Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quinta-feira, 28 de junho de 2018

O ITALIANO ENRICO AMBAUER



         O italiano Enrico Ambauer (1840-1899) nasceu em Milão e morou na cidade do Rio Grande entre as décadas de 1860 e 1880 atuando como professor de música, empresário e proponente de um projeto de colonização. Chegando ao Rio Grande do Sul com cerca de 18 anos de idade, abrasileirou seu nome para Henrique Schutel Ambauer. Em 1858 empreendeu uma viagem de reconhecimento de municípios do Rio Grande do Sul quando percorreu várias localidades e produziu observações que foram publicadas posteriormente. Na Biblioteca Rio-Grandense se encontra uma cópia microfílmica dos originais datados de 1873. Um riquíssimo material bibliográfico foi obtido em acervos europeus pelo historiador Abeillard Barreto e depositado na Biblioteca Rio-Grandense – certamente, esta obra é fruto deste esforço incansável de Barreto.

             Estes apontamentos foram publicados em 1888 na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro com o título A Província do Rio Grande do Sul: descrição e viagens. Porém, o interessante é que mais de cem páginas do manuscrito não foram publicados e relatam em maiores detalhes as experiências vividas nesta jornada entre o Porto do Rio Grande e localidades do centro e norte do Rio Grande do Sul. Este material inédito foi pesquisado por Valter Noal Filho e José Marchior (A Viagem de Henrique Schutel Ambauer pela Província do RS, Revista Balduinia, UFSM, n. 42, p. 03-16, 2013).

           Em relação à cidade do Rio Grande, Francisco das Neves Alves (Visões do Rio Grande: a vila/cidade na ótica européia. Rio Grande: Pós-Graduação em História do RS, FURG, 2008), elaborou uma síntese das impressões de Ambauer sobre a localidade em que foi morador por quase duas décadas.

     O escritor italiano fez uma descrição geográfica da localidade, com destaque para o acesso, a hidrografia, o relevo e o conjunto de ilhas no entorno da urbe. Os riscos da costa gaúcha estão presentes em sua narrativa que descrevia que, entre o 29º e o 33º austral e 49º e 53º ocidental estava uma costa baixa, árida, monótona e triste, a qual o cauteloso navegante evitava se não se dirigia ao único Porto acessível da região. Sobre esta faixa litorânea, relatava que as correntezas, os ventos, os descuidos e as espertezas tinham dado a essa costa e ao seu Porto uma reputação pouco lisonjeira, num quadro em que, todas essas circunstâncias promoviam a demora do desenvolvimento da navegação de alto bordo para a Província, impedindo assim a ela tomar rapidamente o grau de adiantamento que poderia atingir.

A respeito do acesso à comunidade portuária, Ambauer destacava que o Rio Grande era o único que permitia a entrada de navios que não demandassem mais de 18 palmos, e isso nem sempre, sendo mais regular de 14 a 15. Explicava que, dificultavam a passagem pela da Barra dois bancos que lhe obstruíam a entrada, formando-se entre eles um canal mutável segundo a direção mais longa dos ventos e correntezas. Narrava ainda que a massa das águas que escoava pela Barra do Rio Grande seria mais que suficiente para ter um canal de franca navegação, se ela não tivesse perdido o declive nos dois lagos internos e na bacia que os recebia, de maneira que o nivelamento, que formava esse espraiamento das águas fluviais, paralisava um tanto o seu curso e apenas o escoamento com diminuta força permitia a conservação desse pequeno Canal da Barra. Refletindo uma das maiores aspirações rio-grandinas, o escritor explicava que era de desejar que, para o futuro, se encontrasse meio de aumentar a profundidade do canal, para que a Província do Rio Grande pudesse conseguir a afluência de uma navegação mais desenvolvida, enriquecendo-se na grande permuta internacional. O serviço de praticagem, a sinalização náutica, as embarcações de apoio e os pontos de desembarque também se faziam presentes na narrativa do italiano.

Com referência à organização econômica e urbana, o autor destacava que, comercialmente a cidade do Rio Grande era considerada o interposto geral, sendo o ponto no qual convergem tanto o comércio exterior como o interior. Nesse quadro, relatava que a parte mais importante da cidade era o seu litoral, em linha quase reta, de leste a oeste, no qual duas linhas de embarcações corriam na mesma direção, deixando entre si um canal de poucas braças de largura, por onde transitavam as embarcações que demandavam o ancoradouro. Fazia referência ainda ao fato de que as casas que margeavam o litoral, como eram quase todas de sobrado de um e dois andares, algumas elegantes com graciosos mirantes, davam agradável aspecto ao panorama visto do mar, seguindo-se, porém, algumas ruas paralelas e outras transversais, que não valeriam à primeira, havendo apenas algumas praças e casas particulares de aparência regular. Descrevia também que a cidade possuía uma alfândega e um excelente cais para o serviço da mesma, tendo uma praça de comércio, onde funcionava igualmente o correio, casa da câmara, mercado, um enorme edifício – hospital de caridade – que, segundo sua concepção, poderia ser menor e ter mais acomodações. As praças, as chácaras, o incômodo com as areias e o abastecimento de água são outros temas abordados por Ambauer, para quem era fora de dúvida que a cidade do Rio Grande viria a ser uma das mais importantes das do Sul da América, quando um caminho de ferro a ligasse com a fronteira da Província.

A obra de Ambauer, mesclando conhecimentos históricos e geográficos, bem como narrativas fruto de seu próprio testemunho ou da utilização da literatura disponível, abrangia um amplo conjunto de localidades gaúchas, vislumbrando praticamente todas as regiões da Província naquele final de século XIX. O autor encaminhou seus escritos ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o texto acabaria por ser publicado na Revista do Instituto, servindo à época para divulgação de algumas facetas da vida rio-grandense. As apreciações de Enrico (ou Henrique Schutel) Ambauer sobre a cidade do Rio Grande refletiam a perspectiva de um morador que permaneceu largo tempo junto à comuna, prestando um testemunho in loco que traz em si o significado do registro histórico da urbe portuária numa época de amplas transformações como o foi à virada do século XIX para a seguinte centúria, conclui Alves.

