Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quinta-feira, 31 de maio de 2018

O CAMINHO DA PRAIA

     Com a ocupação portuguesa na então chamada Colônia do Sacramento em 1680 (atual “Colônia” no Uruguai), o trânsito de tropeiros passou a ser realizado (conforme as conjunturas políticas na Colônia do Sacramento) com o objetivo de transportar o gado da Vacaria Del Mar. Este Caminho da Praia cruzava a Planície Costeira platina e brasileira, ligando a Colônia do Sacramento do Rio da Prata, o litoral do Rio Grande do Sul, Laguna (em Santa Catarina) e dali tomava o rumo do planalto para Sorocaba e finalmente chegando a região mineradora em Minas Gerais.
Populações indígenas, nos últimos quatro ou cinco mil anos, possivelmente, conhecerem estes caminhos desenhados pelas ondas que chegavam as praias com diferente intensidade conforme as estações do ano. Os primeiros registros documentais do trânsito pelo litoral remetem à documentação luso-brasileira e espanhola das últimas décadas do século XVII e dos primórdios do século XVIII. Um caminho pisado pelo gado, redesenhado pelas ondas e seguia a intuição dos tropeiros em escolher a linha de praia mais firme para a passagem dos muares.
Um recorte deste Caminho da Praia é o trecho entre os Molhes da Barra (Molhe Oeste) até o Arroio Taim (ponto geográfico extremo do Brasil ao Sul). A distância de 220 km entre a Barra do Rio Grande e o Arroio Chuí foi marcado pelo silêncio da civilização e os sons da natureza, no espaço praial ainda mais solitário de todo o Brasil. Nesta área se localizam a Praia do Cassino, a Praia do Hermenegildo e a Barra do Chuí. A maioria dos moradores da cidade do Rio Grande desconhecem o espaço praial que segue além do navio Altair, o famoso naufrágio do ano de 1976.
Para conhecer um pouco do espaço praial mais rarefeito de ocupação humana do Brasil vou reproduzir algumas passagens do pesquisador Péricles Azambuja publicadas em seu livro História das Terras e Mares do Chuí. O autor traz informações sobre como percorrer com automóvel este Caminho da Praia e aponta que o centenário do início da circulação da área por automóveis vai ocorrer em 2019.

“As marés constantes, o frígido sul, o repuxão das correntes marítimas, a força do pampeiro, constroem, após o preamar, uma sólida pista capaz de permitir, numa média aceitável, um trânsito regular e, às vezes, bastante rápido a invejar modernas rodovias, mas nunca sem os perigos e surpresas dos repentinos avanços do mar, que tornam os colchões arenosos uma ameaça até ao mais experimentado motorista”.
“As primeiras viagens em automóveis particulares datam de 1919. Motoristas de táxi – ou chauffers de praça, como se chamavam – teriam sido os primeiros a percorrer, nesse ano, a orla oceânica. Mas foi em 1925 que surgiu a oportunidade para o surgimento de uma linha regular. Afundara, mais uma vez na costa, um navio italiano que conduzia azeite e mármore de Carrara para Buenos Aires. José Benito de los Santos, taxista uruguaio natural de Rocha, foi contratado pela Exatoria Federal para transportar o azeite até Santa Vitória, utilizando-se de um pequeno caminhão. O êxito da viagem estimulou-o a inaugurar um serviço efetivo, embora não rigorosamente preciso: prometeu, e programou-se para circular uma vez por semana, porém no dia em que as condições da praia permitissem. Em 1932, um hidroavião da Air France chocou-se, em meio a uma tempestade noturna, com os mastros do Príncipe de Gales – o famoso navio britânico. Durante o acidente, a aeronave jogou, sobre a costa do Albardão, uma mala postal, que José Benito fez chegar, imediatamente, ao correio de Rio Grande. Foi nomeado, depois disso, agente dos Correios e Telégrafos. José Benito de los Santos foi aperfeiçoando, como os anos, a sua frota de veículos. Sua firma –denominada Empresa Atlântica – manteve-se por longo tempo. Alienada a novos proprietários, lá pelo fim da década de 1940, dedicou-se em seguida a percorrer uma outra trajetória: o caminho de terra batida, mais para o interior, que os antigos denominavam, sugestivamente, de Estrada do Inferno e que, asfaltado e inaugurado em 1969, tomaria a denominação, fria e impessoal, de BR-471. Ainda nessa ocasião, muitos veranistas que do Cassino se dirigiam a Punta del Este, por exemplo, preferiam admirar e enfrentar as belezas e as surpresas da praia – a arrebentação das ondas, as gaivotas, as estrelas do mar, os colchões de areia, as virações, os ventos, as cerrações espessas. E se o carro atolasse? Era preciso ser rápido, o mar estava ali, de prontidão, para tragá-lo em minutos”.

Caminho da Praia - pontilhado que parte da Colônia do Sacramento e chega a Laguna.  Acervo: livro História do Rio Grande do Sul. Arthur Ferreira Filho, 1958.

Mapa do militar português Roscio (1774-1775). Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O litoral Sul do Rio Grande do Sul está identificado nesta mapa corográfico realizado durante a ocupação espanhola na Vila do Rio Grande. 



quarta-feira, 30 de maio de 2018

ANEDOCTAS

A recente Revolução Federalista (1893-1895) ainda mantinha um braseiro intenso na vida cotidiana do Rio Grande do Sul no ano de 1898: quase três décadas não foram suficientes para pacificar o Estado do RS, pois, em 1923 eclodiu uma nova revolução em que Chimangos e Maragatos voltaram a se enfrentar.
Literalmente, o clima não era para piadas, mas, alguns jornais e quase sempre os Almanaques, tinham uma coluna voltada as “anedoctas”. A imprensa caricata em Rio Grande, já tinha uma trajetória consistente de humor político, ácido ou frugal: o riso era uma forma de ataques políticos e denúncias (como exemplo, o jornal O Bisturi). Fique claro que a recepção do humor será diferenciada conforme as percepções de cada época ou grupos sociais. O politicamente correto muitas vezes passa longe das preocupações. Mas um exemplo de “anedoctas” está no “Almanak Enciclopédico Sul-Rio-Grandense” para 1898, editado em Porto Alegre. Duas páginas estão reproduzidas: será que 120 anos depois de sua publicação estas piadas ainda fazem rir?


