-nascidos ou de crianças era uma
prática comum nos séculos XVII e XVIII no Brasil colonial. Meninas e meninos
eram abandonados em calçadas, praias ou terrenos baldios, falecendo por falta
de alimentos, pelo frio ou passando a conviver com as lixeiras, e tendo por
companhia cães, porcos e ratos existentes nas ruas fétidas das desorganizadas e
nascentes cidades brasileiras.
Ainda no século XVI os padres jesuítas criaram colégios
para receberem os meninos índios que perderam a família devido às pestes ou
conflitos com os colonizadores europeus. O abandono das crianças
intensificou-se entre a população portuguesa no século XVII, especialmente com
a dinamização econômica e incremento demográfico.
O catolicismo lusitano era fundado na crença da danação das
almas que faleciam sem receber o sacramento do batismo ou a assistência
espiritual cristã (ficando no limbo uma espécie de purgatório para crianças),
portanto o abandono dos menores era fator de indignação. A compreensão de
alguns era de que os inocentes enjeitados que morriam sem receber o sacramento
cristão não poderiam ser penalizados por erros e faltas cometidas pelos pais e
que provocaram o seu abandono. A partir do século XIII, na Itália, Espanha,
Portugal e França foram criadas casas de caridade e instituições voltadas a
retirar os bebês do caminho do limbo através da obtenção do sacramento do
batismo.
No Brasil, o futuro espiritual dos enjeitados
era fator de inquietação da elite esclarecida ligada as câmaras municipais, ao
comércio ou por parte de cristãos preocupados com a salvação da alma através da
atuação caridosa para com os inocentes. A Santa Casa de Misericórdia difundida
pelo Brasil foi um centro de convergências de ações e contribuições financeiras
voltadas à guarda e organização destas ações individuais ou de grupos. A
motivação inicial de caráter religioso numa densa formação espiritual católica
da sociedade brasileira transcendeu a salvação das almas e obteve uma grande
repercussão na atitude social perante o menor e o abandono. Somente os
estabelecimentos da Santa Casa do Rio de Janeiro receberam mais de cinqüenta
mil crianças enjeitadas entre os séculos XVIII e XIX, o que assinala a dimensão
do problema.
O abandono no campo era mais raro, pois os enjeitados
acabavam sendo adotados como filhos de criação ou agregados. No trabalho
agrícola toda mão-de-obra era bem vinda e desde cedo, a criança já trabalhava
na terra ou em atividades campesinas. Os pequenos agricultores e os pescadores
pobres não tinham acesso à mão-de-obra dos escravos que era cara, recorrendo à
força de trabalho familiar seja de crianças, adultos ou idosos. O núcleo
doméstico deveria produzir os alimento necessário para a subsistência na medida
em que o nível de renda gerado era baixo.
Acompanhados das mães, desde cedo as crianças desempenham atividades
voltadas à sobrevivência da família, seja auxiliando no preparo de alimentos,
transportando água, alimentando animais domésticos e de abate ou auxiliando na
capina da roça. O abandono das crianças era evitado, pois sua função produtiva
estava garantida já que a sobrevivência exigia um trabalho contínuo para
garantir a manutenção do grupo. Nos centros urbanos, o trabalho infantil
apresentava um valor reduzido ou dispensável. A mão-de-obra nas artesanias
exigia especialização profissional e, no caso das atividades portuárias, era
preciso muita força física para embarcar e desembarcar os produtos. Além disso,
no meio rural havia pobreza, mas não a miséria existente nos maiores centros
urbano como Rio de Janeiro, Salvador, Vila Rica e São Paulo, onde a
brutalização era mais acentuada devido à falta de condições mínimas de vida de
milhares de indivíduos.
Entre os séculos XIII e XIX a sociedade
ocidental católica desenvolveu uma forma de assistência infantil chamada de
Casa Roda dos Expostos que deveria garantir a sobrevivência do enjeitado e
preservar oculto a identidade da pessoa que abandonou ou encontrou abandonado
um bebê. Estas rodas eram “de forma cilíndrica e com uma divisória no meio,
esse dispositivo era fixado no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro
inferior da parte externa, o expositor colocava a criança que enjeitava, girava
a Roda e puxava um cordão com uma sineta para avisar à vigilante – ou Rodeira –
que um bebê acabara de ser abandonado, retirando-se furtivamente do local, sem
ser reconhecido” (MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada.
São Paulo: Hucitec, 1998). Após ser recolhida pela porteira (uma mulher de
avançada idade e de costumes honestos) e identificado o seu estado de saúde e
nutrição, a criança era encaminhada a uma ama-de-leite e depois a uma ama-seca
ou de criação (requisitadas entre as expostas) que cuidava do menino ou menina
até os sete anos de idade. A criação também poderia ser feita por pessoas que
enviavam um requerimento a Santa Casa desejando criar os enjeitados devendo
informar regularmente sobre as condições de saúde da criança à administração da
Santa Casa. Para isto recebiam um pagamento mensal para custear a criação da
criança, até chegar aos oito anos de idade para meninas ou sete anos para
meninos. Nesta idade, a criança deveria ser devolvida a Casa da Roda (Santa
Casa que administrava a Roda dos Expostos). Não ocorrendo à devolução, a
criança ficaria sob-responsabilidade da mãe criadeira até a idade de 12
anos sem receber pagamento da Santa Casa. Após os doze anos a responsabilidade
passava ao Juiz de Órfãos. Para a manutenção dos pagamentos das crianças
mantidas nas Casa da Roda, a Santa Casa utilizava recursos próprios, de doações
de particulares, do governo, das câmaras municipais e dos rendimentos dos bens
dos expostos oriundos de doações.
No Rio Grande do Sul, a Casa da Roda foi
instituída por lei provincial nº 9 de 22 de novembro de 1837, funcionando inicialmente
na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Posteriormente, a Santa Casa de
Misericórdia da cidade do Rio Grande passará a prestar este serviço.
Roda dos Expostos. Autor: ilustração de Thomas Ewbank (século XIX). |
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