Porto Velho do Rio Grande em julho de 1865. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense.

terça-feira, 26 de junho de 2018

PRAÇA TAMANDARÉ: A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DE UM ESPAÇO PÚBLICO II


A área ocupada pela Praça Tamandaré era parcialmente alagada deixando registro de mortes como foi relatado no jornal Diário do Rio Grande de 23 de julho de 1859, quando um soldado foi encontrado morto em seu interior. Em 1874, outro homem, embriagado, foi encontrado sem vida numa das lagoas num período de fortes chuvas. 
          Um dos poços e o tanque para bebedouro dos animais foi construído em 1848. A Câmara, no ano de 1862, mandou cercar a praça “por marcos e duas ordens de correntes, para que os animais não embaracem os melhoramentos, que seriam: arborizar e fazer um tapete de relva em vez de areias”. Em 13 de janeiro de 1890 foi ordenada a retirada e venda do aramado da praça por estar em mau estado de conservação. No início da década de 1870 haviam cinco poços construídos com tijolos e cantaria e um bebedouro para animais para consumo dos populares. Em 1876 a Companhia Hidráulica comprou na Inglaterra o chafariz situado na proximidade da rua Gen. Neto com Silva Paes. Em 1878 foram fechados os poços por exigência do contrato feito com a Companhia Hidráulica.
Em abril de 1870 a presidência da Província ordenou a Diretoria da Fazenda para liberasse recursos para o aterramento da praça. O projeto de melhoramentos de 1876 propunha fazer uma canalização que concentrasse toda a água acumulada na praça num grande lago central cercado por árvores. Porém, as dificuldades de percorrer a praça no período de chuva, o que a tornava intransitável, mantinha a situação sem solução ainda no ano de 1878 apesar dos debates buscando soluções prosseguirem. Porém, conforme Antenor Monteiro em outubro de 1887 a Câmara “por intermédio da comissão que para isso fora nomeada, contratou o Dr. Duprat, diretor da Companhia Estrada de Ferro, para o transporte diário de 135 wagons (vagões) de areia para aterro da praça a razão de 112$500. Nesse mesmo ano, sob projeto de engenheiro da Câmara, foi iniciado o plano geral do embelezamento da praça. Em 1890 foram despejados 175 wagons de areia”.
Um escritor rio-grandino do século XIX, Carlos Fontana, afirmou que no ano de 1868, a cidade do Rio Grande estava constituída pelas seguintes praças: Sete de Setembro (antiga Praça do Poço), São Pedro (atual Júlio de Castilhos), Caridade Nova (atual Barão de São José do Norte), Municipal (antes General Telles e atual Xavier Ferreira) e Tamandaré (antiga Praça dos Quartéis e Geribanda). A praça Municipal era destacada por Fontana como uma “vasta praça e único passeio recreativo da cidade, é comumente denominada de Boulevard Rio-Grandense”, porém, “lamenta-se que não mereça mais atenção da edilidade”. Já na praça Tamandaré, existiam seis fontes públicas para coleta de água e lavagem de roupa, erguendo-se no centro desta, “uma modesta cruz ali colocada em 1842 pela missão jesuítica a estas plagas”. A praça já ostentava a denominação atual de Tamandaré, mas mantinha a sua função ligada às fontes públicas ali existentes sem a perspectiva imediata de tornar-se uma praça voltada ao “passeio recreativo da população”.
Área almejada e que se valorizou com o desenvolvimento da cidade, a praça Tamandaré começou a receber uma atenção mais destacada a partir de 1895, através de projetos de melhoramento que se estendem até o ano seguinte. O projeto previu a construção de chalé, plantação de mudas de árvores, ajardinamento, construção de lagos e ilhotas. Em 1896, nestes lagos faltava somente a colocação do revestimento de fundo composto por barro oriundo de Pelotas. Portanto os lagos construídos remontam a pelo menos 1896.
Na virada para o século XX a praça já tem um destaque estadual pelo espaço de lazer que passa a proporcionar à população e pela apresentação de bandas musicais como é o caso da Rossini. Na primeira década do século XX, foi instalado o chafariz atualmente situado em frente ao prédio do Hospital Beneficência Portuguesa, tendo sido retirado da praça Xavier Ferreira. Ainda no início do século passado o papel de fornecer água potável foi mantido e a figura dos cata-ventos eram presentes na praça talvez com o objetivo de remoção do excesso de água dos lagos em períodos chuvosos. Os primórdios desta instalação pode ser o final do século XIX, mas talvez remonte até meados do século XVIII, numa prática açoriana, pois um mapa de aproximadamente 1750 apresenta o desenho de um cata-vento em local próximo à atual praça Tamandaré.
Devido à grande dimensão de 44.124 metros quadrados, 316 metros de comprimento por 140 metros de largura, as melhorias e manutenção da praça exigiam recursos razoáveis da municipalidade. Os gastos com aterramento, calçamento, contenção dos alagamentos com as chuvas, edificações, construção do coreto etc, exigiram esforço, mas deixaram um legado a ser mantido. A manutenção deste antigo espaço de cômoros e alagadiços, conquistado à natureza pela atuação humana voltada a edificação de um espaço de sociabilidade pública, precisa ser mantido e melhorado continuamente pela Prefeitura Municipal, pois ele foi um espaço utilizado e mantido com livre trânsito pela população a partir dos primórdios do povoamento. Desde a lavagem de roupa por escravas até os passeios de famílias nos finais de semana, aqui se consolidou um espaço público da população rio-grandina.
Dada a sua importância a praça precisa ser conhecida em sua dimensão histórica e ecológica pela comunidade que circula diariamente por este espaço de preservação natural. E esta é uma contribuição que pode ser dada individual e coletivamente por atores sociais que hoje atuam em diferentes campos do conhecimento: sejam literatos, poetas, historiadores, geógrafos, oceanólogos, ecólogos, botânicos... A praça pode ser um espaço para a educação e o conhecimento ambiental a ser socializado com a população: explicando a formação vegetal, os animais, aves e peixes que se desenvolveram neste “ecossistema”; a formação geológica da Restinga do Rio Grande onde a cidade está assentada e o lençol freático; historiar, como se fez neste breve ensaio, a historicidade deste espaço construído pela ação humana; buscar uma leitura estética a partir das crônicas e poesias; entre outras contribuições que certamente surgiriam.
Outra dimensão a ser enfatizada é o da arte pública com a estatuária e a arte em ferro que está assentada na praça. Da escultura portuguesa do monumento a Bento Gonçalves até arte em ferro francesa dos anjinhos, a presença artística também possibilita desvelar historicidades e representações associadas às motivações de  sua colocação neste espaço público.