Ilustrações: Almanak Enciclopédico Sul-Rio-Grandense. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.










    

O SONHO DE BRIGIT

        A oceanógrafa Bruna de Ramos cursou a disciplina “Processos Históricos na Zona Costeira” que leciono no Programa de Pós-Graduação em Gerenciamento Costeiro (PPGC-FURG). Bruna me enviou para leitura uma “crônica com temática ambiental” que diz respeito à Lagoa dos Patos e a Praia do Cassino. A temática enfatizada pela mestranda tem sido reposta com preocupação crescente pelos órgãos ambientais do planeta: a poluição das águas dos oceanos, dos estuários, dos rios...
Às pesquisas oceanográficas tem evidenciado que até os pontos mais profundos dos oceanos estão apresentando índices preocupantes de poluição. Alguns danos são mais visíveis: o grande número de tartarugas marinhas que morrem pela ingestão de plásticos e outros detritos industriais é apenas um exemplo entre tantos outros. A estimativa é de que entre quatro e doze milhões de toneladas de plásticos são lançados anualmente nos oceanos!
A crônica “O Sonho de Brigit” escrita por Bruna de Ramos é criativa, sensível e contribui para refletirmos sob a identidade estuarina e costeira que formou a cidade do Rio Grande. Pode nos ajudar a pensar, com o recurso na literatura fantástica e com “verossímeis criaturas marinhas”, as nossas ações poluidoras num ecossistema frágil e repleto de formas de vida.      


O SONHO DE BRIGIT
“Brigit é bonita, forte, destemida e com pelos bem curtinhos, ela se parece com uma lontra, porém de 3.7 metros de comprimento. Por detrás de sua fofura esconde-se um monstro marinho, temido por todos que já a viram e pelos que não a viram também.
Ela é solitária e pouco conhece sobre sua família, entretanto tem alguns amigos que fez na época em que viajar pelo mundo ainda era seguro e os humanos ainda respeitavam criaturas como ela.
Brigit vive na Lagoa dos Patos no sul do Brasil, o que faz com que visitas aos seus amigos como o Monstro do Lago Ness, o Kraken, lula gigante que vive na Islândia ou Moby Dick precisassem ser muito bem planejadas, já que são longas e exaustivas. Além disso, nos últimos anos as aves mensageiras não estão mais cumprindo seu papel, muitas delas morrem por ingestão de fragmentos de plástico coloridos.
Brigit particularmente as achava burras, onde já se viu comer plástico. Porém uma gaivota anciã explicou para Brigit que o plástico quando fica mais ou menos um mês no oceano, libera um composto que tem o mesmo cheiro de fitoplâncton, a comida favorita das aves mensageiras. Assim, as aves famintas ficam confusas e acabam se alimentando de plástico, sentem-se saciadas, porém, sem alimento de verdade na barriga, acabam por fim fracas e não conseguem entregar as mensagens entre os amigos monstros.
A situação de Brigit vem piorando século após século. Ainda vive na Lagoa dos Patos porque é muito discreta, sai para se alimentar a noite e em dias intercalados, em zonas diferentes da lagoa. Ela adora ir até a praia do Cassino pela noite já que é bem deserta. Lá a escuridão e as dunas criam um ambiente ancestral que dá paz à Brigit. Porém, sempre que sai para seus passeios carrega muito medo no imenso corpo.
Quase ninguém na cidade de Rio Grande acredita que ela possa viver tão pertinho. Brigit sabe o perigo que corre, tem medo do desconhecido. E seu medo é compreensível, no século XIX, Carlos, a serpente marinha, que era muito amigo de Brigit, foi capturado por uns tais humanos e pelo que as pombas contaram ele foi exposto no mercado público da cidade, uma coisa realmente horrorosa.
Brigit é daqueles seres vivos que não morrem, exceto por duas coisas: Tristeza extrema ou ser tocada por seres egoístas e maldosos, com 07 toques ela não resistiria. Como ela bem sabe os humanos em sua maioria são egoístas e maldosos. Porém esse não é o maior problema. Brigit tem andado muito triste ultimamente, ela vê e vivencia situações muito desconfortáveis semana após semana.
No último verão ela presenciou uma série de caranguejos e peixes desesperados presos em redes fantasmas, algumas tartarugas morrendo asfixiadas com sacolas plásticas e um pinguim com um anel plástico envolta do pescoço nadando com dificuldades. Ela mesma, ano passado sofreu uma intoxicação alimentar terrível, fazia muito tempo que isso não ocorria. E dessa vez foi feio, a praia ficou cheia do que os humanos acharam que era lama. Brigit acredita que a causa dessa vez não foi a comilança exagerado e sim porque acabou ingerindo sem querer umas tantas bitucas de cigarro.
Brigit anda cabisbaixa, pensa em algum lugar para se mudar, mas as poucas mensagens que chegam pelas aves não são animadoras. Entretanto ela procura se manter otimista, as pombas da cidade contam que nem tudo está perdido, que tem gente do bem e as coisas irão melhorar. Algumas tartarugas também a animam contando de projetos que as protegem e de gente muito legal querendo acabar com o lixo marinho, afinal ninguém merece lixo em casa, Brigit não suporta mais lixo na casa dela. Agarrando-se as notícias boas Brigit sonha com o dia em que ela e todas as criaturas marinhas poderão nadar com tranqüilidade novamente”. 