Cartão-postal da Praça Tamandaré datado de 1905. 

Cartão-postal da Praça Tamandaré (cata-vento na esquina da Rua Luiz Loréa) datado de 1907. Acervo: Museu da Cidade do Rio Grande.



segunda-feira, 25 de junho de 2018

PRAÇA TAMANDARÉ: A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DE UM ESPAÇO PÚBLICO


A ocupação oficial da atual cidade do Rio Grande ocorreu em 1737, havendo dois centros populacionais. A fortificação do Porto (de caráter civil e militar), cujo epicentro foi o Forte Jesus-Maria-José (proximidades da atual praça Sete de Setembro) com as casas ocupando nas décadas seguintes as atuais ruas General Bacelar, Floriano Peixoto, República do Líbano etc. E a fortificação do Estreito com o Forte de Nossa Senhora da Conceição do Estreito (nas proximidades da atual Hidráulica) que tinha um caráter militar e que foi abandonada na década de 1750.
Os mapas do século XVIII indicam o espaço hoje ocupado pela praça Tamandaré como um anecúmeno formado por cômoros de areia. O deslocamento destes cômoros atrapalhava inclusive as práticas religiosas no atual prédio mais antigo da cidade, a Matriz de São Pedro (1755), pois a areia dificultava o acesso dos fiéis pela porta principal do templo. A continuidade da rua General Bacelar até a atual rua 24 de Maio teve uma importância crescente devido aí concentrar grande parte do contingente militar, a Casa do Governador e um pouco além, na atual praça junto ao Hospital de Caridade, havia o Pelourinho (símbolo do poder judiciário português).
O terreno em frente aos estabelecimentos militares e da administração foi denominado de Praça dos Quartéis, devido à proximidade de edificações militares e também chamada popularmente de geribanda ou giribanda. Conforme Antenor Monteiro (Rebuscos – Jornal Rio Grande) esta palavra poderia ter origem no acesso de escravos e populares para esta área arenosa constituída por algumas lagoas, com os objetivos de coletarem água potável para seus proprietários, encherem pipas para a venda pública do líquido ou para lavarem roupas. Entende Monteiro que “o ajuntamento de gente poderia trazer disputas, sarabandas, descomposturas e mesmo lutas corporais, que poderiam fazer daquele local uma giribanda” (significado popular: descompostura). O nome atual de Praça Tamandaré foi uma homenagem da Câmara Municipal do Rio Grande em sessão realizada no dia 20 de abril de 1865 ao almirante Joaquim Marques Lisboa. Sua atuação na Guerra do Paraguai o fez patrono da Marinha do Brasil.
Visitando a Vila do Rio Grande em 1820, Auguste de Saint-Hilaire (Viagem ao Rio Grande do Sul) presenciou numa das ruas centrais um “mercadinho (quitanda) onde negros, acocorados, vendem legumes, tais como: couves, cebolas, alfaces e laranjas. Como já tenho dito, não há aqui nascentes, nem fontes de água doce, mas atrás da cidade, entre montículos de areia (em lugar denominado Geribanda), cavaram-se poços, onde a pequena profundidade se encontra muito boa água. Os negros vão buscá-la em barris e retiram-na do poço com chifres de bois, no meio dos quais é introduzida uma vara comprida, instrumento que eles chamam de guampa. Estima-se a população do Rio Grande em cerca de dois mil habitantes, entre os quais há muitos europeus e apenas um pequeno número de mulatos.”
No mapa urbano de 1829 a área da praça aparece descrita como um “terreno arenoso com combros e por isso incapaz de se povoar presentemente”.
O crescimento da cidade no século XIX tomou da Laguna dos Patos, através do aterramento, vastas áreas que formam o atual Porto Velho, daí surgindo à rua da Praia (atual Riachuelo); e também avançou rumo à rua Aquidaban e posteriormente até a Avenida Portugal, rompendo o limite de defesa usado até a Guerra do Paraguai, chamado de Trincheiras ou cidade extramuros; em 1855-6 o Cemitério Municipal foi construído afastado do centro urbano, mas em poucas décadas o parque industrial e urbano da Rheingantz e o surgimento do Bairro Cidade Nova (1890) foram integrando as paisagens da cidade antiga e da cidade nova. A expansão urbana foi incrementando a valorização daquele vasto terreno situado próximo do centro da Vila do Rio Grande de São Pedro (1751) localidade que desde 1835 passou a condição administrativa de cidade do Rio Grande.
Antes de consolidar-se como um espaço público, ocorreram várias disputas pela ocupação da área para fins particulares, religiosos e industriais. No jornal Diário do Rio Grande de 24 de dezembro de 1850 foi feita uma denúncia sobre a ocupação da área por “alguns cidadãos ilustres da cidade” que supostamente teriam recebido terrenos no local a partir da autorização da Câmara de Vereadores. Como o consumo da água potável ficaria comprometido com a ocupação da área investigou-se a legalidade da atuação e descobriu-se que a Câmara não havia autorizado oficialmente à distribuição de terrenos rechaçando desta forma as pretensões dos “ilustres” que já haviam cercado os seus terrenos.
Coube a Câmara Municipal participar do embate pela disputada ocupação daquele amplo terreno arenoso e alagadiço. A definição deste espaço como público e não privado definiu-se a partir de debates e requerimentos negados ou aprovados. É o caso do pedido em 1882, de um terreno para construção de uma Igreja Matriz, cuja oficialização de posse foi reiterada através de um requerimento de uma comissão de cidadãos interessados neste anseio e liderados pelo Barão de São José do Norte. Este pedido recuava a 1849, quando já se pretendia construir uma nova igreja neste espaço. A pressão de políticos em 1887 para que fosse efetivada a construção de um novo templo serviu para ações no sentido de definição da área como um logradouro público, pois a Câmara indeferiu o pedido e iniciou o aterramento e ajardinamento de uma parte do terreno. Em 1891, um novo pedido de construção de uma capela foi indeferido pelos vereadores.
Em documento resgatado por Antenor Monteiro uma nova tentativa, agora voltada à ação industrial, foi desfechada em 1893. É um ofício encaminhado pelo coronel Augusto Álvaro de Carvalho, intendente municipal, à Câmara de Vereadores: “Cidadãos Conselheiros Municipais: o cidadão Giovanne Heusemberger, na qualidade de representante da Companhia Giovanne Heusemberger & Cia. Requerem a esta Intendência por aforamento perpétuo uma parte ou duas quadras da praça Tamandaré, limitadas pelas ruas General Neto, 24 de Maio e Conde de Porto Alegre, para estabelecer uma fábrica de tecidos, oferecendo a quantidade de 5.000$000 para melhoramentos materiais. Não obstante ser da minha competência a resolução do assunto importante de que se trata, conforme dispõe a lei orgânica do município, ainda assim deliberei submetê-lo à vossa consideração. Tenho, pois a honra de convocar-vos de conformidade com as atribuições que me são conferidas pelo nº 6 do artigo 24 da referida lei orgânica, para uma seção extraordinária, amanhã às 2 horas da tarde”.
A concessão foi aprovada pela Câmara com o voto contrário de um vereador, Carlos Rheingantz, pois a empresa Giovanne Heusemberger era uma concorrente no ramo da indústria têxtil que se chamou Ítalo-brasileira. Felizmente, a praça foi preservada, pois o proprietário da indústria resolveu instalar-se no que é atualmente um supermercado (Rua Senador Corrêa). Também a indústria de charutos Poock & Cia tentou ampliar as suas instalações estabelecendo-se na praça, porém seu pedido foi negado pelo conselho municipal.
Apesar de todas as investidas este espaço público foi preservado até os nossos dias, apesar de abandonos e intervenções (terminal rodoviário) que desfiguraram sua funcionalidade histórica.