IMIGRANTES

Comércio com a Alemanha. Interior do prédio da Alfândega da cidade do Rio Grande. 

Uma coletânea de artigos escritos para o jornal Gazeta do Sul de Santa Cruz do Sul por Hardy Elmiro Martin foram publicados no livro Recortes do Passado de Santa Cruz (Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1999). Martin traduziu parte de uma carta escrita em dezembro de 1852 por Rudolf Gressler a seus familiares residentes em Stadtilm, atual Alemanha. O imigrante Gressler relatou alguns acontecimentos de sua viagem de veleiro cruzando o Oceano Atlântico com destino a Colônia de Santa Cruz, no ano de 1852.
Desde 1824, imigrantes oriundos da atual Alemanha começaram a chegar ao Rio Grande do Sul, estabelecendo-se na região dos vales dos rios, num movimento colonizatório de ocupação de espaços produtivos para a agricultura familiar que teve continuidade na serra gaúcha, a partir de 1875, com os colonos italianos. Em 19 de dezembro de 1849 a primeira leva, composta de 12 imigrantes, chegou a Picada Velha, na colônia de Santa Cruz. Foram trazidos ao Rio de Janeiro pela embarcação prussiana Bessel, ali chegando em 15 de setembro daquele 1849. Foram embarcados para a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul chegando via marítima a cidade do Rio Grande. Desta localidade seguiram pela Lagoa dos Patos até Porto Alegre, após, pelo Rio Jacuí prosseguiram até Rio Pardo. Desta Vila, em carretas, seguiram até a Colônia de Santa Cruz. Em Rio Pardo os imigrantes recebiam ferramentas, utensílios e alimentação para os primeiros tempos.
 Levas posteriores, como a do imigrante que será relato a seguir, tiveram uma trajetória semelhante nesta epopéia dos imigrantes: a saída da Europa pelo Mar do Norte; a viagem pelo Atlântico; a chegada ao litoral brasileiro (no caso do navio de Gressler, diretamente a Rio Grande); a navegação pela Lagoa dos Patos e pelo Rio Jacuí; o percurso terrestre entre Rio Pardo e Santa Cruz; a descoberta da opulência e miséria da nova terra.

A VIAGEM MARÍTIMA
Solidão, suicídio, racionamento de comida e água, perigo de naufrágio, tempestades, medo do desconhecido, um novo e assustador mundo pouco a pouco surgia enquanto as misérias vividas na Europa ainda atormentavam os emigrantes. O apreensivo cotidiano dos navios que traziam os colonizadores do século XIX pode ser parcialmente sentido nesta correspondência de Gressler, a bordo do veleiro Marianne:
         “O perigo de colidir com outra embarcação [ao navegar pelo Canal da Mancha] era muito grande e por esta razão o nosso capitão mandou acender archotes o que tripulantes de outros navios também fizeram. No dia seguinte (18 de agosto de 1852) velejamos ao lado de navios que transportavam emigrantes para os Estados Unidos e para o Chile. A 20 de agosto, à noite, quase fomos abalroados por navio muito maior que o nosso. Fomos salvos por gritos de nossos marinheiros e escapamos por pouco. A água para beber estava ficando rara e o capitão resolveu reabastecer em Fallmouth, na Inglaterra. Alguns passageiros tiveram licença para ir à cidade. Às 22 horas partimos e a 26 de agosto ingressamos no Oceano Atlântico (...). Aos 11 de setembro, à noite, faleceu a esposa do amigo Berger, de Erfurt, devido a um ataque apoplético. No dia seguinte, o corpo foi lançado nas água do Oceano Atlântico. A 13 e 14 de setembro houve calmaria e nestes dias vimos os primeiros peixes voadores, quase sempre perseguidos por golfinhos. No dia 22 três enormes tubarões chegaram bem perto do nosso navio. No dia 25 assistimos a algo terrível. Uma senhora – mentalmente perturbada – não resistiu à solidão e lançou-se ao mar. Seu esposo e as seis crianças começaram a gritar. O capitão imediatamente mandou descer um bote em que quatro marinheiros iniciaram busca infrutífera...
Aos 29 de setembro, à noite, houve princípio de rebeldia a bordo devido ao racionamento de alimentos. Felizmente uma comissão eleita foi ter com o capitão e a paz e a tranqüilidade voltaram a reinar. Nos dias 2 e 3 de outubro choveu bastante, possibilitando a cada um apanhar bastante água. Dois dias após tremenda tempestade sacudiu o navio. Foi horrível e cada um procurou segurar-se onde possível, caso contrário, seria jogado de um canto a outro, sujeito a sérios ferimentos. O capitão berrava a plenos pulmões dando ordens e solicitando o auxílio aos passageiros homens. Parecia o nosso fim...”

A CHEGADA A RIO GRANDE: o perigo da barra

         “Finalmente no dia 4 de novembro de 1852, às 17 horas, conseguimos vislumbrar o litoral do Brasil (portanto, após três meses de viagem). Não é possível descrever a alegria que todos sentimos. Porém, neste dia não conseguirmos chegar a terra. De noite vimos à luz do farol e as chamas de enorme fogueira. Na manhã seguinte não houve vento favorável. O pão, já raro, há duas semanas era servido apenas uma vez por dia. À tarde, porém, houve vento necessário. Em companhia de dois navios atravessamos a barra do Rio Grande, o que não foi fácil. Mulheres e crianças não tiveram licença para permanecerem no convés, onde apenas ficaram os homens, mas sem falar. A parte navegável estava demarcada e foi cuidadosamente seguida. O perigo de encalhar num banco de areia era sempre presente, mas tudo transcorreu sem maiores problemas para nós, o que não ocorreu com um dos navios que nos acompanhava. No dia seguinte, às seis horas, vieram autoridades brasileiras examinar os ocupantes do Marianne. Entre os visitantes houve alguns negros com que nossas crianças se assustaram. Depois fomos rebocados por um navio brasileiro até o porto de Rio Grande, onde fomos muito bem recebidos e tratados”.

SEGUINDO VIAGEM PARA A COLÔNIA

         “Fomos embarcados em outro navio que nos trouxe até Porto Alegre, onde chegamos a 9 de novembro. Três dias após, em navio menor, fomos levados pelo Rio Jacuí até a Vila de Rio Pardo, onde chegamos no dia 13. Todos os nossos pertences foram carregados em carretas de duas rodas, puxadas por oito bois. Dois homens a cavalo acompanhavam cada carreta. Ao todo foram 12 carretas e 96 bois. Tudo era propriedade de apenas um senhor. Pernoitamos duas vezes no campo. (...) A viagem de Rio Grande até aqui, na Colônia de Santa Cruz, é inesquecível. A mata virgem, a infinidade de exemplares de pássaros e animais nos deixa estupefatos e perplexos. Apenas o clima, no início, pode apresentar pequenos transtornos. Mas logo nos habituamos. Os operários aqui são bem remunerados. Um seleiro que veio conosco da Alemanha encontrou trabalho em Rio Grande...”.


Navio com imigrantes alemães. Acervo: Revista de História da BNRJ.

Quadro retratando a chegada dos alemães a São Leopoldo em 1824. Ernest Zeuner. 


terça-feira, 29 de maio de 2018

A VILA OPERÁRIA DA RHEINGANTZ

         Faremos uma incursão no livro de Vivian Paulitsch Rheingantz: uma vila operária em Rio Grande (Editora da FURG, 2008). O trabalho da autora desvelou a construção e funcionalidade da Vila Operária, constituindo num livro de suma importância e de consulta obrigatória num momento histórico em que precisamos nos voltar para as raízes que constituíram a trajetória histórico-cultural da cidade.
          Fundada em novembro de 1873, a Rheingantz foi uma empresa pioneira na produção de tecidos e panos de lã. A fábrica original funcionava nas proximidades da praça Marcílio Dias nas esquinas da Silva Paes com Barroso. Em 1885 inaugura suas novas instalações na Cidade Nova, começando a edificação do complexo arquitetônico hoje conhecido. Além dos prédios de produção e administração, foi construída a Vila Operária para que os trabalhadores morassem junto à fábrica.
O ato de inauguração foi registrado pelo jornal Echo do Sul do dia 7 de março de 1885: “O crescente desenvolvimento que tomou este estabelecimento aconselhou os Srs. Rheingantz e C. a mudarem sua fábrica de tecidos de lã para o grande terreno onde se acha a tinturaria e onde foi construído o vasto edifício, cujas obras foram inauguradas no dia primeiro do corrente com a assistência de Suas Altezas Imperiais. É a prova de fogo. A coberta de ferro. Ocupa o principal edifício uma área de 3.300 metros quadrados, não incluindo a grande casa do novo motor, inaugurada no dia primeiro do corrente e a que se deu o nome de Grão Pará. Este morto é de força de 150 cavalos. O edifício tem 35 janelas de frente, outras tantas de fundo e 8 de lado. (...) Os maquinismos são dos conhecidos fabricantes Platt e Brothers, de Oldham (Inglaterra). Em junho próximo devem as duas fábricas funcionar com regularidade, empregando cerca de 400 operários”. Posteriormente, a fábrica empregava em média 1.200 operários chegando a picos de produção intensa com 2.000.
Conforme Vivian Paulitsch, após a construção das casas da fábrica a partir de 1884, as demais construções de semelhante tipologia foram edificadas entre 1903 e 1922, constituindo a denominada Vila Operária. A localização desse conjunto de habitações dá-se pela avenida Presidente Vargas (ex-Avenida Rheingantz), rua América, rua 1° de Maio e rua Raul Barlém (ex-Rua Brasil). A ampliação das moradias operárias deu-se na virada do século, quando foram construídos outros prédios, como o Cassino dos Mestres, o Grupo Escolar, o Jardim de Infância, seis casas para mestres e mais seis para operários.
         Conforme a autora, a importância da manutenção deste acervo edificado também está em que os construtores estabeleceram uma dialética com uma cultura arquitetônica daquele momento que se reflete na conformação das residências. A propriedade é única em termos de conjunto edificado, pois foram demolidas as vilas que existiram nos bairros mais antigos da cidade de São Paulo, como Bom Retiro, Brás, Mooca, Belém, Belenzinho, Lapa e Ipiranga, que eram repletos de vilas construídas junto às fábricas.

         No livro ainda é enfatizado que a Vila Operária está direta e materialmente ligada à história da industrialização do Rio Grande do Sul e a da tradição de criação de animais que caracteriza o Estado. O complexo Rheingantz é um patrimônio cultural, compreendendo obras de arquitetos, criações anônimas de construtores surgidas da alma popular e um conjunto de valores histórico-culturais que dão sentido à vida dessa vila naquele período histórico. Portanto, faz parte de uma cultura arquitetônica daquele tempo e pode-se claramente observar que os construtores – dos quais não há informações atualmente – conheciam certos modelos internacionais, pois existe um ambicioso desenho dentro do contexto desse conjunto de habitações. Vivian também enfatiza que a identidade e o caráter da Vila Operária Rheingantz tem suma importância não só por sua estrutura física, mas também por suas características sociológicas – considerando sua integração ao processo vivo do local em relação ao que denominam Vila Alemã ou Casas da Rheingantz.





Quadro com parte do complexo Rheingantz/União Fabril (em primeiro plano o prédio da administração) no ano de 1923. Centralizando a imagem dos administradores está Carlos Guilherme Rheingantz. 