Cartão-postal da Praça Tamandaré aproximadamente 1904. Acervo: Walter Albrecht.

Praça Tamandaré e o Lago dos Encantos por volta de 1930. Acervo: Leonardo Barbosa. 

quarta-feira, 20 de junho de 2018

O ESPECULADOR


A imprensa da cidade do Rio Grande tem uma longevidade que recua ao ano de 1832. Dezenas de periódicos são fontes para o estudo da história local, regional e nacional. Processos políticos, econômicos, sociais, culturais, literários, artísticos etc são desveláveis com o olhar crítico para estes periódicos. Em relação a outros jornais de existência efêmera, restou apenas a referência em outras publicações sobre a sua circulação em algum momento do passado.
Um destes jornais “quase esquecidos” é “O Especulador” que circulou em Rio Grande no ano de 1868. O exemplar solitário está na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro com data de 6 de julho de 1868. A qualidade de impressão é precária (dificultando a visualização) mas o achado merece ser divulgado nesta coluna. O exemplar é o número 10 perdurando até número desconhecido. O jornal é um periódico literário, noticioso e comercial. O momento histórico não é dos mais positivos para a sobrevivência, pois, a Guerra do Paraguai já está em seu terceiro ano e perduraria até 1870, provocando uma crise econômica e uma redução das atividades portuárias. A economia da cidade do Rio Grande era dinamizada pelo Porto e seu comércio de exportação e importação. A sobrevivência da imprensa, através das assinaturas e anúncios, ficava comprometida com a queda na circulação marítima.
Através do Especulador é possível trazer um pouco do cotidiano de 150 anos atrás da cidade cercada pelas trincheiras de defesa e com circulação de navios de guerra que levavam homens para o front de combate no território paraguaio. Num breve apanhado o jornal enfatizava que: a mendicidade era cada vez maior na cidade e estava sendo explorada por “sanguessugas” que viraram profissionais; fazia referência à chegada e saída de vapores para o Rio de Janeiro e para Porto Alegre, ou seja, o olhar histórico voltado ao Oceano Atlântico e a Lagoa dos Patos; trazia notícias sobre as atividades teatrais no Sete de Setembro e publicava romances no formato de folhetins- autores internacionais e nacionais que eram publicados em capítulos e que era uma forma de vender os jornais na expectativa de continuar a leitura no próximo número; fazia referência à grave crise econômica no Porto de Montevidéu em decorrência da Guerra; fortes chuvas que alagavam as ruas e dificultavam o deslocamento; avisos marítimos; leilões de produtos importados; denúncia de falcatruas e contrabando de charque etc.
Os olhares dos habitantes (comerciantes, estivadores, escravos, trabalhadores em geral) estão voltados à movimentação portuária e aos campos de combate no Paraguai, os maiores combates terrestres da história da América do Sul estavam ocorrendo ao longo deste ano.  