Cartão-postal de parte do complexo Rheingantz por volta de 1920. Em destaque o prédio da administração e a circulação do bonde urbano.


segunda-feira, 21 de maio de 2018

A HISTORICIDADE INDÍGENA

Os conceitos de Pré-História e História definem modos-de-ser e agir, exclusão e inclusão dos participantes de um processo a partir de motivações sociais, políticas e econômicas, situando-se - em e além - de querelas acadêmicas entre antropólogos, arqueólogos e historiadores.
A natureza do “histórico”, a transição, exclusão e complementaridade das populações do “Pré” frente à inserção no “histórico” é um campo complexo que permite diferenciadas leituras.
         A caracterização dos agentes históricos e pré-históricos e seu papel na formação do Rio Grande do Sul tem sido objeto de investigação desde os primeiros estudos historiográficos na primeira metade do século XIX. A delimitação entre História e Pré-História é preocupação implícita e explícita. A tentativa em demarcar o “início da história” não evidencia apenas um marco cronológico, mas também uma preocupação historicizante. Ou seja, destituir de historicidade os agentes anteriores ao marco delimitador do desencadear do processo civilizatório, - seja de orientação jesuítico-missioneira ou luso-brasileira-, é no mínimo artificioso.
         As populações indígenas que ocupavam a metade sul do atual estado do Rio Grande do Sul antes do contato com as frentes de expansão luso-brasileira ou hispano-americana constituíram outras leituras históricas que não se resumem as versões européias.  A história européia como marco da historicidade é redutora de um raciocínio de longa duração, pois os povoamentos pré-históricos recuam aos últimos doze milênios e não aos últimos quatro séculos.
Portanto, os cortes cronológicos e culturais entre o Pré-Histórico e Histórico não convergem para referenciais intocáveis, e sim para historicidades complexas dinamizadas no contato entre indígenas e europeus. O estatuto de selvagem e civilizado, de cidadão e de pária, além de ser etnocêntrico, não é de simples definição.
A ocupação da atual unidade administrativa denominada Rio Grande do Sul processou-se numa longa duração temporal e na diversidade de adaptações aos diferentes ambientes. Os grupos de caçadores, coletores, pescadores e horticultores que povoaram a Bacia Platina Oriental desde o final do pleistoceno deixaram evidências materiais de sua cultura nos artefatos líticos, cerâmicos, representações artísticas, nos padrões de ocupação etc.
Após a chegada dos europeus, a etnografia registrou a presença de populações Charruas e Minuanos nos espaços pampianos. Desses contatos entre ibéricos e índios resultou uma série de influências, desejadas ou indesejadas aos colonizadores, que inviabiliza as noções de mera substituição da cultura indígena pela européia. As sociedades ibero-americanas incorporaram parte da herança cultural, social e biológica dos indígenas. Concomitante ao etnocídio e genocídio, ao cruzamento racial e disseminação de “gauchos”, o universo colonial indígena não desapareceu com o simples desejo de esvaziar os espaços “não-civilizados”. A “terra de ninguém”, como referência a territórios ocupados por indígenas, foi o cenário onde se desenrolaram relações complexas com o colonizador, e não um súbito desaparecimento étnico-cultural frente à chegada dos “portadores de historicidade”.
A etnografia registra a presença de charruas e minuanos no corredor fisiográfico que liga a latitude da Barra do Rio Grande até a Colônia do Sacramento no Rio da Prata. As tropelias oriundas das lutas entre Portugal e Espanha pela posse da região Platina Oriental, estabeleceu a estas populações contatos civilizatórios que levaram a mudança dos padrões culturais de sobrevivência e ao cruzamento biológico que produziu o gaúcho ou “gaucho”, um produto fenotípico do pampa adaptado a um modo-de-vida que antecede o estabelecimento da civilidade e dos cercamentos dos campos até meados do século XIX.

Este gaúcho histórico, um centauro índio/europeu percorreu as coxilhas, a planície costeira e as terras platinas num período de aventureiros, caudilhos, changadores e vaqueanos e que constituíram grande parte da peonada das estâncias da fronteira sul. Foi à adaptação parcial de um modo-de-ser nômade típico das populações Charruas e Minuanos. Estes indígenas conheciam a geografia da sobrevivência pampiana antes da civilidade européia fechar os espaços de deslocamento e as frentes de fricção luso-espanholas, promoverem as lutas platinas que dizimaram milhares de indígenas, mas, que não apagaram sua presença na história rio-grandense e do Rio da Prata. 

Índios Pampeanos. Carlos Morel cerca de 1830. MNBA de Buenos Aires. 

Minuanos no Uruguai. Segunda metade do século XIX. 



Cacique Vaimaca por volta de 1830.



sexta-feira, 18 de maio de 2018

SUPERMAN – 80 ANOS / HQ & GRAPHIC NOVEL

Superman começou a ser concebido em 1933 e a não aceitação da publicação desta História em Quadrinho por editoras americanas levaram um de seus criadores, Joe Shuster a atear fogo ao material. Restou apenas a capa já com o nome The Superman. Passaram-se cinco anos e o personagem foi remodelado por Shuster e Jerry Siegel surgindo sua primeira história na revista Action Comics #1 em junho de 1938 (como as revistas nos EUA colocavam na capa a data de dois meses após o lançamento, possivelmente a revista circulou em abril de 1938). Um personagem fadado ao esquecimento acabou revolucionando as HQs e a revista em que surgiu o Superman chegou a ser vendida por US$2,16 milhões cujo dono era o ator Nicolas Cage. Em 2014 um novo recorde foi batido: um exemplar foi vendido num leilão do e-bay por US$ 3,2 milhões se tornando a HQ mais cara já vendida.  Dos 200 mil exemplares lançados em 1938 cerca de apenas 100 exemplares são conhecidos e tidos como preciosidades.
O imenso sucesso alcançado fez com que a revista, em 1939, alcançasse uma tiragem de 500 mil exemplares fazendo surgir uma nova revista com o título de Superman. Nascia a Era de Ouro dos Quadrinhos que remete a criação de vários personagens de super-heróis que popularizaram a arte seqüencial: Batman, Capitão América, Capitão Marvel e Mulher Maravilha (entre tantos outros personagens que chegaram aos tempos atuais).      
Superman inaugurou o super-herói moderno e modificou a perspectiva da abordagem dos quadrinhos: integrou num personagem os estereótipos de superpoderes, origens pseudocientíficas, identidade secreta, rotina do dia-a-dia dos mortais inclusive sendo um trabalhador etc.
O personagem foi o responsável pela projeção da DC Comics, empresa surgida em 1934 que é a pioneira nos quadrinhos estadunidenses: não fazia apenas a reimpressão das tiras de jornal, como outros grupos. Em 1939 foi lançado Batman e a DC Comics, entre altos e baixos, chegou ao presente como uma das maiores empresas do mundo (atualmente subsidiária da Warner Bros.).    
Ao longo das décadas o personagem foi sendo modificado e passou por construções éticas que o afastaram da agressividade original - onde matava os vilões sem a necessidade da atuação do poder judiciário.   
         Para recordar o enredo: o Extra-Terrestre Kal-El originário do planeta Krypton e filho de Jor-El e Lara Lor-Van, foi lançado num foguete ao espaço enquanto Krypton estava explodindo. Ainda bebe, foi recebido afetuosamente no Planeta Terra por seus dois novos pais (adotivos) e foi desenvolvendo os superpoderes que propiciaram milhares de histórias em quadrinhos, roteiros para TV, filmes e uma gama de produtos. Superman tornou-se o mais conhecido personagem criado pelos criados e que neste ano de 2018 completa 80 anos.

HQ & GRAPHIC NOVEL 


Capa do esboço de Superman de 1933. Rejeitada pelos editores.

Primeira aparição do Superman em 1938 na revista Action Comics.  

Revista Superman que foi encontrada na parede de uma casa que seria demolida. Foto: AP.


Action Comics #1. 



Primeiro número da revista Superman em 1939.
Superman n.1 no Brasil, novembro de 1947.





GARIBALDI E DUMAS NA BATALHA DE SÃO JOSÉ DO NORTE

“Na mão de um homem de coragem, qualquer arma serve – uma foice, um mosquete, um machado, ou até um prego na ponta de um pau”. Giuseppe Garibaldi (1807-1882)

GIUSEPPE GARIBALDI

Segundo Hermann Viola, apesar da precariedade dos conhecimentos de Garibaldi sobre estratégia militar, este tinha uma capacidade instintiva de avaliar corretamente uma situação de confronto com o inimigo e de reagir a ela da melhor forma possível. A aura de humildade que o cercava e sua falta de ambições pessoais também contribuiu para seu sucesso. Teria direito a honrarias e recompensas, mas elas não lhe interessavam. Morreu tão pobre e humilde como sempre viveu. Apoiando-se apenas na coragem dos seus homens, sem sequer tentar descobrir as fraquezas do inimigo, Garibaldi recorria com freqüência a ataques frontais e suicidas de pequenos destacamentos pouco armados contra batalhões de soldados de carreira, mais numerosos, bem treinados e portadores de armas modernas e farta munição. Como resultado, perdeu alguns dos seus melhores oficiais e ele próprio poderia ter morrido em combate, caso a providência e a sorte não fossem suas companheiras constantes.
Quaisquer que tenham sido seus erros, porém, não há dúvida de que Garibaldi foi um brilhante guerreiro e um patriota sincero. Seu infatigável e revolucionário espírito de justiça explicam sua preocupação pelas questões sociais até o fim da vida. Opôs-se ativamente contra a pena de morte e apoiou o socialismo. “O futuro da Itália pertence às classes operárias”, declarou pouco antes de morrer.

A BATALHA DE SÃO JOSÉ DO NORTE

       Esta Batalha foi um dos confrontos decisivos da Revolução Farroupilha e representou uma derrota para os revolucionários. A tentativa de tomada de São José do Norte no dia 16 de julho de 1840, um confronto entre 600 imperiais contra 1200 farroupilhas resultou em 72 mortos, 87 feridos e 84 prisioneiros do lado do Império e em 181 mortos, 150 feridos e 18 prisioneiros do lado Farroupilha. Que o combate foi tenaz e encarniçado o mostram as perdas recíprocas, sendo este um dos mais sanguinolentos confrontos desta guerra. Na visão do monarquista Tristão Alencar Araripe o “tempo era frio e tempestuoso, e os assaltantes encobertos pelos cômoros de areia que cercam a vila, puderam aproximar-se sem serem pressentidos pelas sentinelas da guarnição legal. Pela uma hora da madrugada começa o assalto: os rebeldes penetram nas trincheiras e dominam a praça. A guarnição dela, sob o comando do Coronel de legião Antonio Soares de Paiva, pôde ser socorrida por gente da vizinha cidade do Rio Grande, e conseguiu expulsar os rebeldes. O conflito durou nove horas. O socorro foi escasso em conseqüência do temporal, que então agitava às águas, que separam os dois lugares; bastou, porém para animar a guarnição agredida. A resistência das forças legalistas valeu a São José do Norte o título outorgado por D. Pedro II de mui heróica Vila.