Acervo: O Especulador, 06-07-1868. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.













terça-feira, 19 de junho de 2018

O BARÃO DE ITARARÉ


        
    Aparício Fernando Brinkeroff Torely, o Barão de Itararé, nasceu no Rio Grande do Sul a 29 de janeiro de 1895. Em seu título de eleitor consta apenas o estado e não a cidade em que nasceu. Conforme Décio Vignoli das Neves (Vultos do Rio Grande, vol. 2), a confusão sobre o seu nascimento foi ainda mais ressaltada por Torely ou (Aporely como ele se denominava) ao longo de sua vida: “Falamos de dispersão e desordenamento e, para justificá-lo, basta citarmos que, ao tentar colhermos dados do local do seu nascimento, fomos captar três versões ditas por Aporely, em diferentes oportunidades. Optamos pela declaração que fizera à Manchete, isso por estarem de acordo com os dados que constam em seu título de eleitor, que apenas diz ter nascido no RS, sem citar nenhuma cidade ou local de nascimento. Pela ordem natural das coisas, no entanto, era para ter nascido na cidade do Rio Grande, porque era aqui que moravam seus pais e aqui é que fora gerado, tendo normal desenvolvimento no ventre materno, até a aproximação final da gestação. Circunstância óbvia, porém, fez com que Aporely nascesse fora do pago papareia. É que sua mãe, d. Maria Amélia, que era natural de Pueblo Vergara, Uruguai, ao ver aproximar-se a data do parto, pediu ao marido para ir ter seu filho no mesmo local em que ela nascera e onde residiam seus progenitores: o ianque Johnn Brinkeroff e a sua esposa Francisca, ambos “fuertes hacienderos de ganadaria nel citado pueblo...”. Para lá seguiu, pois dona Amélia, em diligência que fazia o percurso entre Pelotas e Jaguarão. Já próximo a esta cidade uma das rodas da carruagem partiu-se “...e foi aí que eu resolvi nascer, disse Aporely ao repórter da Manchete, para ver o que tinha acontecido. E o que foi que o Barão viu”, perguntou o repórter. “O que eu vi? Vi muito sol e muitas cigarras nos campos da fronteira do RS”. Por esse motivo que Rio Grande deixou de ser a terra natal do maior humorista brasileiro de todos os tempos. Mas se aqui não nasceu, foi aqui pelo menos que mais tarde veio a ser batizado e iniciou seus estudos escolares. O registro está na página 9 do Livro 42, de Batismo da Matriz de S. Pedro com o seguinte teor: “Aos vinte e três dias do mês de setembro de mil oitocentos e noventa e seis, nesta Matriz de São Pedro do Rio Grande, o Ver. Coadjutor Pe. Carlos Becker batizou com os Santos Óleos a APARICIO, nascido a vinte e nove de janeiro de mil oitocentos e noventa e cinco, filho legítimo de João da Silva Torely e de Maria Amélia Brinkeroff, sendo avós paternos Fermino Maria Torely e Regina da Silva Torely, e avós maternos João Brinkeroff e Francisca Brinkeroff. Foram padrinhos o dr. Fermino da Silva Torely e sua irmã Albertina Torely, esta representada por Joaquina Lopes Alves. Para constar mandei lavrar este termo, que assino dia e era ut supra, Vigário Pe. Octaviano Pereira de Albuquerque”.
Torely, em entrevista ao Correio do Povo, deu mais informações sobre sua infância: “Sou filho único do 1º casamento do meu pai. Minha mãe veio a morrer quando eu nem sequer tinha 2 anos. Então o meu pai, que não podia cuidar de mim, mandou-me para o Uruguai tendo passado a viver sob o carinho das minhas tias castelhanas. Aí comecei a falar o espanhol, e hoje vejo terem sido aqueles os melhores anos da minha vida. Passei depois a ler revistas ianques, que meu avô recebia e gostava de me ensinar a lê-las. Meus primeiros amigos foram o cachorro Talismã e um petiço zaino que o meu avô me dera. O cachorro só faltava falar e entendia o que eu dizia, sendo que o petiço estava sempre disposto para levar-me aonde eu quisesse”.
Conforme Neves, João Torely o pai do Barão, casara-se de novo e dessa união houve ao menos mais uma filha, que recebeu o nome Carolina. Num dos Livros de Óbitos do Cemitério Católico, consta o sepultamento de Carolina, falecida em 1923, sem deixar descendência. Por outro lado, o pai, ao tomar conhecimento do estudo do espanhol e do inglês que o seu filho fazia, mandou busca-lo no Uruguai, para iniciá-lo aqui no estudo do português, não se conformando que o filho só fosse estudar língua estrangeira. E foi aí que veio a terminar a vida despreocupada. Ao começar o ano letivo de 1902, ele foi aqui matriculado no Colégio Stela-Maris, dos Irmãos Jesuítas, que então funcionava no mesmo local onde se encontra hoje o Colégio São Francisco. Antes dos Jesuítas encerrarem suas atividades didáticas no Rio Grande, a 15 de abril de 1906, Torely foi transferido para o 2º ano do Ginásio N. Sra. Conceição, dessa mesma irmandade, em S. Leopoldo, agora, porém, como aluno interno. Por três anos alternados em 1907, 1909 e 1911, ele conseguiu tirar os primeiros lugares como aluno laureado. Foi em São Leopoldo que ele começou a destacar-se por seu fino humor. Em 1911, com 16 anos, deu início à carreira de jornalista como redator do pasquim Capim Seco, um semanário manuscrito, no qual satirizava as rígidas normas adotadas pelos jesuítas, inclusive o Padre Réus, que fora um dos seus primeiros professores no Stela-Maris, em Rio Grande.
Teve uma trajetória tumultuada, cursando a Faculdade de Química e Farmácia e depois o Curso de Medicina em Porto Alegre, tendo abandonado os estudos e retornado a atividade jornalística. Mostrando sua irreverência, numa prova de Química ele questionou o prof. Fischer que lhe lançava perguntas sobre o conteúdo: “Mas logo o senhor, que é formado e mestre em Química, vem perguntar isso pra mim?”. O resultado foi a reprovação.
Em 1919 foi para São Gabriel onde trabalhou no jornal A Reação, cidade em que casou e teve três filhos. Em 1922 trabalhou na redação do Diário do Comércio, de Bagé. Em 1925, foi para o Rio de Janeiro e ingressou no jornal O Globo, e no ano seguinte assumiu a direção dos jornais Última Hora e A Manhã.
Foi após a Revolução de 1930, em referência ao combate que não existiu em Itararé, que ele passou a ostentar o título de Barão de Itararé, aprofundando cada vez mais o seu humor e articulação desconcertante de frases. Em 1934 filiou-se ao Partido Comunista e foi eleito vereador pelo PC, que em 1935 foi colocado fora da lei. Foi preso mais de uma vez e inclusive surrado por policiais. Em certa oportunidade, integralistas o levaram para o Alto da Boa Vista, na Tijuca, e o espancaram com voracidade largando-o só de cuecas e cabeça raspada à navalha. Ficou alguns dias de cama, mas quando retornou a atividade do Jornal do Povo, mandou trocar a placa da porta de entrada de sua sala que dizia “Bata antes de entrar”, por outra: “Entre sem bater”. Era com bom humor que ele sobreviveu as visitas cada vez mais freqüentes da polícia getulista após a declaração do Estado Novo em novembro de 1937. Publicou, com interrupções, o jornal A Manhã entre 1926 e 1956 e também editou o famoso Almanaque do Barão de Itararé. Foi encontrado morto em seu apartamento, no Largo do Machado, Rio de Janeiro, em 27 de novembro de 1971. O laudo apontou arteriosclerose, com uremia e coma diabética.
Entre centenas de trocadilhos por ele elaborados, serão destacados alguns que mostram a rapidez de raciocínio e ironia do Barão de Itararé: “Televisão é uma maravilha da Ciência... a serviço da imbecilidade humana”; “Não há  ciências ocultas. O que há são cientistas que procuram ocultá-las”; “Há mulheres que amam um só homem. Um só de cada vez”; “Negociata é um bom negócio, para o qual nunca nos convidam”; “Os ricos são neurastênicos, os pobres é que são malcriados”; “O que se leva desta vida é a vida que a gente leva”. 