 O DIÁRIO 

         Conforme Garibaldi em seu diário redigido por Alexandre Dumas (1802-1870), as forças do Império, a fim de realizarem incursões na campanha, foram forçadas a desguarnecer de infantaria as cidades fortificadas, como é o caso de São José do Norte que se apresentava vulnerável frente a um ataque fulminante. Segundo ele, esta cidade situada na margem setentrional da embocadura da Lagoa dos Patos era uma das chaves da Província, tanto no aspecto político quanto no comercial. Seu controle significaria a conquista de uma saída para o mar num momento difícil para as forças farroupilhas. “Sua tomada, mais do que útil, tornava-se imprescindível”. Na cidade encontravam-se produtos de todo o gênero, necessários à indumentária de combate que era de “qualidade lastimável do lado farroupilha”, além disso, seria o controle do único porto marítimo da Província.
         Porém, a desventura perseguiu a ação militar, a qual foi “conduzida com uma admirável sabedoria e em absoluto segredo, os seus frutos foram inteiramente perdidos por ter-se hesitado a desfechar o golpe final. Uma marcha obstinada de oito dias e de vinte e cinco milhas diárias conduzira-nos até os muros da praça-forte”.
         Conforme Garibaldi tudo aconteceu numa “daquelas noites de inverno, no curso das quais abrigo e fogo são como favores da Providência. Nossos pobres soldados da liberdade, famintos e esfarrapados, com os membros entorpecidos pelo frio, o corpo regélido sob a cordoada de uma terrível tempestade – nossa companheira durante a maior parte do percurso – avançavam silenciosos contra fortes e trincheiras ocupadas por sentinelas. Os cavalos dos chefes foram deixados sob a guarda de um esquadrão de cavalaria comandado pelo coronel Amaral a uma pequena distância das muralhas, e cada homem, reunindo o resto das suas forças, preparou-se para o combate.
O alerta dado por um sentinela serviu como toque de atacar. A resistência das muralhas foi fraca e fugaz, malgrado o fogo arrojado pelos canhões do forte. À uma e meia da madrugada começáramos o assalto e, às duas horas, apossávamo-nos dos redutos imperiais e de três ou quatro fortificações que as guarneciam, todas tomadas pelo assédio das baionetas.
Senhores de todo o baluarte, senhores dos bastiões, consumada a incursão na cidade, parecia impossível que ela nos escapasse. Pois bem! Ainda uma vez, o aparentemente irrealizável cumpria a sua sina. Tendo ganho as ruas no intramuros de São José, nossos soldados presumiram que tudo estava liquidado: a maior parte deles dispersou-se, atraído pelo engodo da pilhagem.
Enquanto isso, refeitos da surpresa, os homens do Império reuniram-se numa zona protegida da cidade. Nós a atacamos. Eles nos rechaçaram. Os chefes procuraram por toda parte os soldados que multiplicariam os ataques, mas a procura foi inútil: quando alguns eram encontrados, via-se que estavam entretidos com os seus espólios, ou bêbados, ou então com os seus fuzis quebrados ou avariados de tanto que haviam violado e rompido as portas daquelas casas.
Quanto ao inimigo, ele não perdia o seu tempo. Vários navios de guerra que se achavam atracados no porto tomaram posição atravessando as suas baterias de tiro pelas ruas onde nos encontrávamos. Enviamos chamados de auxílio a Rio Grande, cidade localizada na margem oposta da embocadura dos Patos. Um único forte, cuja ocupação havíamos negligenciado, servia de refúgio ao inimigo, e o maior de todos, o Forte do Imperador – que tomáramos durante o morticínio de um glorioso assalto -, acabou sendo devastado por uma terrível explosão do paiol, que dizimou um bom número de homens. Em suma, o mais retumbante dos triunfos havia-se transformado, por volta do meio-dia, na mais humilhante das retiradas.
Os bons choravam, irados e desesperados. Diante da nossa situação e face aos esforços que empenháramos o nosso fracasso fora colossal. A partir daquele momento, a nossa infantaria não seria mais que um esqueleto. Quanto à diminuta cavalaria que fizera a expedição, ela empregou-se a proteger a retirada. A divisão retornou a seus aboletamentos de Bela Vista. Eu fiz estação, com a marinha, em São Simão. Toda a minha tropa resumia-se a cerca de quarenta homens entre oficiais e soldados”. 

Garibaldi em Nápoles (1861), Library of Congress.