domingo, 17 de junho de 2018

O CEMITÉRIO DE VAMPIROS

          No vilarejo de Celakovice, 25 km de Praga (República Tcheca), um fazendeiro descobriu enterramentos ao escavar em suas terras. O ano era 1966 e a descoberta se ampliou nos anos seguinte totalizando 14 esqueletos masculinos cujas sepulturas recuavam aos séculos X a XI. Parte dos esqueletos estavam com o crânio decepado do corpo e as mãos e pés amarrados por cintas de couro, fivelas de ferro. Todos estavam enterrados de bruços (não encontrar o caminho de volta para o mundo dos vivos). Os indícios de ritual anti-vampiro tornou o vilarejo famoso por ser considerado um "cemitério de vampiros". Estudos posteriores, trazendo nova hipótese, indicam que o cemitério era destinado a párias, ou seja, excluídos sociais. Porém, a forma de enterramento remete a muitos outros já encontrados na Europa Central associado aos vampiros. 
        O brasileiro Cícero Moraes, em 2016, realizou a reconstrução facial de um crânio de um dos vampiros de Celakovice. O resultado remeteu a um homem europeu, com cerca de 30-40 anos e com a aparência reproduzida na imagem construída por Moraes. 
           A divulgação internacional da reconstrução da aparência levou a ampliar a discussão sobre os enterramentos vampíricos e a persistência temporal destas práticas. Também na República Tcheca, ou esqueleto apresentava sinais desta ritualização vampírica: o detalhe é que o achado tem 4.000 anos! 


Esqueleto encontrado em Celakovice.


Reconstrução facial por Cícero Moraes.


Jornal Inglês The Sun.

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Revista Tcheca Koktjl.




sábado, 16 de junho de 2018

VAMPIROS


     O escritor francês barão Étienne Léon de Lamothe-Langon, publicou em 1825 um romance chamado A Vampira, ou a Virgem da Hungria. No prólogo ao romance, ele utiliza fontes documentais e tratados sobre vampirismo que proliferaram a partir do século XVIII. Interessante é a reflexão feita pelo autor que direciona a existência de vampiros não como seres sobrenaturais e sim como pessoas concretas. Análise elaborada há quase dois séculos e direcionada ao difícil convívio na sociedade francesa que estava sendo reconstruída após a queda de Napoleão Bonaparte, o texto abaixo apresenta uma relativa contemporaneidade com o tempo presente.

“E porque não acreditaremos nós também na existência dos vampiros? Porventura não foram eles acreditados por tantos personagens distintos? D. Calmet, por exemplo, não se comprazia em comprovar a sua existência?... É verdade que Voltaire o escarneceu; e nós, costumados a imitar as macaquices dos estrangeiros, adotamos cegamente a opinião deste famoso escritor! Rimo-nos dos vampiros; e o mesmo lord Byron não pôde mudar a nossa opinião a este respeito!... Pois bem, caro leitor, não receamos dizê-lo, o autor de Mérope não tinha razão; o frade beneditino havia aprofundado mais esta matéria; nós nos lisonjeamos de assim o provar, chamando unicamente a vossa atenção para o que na época atual se passa entre nós.
Não são porventura vampiros puritanos, insaciáveis do nosso sangue, esses famosos conquistadores, ruína das nações, flagelo da humanidade? Não deparamos a cada passo com homens ávidos de nossas fadigas e suor, que ainda acham muito ligeiro o peso enorme com que nos esmagam?
Julgais vós, que esses miseráveis, que correm pelas vilas e aldeias, vexando os desgraçados habitantes, com suas injustiças e maus tratos, não sejam verdadeiros vampiros? E aquele que se acha colocado em lugar eminente, e que deparando no meio da sua carreira com a virtude oprimida, com a inocência abandonada, as esmaga debaixo de seus corcéis, as sufoca com o peso do ouro que o adorna, não será também um vampiro... um infame?...
Julgais acaso, que o banqueiro, que alimenta uma casa de jogo, onde se absorvem tantas fortunas, onde se perdem tão meritórias reputações, não figura na lista dos principais vampiros?
No centro das mais opulentas capitais, nos lugares mais obscuros, quer de noite, quer de dia, não encontramos nós muitos vampiros que, cobertos com a máscara sedutora da hipocrisia, ocultam um coração perverso, palpitante dos vícios e das inclinações mais abjetas?... Serão estes outra coisa mais do que vampiros, verdadeira escória da sociedade?
Finalmente por toda a parte não vemos mais do que vampiros.  O seu maior número avulta entre os fornecedores, e os grandes empresários; entre os agentes da justiça, entre os agiotas, e até mesmo entre os facultativos!...”. 
Fazendo uma atualização, podemos ampliar o leque e dizer que os vampiros podem estar extremamente difundidos numa sociedade: no coitadismo; no cinismo e na mentira sistemática; nos exploradores de amplo matiz; e, não poderia faltar, na ação percuciente dos psicopatas e sociopatas que se enraízam no meio social e sugam a sua energia vital. O vampirismo histórico está muito mais vivo do que podemos imaginar.
Acervo: Biblioteca Nacional da França. 

  





quarta-feira, 13 de junho de 2018

ERA UMA VEZ NO OESTE


Em 1968, foi lançado um filme que se tornaria um dos maiores clássicos do western. Cinqüenta anos depois, assistir “Era uma Vez no Oeste” continua impactante! A música de Ennio Moricone com sua sonoridade neo-romântica transporta a percepção para algum lugar onde o tempo parou e os personagens se tornam atemporais. Expressões faciais, sol escaldante, transpiração, sons da natureza, brilho do metal dos revólveres, movimentos rápidos que significam manter a vida ou encontrar a morte. Uma tensão implícita no silêncio ou no leve som do vento transportando à areia confronta a antiga barbárie com a nova barbárie que chega pelos caminhos de ferro. O catavento na estação de trem é como um relógio que lenta e preguiçosamente se movimenta ao gosto do ar em movimento.
Duzentos mil anos de caminhada do homo sapiens ficam congelados esperando o próximo saque das armas: é latente a tensão da fronteira tênue entre a barbárie e a sobrevivência no confronto. Filme visceralmente poético, nas poucas palavras, nas muitas imagens e na sonoridade angustiante de Ennio Moricone, especialmente, na música Once Upon a Time in the West (ouvir interpretação de 2012 de Patricia Janeckova).  
A beleza da fealdade poucas vezes foi expressa com uma assinatura de obra-prima como neste filme de Sergio Leone, o mestre do spaghetti  western.  Contribuíram para compor a história os cineastas Dario Argento e Bernardo Bertolucci
O filme, um longa metragem, busca captar um momento de transição entre o tradicional e o moderno: a modernidade das ferrovias e do avanço do capitalismo começa a dissolver o mundo mítico do velho oeste. Retrata, em parte, a morte da sociedade americana do estilo desbravador e a racionalização da violência primitiva direcionada para a violência instrumental do sistema.  
O enredo apresenta narrativas que confluem para compor a obra: o conflito resultante da chegada dos trens, a presença de assassinos de aluguel, disputa por terras, vinganças pessoais ou familiares. A interpretação de Claudia Cardinale, Henry Fonda, Jason Robards e Charles Bronson são marcantes na expressão facial e gestual.
A estética criada por Leone transita entre as paisagens desconcertantes do vazio e da aridez com os closes demorados na representação dos personagens que tornam o tempo quase imóvel. Os sons da natureza, da civilização, do arcaico e do moderno se fundem neste filme repleto de cenas antológicas, personagens marcantes e inspiração artística que se projeta perene nestes últimos 50 anos.

Ilustrações: material de divulgação do filme “Era uma Vez no Oeste” (“C’era una Volta il West”, EUA/Itália/Espanha – 1968, versão italiana de 165 minutos. Produtoras: Rafran Cinematrografia; Finanzia San Marco; Paramount Pictures.


Henry Fonda e Charles Bronson.

Claudia Cardinale. 

Claudia Cardinale. 

Jason Robards.

Pistoleiros em ação e o menino. 

Chegada da modernidade.

A imagem tradicional dos westers: Monument Valley Najavo Tribal Park, Arizona -Utah.

Ao centro o diretor Sérgio Leone. 

Charles Bronson (acima) e Henry Fonda. O uso das expressões faciais caracteriza Leone. 


segunda-feira, 11 de junho de 2018

ESPIONAGEM NAZISTA EM RIO GRANDE

Rio Grande não ficou alheia aos movimentos dramáticos relacionados à Segunda Guerra Mundial e a infiltração nazista. Um acontecimento ocorrido na cidade em novembro de 1939 envolveu personagens ligados a uma guerra de bastidores no Rio Grande do Sul: atuação de agentes nazistas e a repressão da polícia política ligada ao DOPS. O chefe de polícia Aurélio da Silva Py em dois livros (A 5ª Coluna no Brasil: a conspiração nazi no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1942; e O Nazismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: sem data e sem local) relatou longamente este episódio.
Há quase setenta anos atrás, a espionagem e a contra-espionagem eram o cotidiano da sociedade brasileira, cujo governo de Getúlio Vargas seguindo a orientação norte-americana, declarara neutralidade frente a uma guerra que tomava conta dos bastidores e que estava no dia-a-dia dos rádios, jornais e conversas desde sua eclosão em setembro de 1939. A presença do porto torna Rio Grande um ponto estratégico exigindo inclusive exercícios de blecaute contra bombardeio aéreo e movimento de tropas.
A Batalha do Rio da Prata, com a participação e afundamento do encouraçado de bolso alemão Graf Spee (navio corsário que tinha a missão de afundar navios mercantes ingleses que navegavam no Atlântico), ocorreu entre 13 e 17 de dezembro de 1939. A instalação de um rádio transmissor num navio alemão ancorado no Porto do Rio Grande, o qual poderia ser utilizado para a comunicação com navios corsários e transmitir informações militares e de conjuntura política brasileira e platina, evidenciava para os policiais que investigavam esta ocorrência, uma possível rede de relações envolvendo empresas alemãs e brasileiras na espionagem a favor da Alemanha hitlerista.

UMA EMISSORA CLANDESTINA


O inspetor Domingos Machado (Seção de Ordem Política – Sub-secção da Polícia Marítima e Aérea) conforme citado em relatório do Delegado Plínio Brasil Milano (Delegacia de Ordem Política e Social – DOPS) datado de 17 de novembro de 1939, comunicou a existência de dois volumes suspeitos que chegaram com um avião da empresa alemã Condor. O inspetor concluiu que se tratava de dois aparelhos de rádio-transmissão que se destinavam a cidade do Rio Grande. A chegada deste material coincidiu com a passagem por Porto Alegre rumo a Rio Grande, do rádio-telegrafista, Werner Mucks, um técnico do Sindicato Condor. As atividades deste técnico passaram a ser observadas pelo DOPS: “acontece que nada foi observado naquela cidade além da estadia de Mucks, na cidade de Rio Grande e de verificar a atividade que por ventura aí desenvolvesse. Em face desta situação de incerteza, esta delegacia aproveitou a passagem de regresso do mencionado técnico para detê-lo e interrogá-lo”.
Teve início uma novela policial e de espionagem nazista envolvendo o Porto do Rio Grande!
No interrogatório, Werner Mucks declarou que no dia nove de novembro Von Studniz, chefe de trânsito da Condor (Rio de Janeiro) deu-lhe ordens de embarcar para Porto Alegre e apresentar-se ao Consul alemão Frederico Ried. Este, com forte suspeita de centralizar atividades nazistas, apresentou-lhe o sr. Wiltgens, agente da Companhia Hamburguesa em Rio Grande. “Por ordem do Consul, Mucks deveria ficar à disposição do sr. Wiltgens, em Rio Grande, para onde seguiria pela Varig, que já tinha instruções a respeito da passagem. Até aqui o técnico continuava ignorando a sua verdadeira missão”, informa o relatório policial.
Ao chegar ao porto, o agente da Cia. Hamburguesa levou o técnico para bordo do cargueiro alemão ancorado naquele porto por motivo da guerra. Aí foi apresentado a um oficial de bordo que, mostrando-lhe uma emissora de rádio-telegrafia, disse-lhe que deveria providenciar na instalação e conseqüente funcionamento da mesma. Por motivos técnicos, não foi possível instalar a estação, retornando Mucks para Porto Alegre onde foi detido e interrogado. Após a detenção deste, a Delegacia de Porto Alegre solicitou a Rio Grande a apreensão do aparelho por intermédio da Capitania do Porto e a prisão do agente da Cia. Hamburguesa. Foi realizada uma busca no navio quando nada foi encontrado. Por instruções do DOPS, foram levados a efeito mais uma busca a bordo, a contragosto da tripulação, e desta vez o aparelho apareceu. Os dois volumes correspondiam a um rádio-receptor e o seu responsável “eclipsou-se”. O comandante e os oficiais de bordo declararam desconhecer a existência do rádio. O sr. Wiltgens afirmou sua inocência no caso. O rádio-telegrafista disse que o aparelho “era propriedade particular e se encontrava para experiência quanto a sua prestabilidade”.
Entre as conclusões oficiais tiradas pelo Delegado Plínio Brasil Milano com base nas diligências da Delegacia de Polícia de Rio Grande e da Capitania do Porto estava a “conivência do Sindicato Condor e da Viação Aérea Rio-Grandense nesse ato ilícito”. Trata-se de uma empresa (Varig) subvencionada pelo Governo da República e de outra constituída de capitais nacionais, gozando de favores dos poderes públicos e dirigida por um estrangeiro naturalizado”.
Para o delegado Plínio Brasil Milano, “estamos frente a uma manobra de uma potência beligerante, francamente comprovada pela ingerência de seus representantes oficiais, em flagrante desrespeito as nossas leis. Pois outra causa não pode ser esta série de atos praticados no sentido de montar clandestinamente uma emissora de rádio-telegrafia, forçosamente destinada ao serviço de informações, que o vapor em apreço estava impossibilitado de realizar pela interdição da estação própria, de acordo com as regras de neutralidade do nosso país.
Em nossa opinião, são responsáveis por ela os srs. Von Studnitz, chefe do Trânsito do Sindicato Condor; o diretor da Varig, Otto Ernest Meyer; o Consul Alemão de Porto Alegre, sr. Frederico Ried; o agente da Cia. Hamburguesa, sr. Wiltgens; o Vice-Consul alemão na cidade de Rio Grande e o Comandante do vapor Rio Grande”.

        Conforme Aurélio da Silva Py, “ficou amplamente provado, no decorrer das diligências da polícia, que esse aparelho serviria para informar os navios de guerra de superfície (corsários) e os submarinos alemães em ação na costa sul do Brasil, sobre a existência de navios inimigos, seus movimentos dentro e fora dos portos, etc. Um desses corsários, o couraçado de bolso Graf Spee, se tornou famoso pelo desfecho de seu cruzeiro em águas do sul, episódio que também conduziu à descoberta, pela polícia uruguaia, de uma estação clandestina de radiotransmissão que auxiliara as unidades alemãs encarregadas da guerra de corso. Essa espionagem de guerra frustrou-se também graças à rápida e decisiva intervenção das autoridades encarregadas de salvaguardar a neutralidade do Brasil”, conclui o relatório. 




Material nazista apreendido pela Polícia do Rio Grande do Sul. Observa-se aparelho de rádio transmissão. Acervo: Aurélio da Silva Py no livro A 5 Coluna no Brasil.