quinta-feira, 17 de maio de 2018

CAFÉ BRASILEIRO

No livro publicado em 1905, O Brasil de Hoje, o Barão Francisco Homem de Melo discute assuntos de cultura e política de seu tempo. Um tema que ele tratou foi sobre o “preconceito” que o café brasileiro sofria na Europa. Isto parece ficção, pois, desde 1840, o café era o principal produto da balança comercial brasileira e foi responsável pela formação de uma sólida aristocracia cafeeira que defendeu a Monarquia, mas abandonou o navio à deriva quando da Proclamação da República (1889). Na República Velha o café continuou a mandar na economia brasileira e propiciar, através dos capitais oriundos da cafeicultura, a supremacia paulista na industrialização brasileira.  
A desvalorização ou até desconhecimento do café brasileiro foi narrado por Homem de Melo: “O certo é que o nosso café continua, em Paris, Londres, Berlim, Roma, Nápoles, a ser exposto à venda, com letreiros bem visíveis que o dão como originário de Moka, Java, Guadalupe, México e até Mont Pellé! Em diversas localidades, constatando a falsa designação dada ao nosso café, a pretexto de comprar, pedíamos nos servissem gênero de procedência brasileira. Ninguém o conhecia, e algum negociante que dele tinha notícia não o vendia no seu estabelecimento, porque não era... bon marché. No mostrador de uma loja de Genebra, vi anunciado à venda Café Santos. Entrei e pedi - café brasileiro. O proprietário da casa respondeu-me que não tinha, nem conhecia essa marca. - Mas, este Café Santos de onde procede? - Ora, da República da Argentina”.
Atualmente, um dos orgulhos dos brasileiros é a qualidade do seu café! Terão fundamento estas afirmações do descrédito do nosso café?
Conforme Eduardo César no artigo “Do Café Rio aos Microlotes Especiais - Uma breve história da qualidade dos grãos brasileiros” (https://coffeeinsight.com.br) a reputação do Brasil como produtor de cafés de baixa qualidade remonta ao século XIX. Para César, “diversos fatores contribuíram para que essa imagem se formasse, e alguns ainda estão presentes na cafeicultura moderna. A fama dos concorrentes como produtores de qualidade também teve origem naquela época. Por volta de 1840, o Brasil já era o maior exportador de café do mundo. Até o final do século sua participação nas exportações globais chegou a 80%. O domínio do mercado cafeeiro pelo nosso país foi, sem dúvidas, um grande feito, mas isso ocorreu por meio da venda de grãos inferiores”. Os cafés eram classificados em Brazils (café amargo ou Café Rio) e milds (suaves). No Brasil não havia colheita seletiva e os grãos eram colhidos e misturados com diferentes tipos de café. “A secagem e o beneficiamento eram muito rudimentares. O clima e a altitude das lavouras brasileiras também contribuíram para a imagem negativa. Logo se percebeu que o café nacional tinha menos corpo e acidez que os de outras regiões”. A produção de café era volumosa, mas não se buscou a produção da cafés superiores visando um mercado mais refinado de paladar.
Não devemos confundir a busca de qualidade diferenciada no mercado internacional com o ato do consumo de café no Brasil e a satisfação em degustar marcas consagradas industrializadas ou torrefações e moagens artesanais que se espalhavam pelas cidades (formando um mercado local): gerações foram marcadas pelo odor emanado de uma xícara de café saboreado em casa ou numa cafeteria lotada de consumidores. Sociabilidades familiares e públicas se constituíram em torno do café...
A busca foi outra: somente nos anos 1990 é que a pesquisa brasileira voltada a cafés de qualidade superior foram sendo implementadas de forma positiva. “Novas práticas e tecnologias foram criadas e disseminadas nas regiões produtoras”. As exportações de cafés diferenciados crescem continuamente e os grãos brasileiros são “sinônimo de qualidade. O país é o principal fornecedor de grandes torrefadoras internacionais, conhecidas por exigirem padrões específicos”.

Mais de um século após as afirmações de Homem de Melo sobre o desconhecimento e preconceito ao café brasileiro (o mesmo café que era consumido acreditando ser de outras procedências...), o nome “Brazil” estampa não apenas sacas (60 kg) mas também as embalagens de edições especiais que são vendidas no planeta. 



Pé-de-café, Marc Ferrez, final do século XIX. 

Pintura de Portinari, café, 1934.

Propaganda de café brasileiro em Portugal.



quarta-feira, 16 de maio de 2018

SINISTRO MARÍTIMO

“Dentro da noite na calma habitual de nossa pacata cidade um navio desusado, iniciou-se de momento prezo de um dinamismo invulgar que tinha qualquer coisa de angustioso. Depois, alarmados e consternados os raros que dela tiveram ciência, a nota célere levou a notícia trágica de que um vapor na barra, prestes a assobrar ingentemente clamava socorro. Do Porto Velho, o apito demorado e alarmante dos rebocadores era um apelo decisivo a marujada da terra conclamando-a para o cumprimento do dever. Fogos acesos, máquinas que se movimentam, fumo nas chaminés tudo indica a atividade infatigável dos homens do mar. Eles sabem melhor do que ninguém antever o espetáculo dantesco do mar em fúria arrastando no pináculo aguçado o espumante das ondas, as últimas esperanças do náufrago aflito. Por isso trabalham. As caldeiras fervem, as fornalhas atiram o clarão rubro para o dorso suorento do carvoeiro que tem um movimento rítmico e apressado, lançando carvão... Quando a manhã brevemente bordou de ouro as franças das árvores e as beiras dos telhados umedecidos, a notícia corria já brandando a plenos pulmões na boca dos madrugadores, dizendo do sinistro que enchera a noite de pavor. Assim, infatigáveis, na faina de melhor servir a nosso público, o dia nos encontrou na lida, prosseguindo na tarefa árdua”. (Eco do Sul, 06 de fevereiro de 1933).

O FATO
Aproximadamente à 01h30min da madrugada de domingo, dia 05 de fevereiro de 1933, a Capitania dos Portos recebeu mensagem da Estação de Rádio da Junção, comunicando que o Paquete Araçatuba da frota do Lloyd Nacional, chocou-se com o molhe leste encontrando-se em perigo de afundamento. Falhas no sistema de sinalização e o mau tempo devido ao vento sul, provocaram o acidente. A participação de rebocadores no resgate foi crítica por passageiros que exaltaram o comportamento da tripulação que buscava controlar o pânico a bordo. Conforme o jornal O Tempo, o navio trazia 46 passageiros e 72 tripulantes. O drama vivido nas horas que se seguiram ao acidente, fez reviver a memória da população sobre a tragédia do naufrágio do navio Rio Apa em julho de 1887. No teatro dos acontecimentos, os molhes da barra, e num dia dedicado ao culto de Nossa Senhora dos Navegantes, a sobrevivência acabou superando a tragédia.

O ARROJADO MARINHEIRO
         O Araçatuba, vindo do norte do país com destino a Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre, devido à inexistência de bóia de luz que deveria orientar a navegação junto à entrada dos molhes chocou-se com as pedras. O vento e a forte correnteza alarmaram a tripulação sobre a rápida possibilidade de afundamento. Esta a preocupação fez com tentativas de prender um cabo de vai-e-vem fossem realizadas por tripulantes do navio. O êxito na ligação entre o navio e a terra coube ao marinheiro João Alves, “o gaúcho”, o qual, lançando-se ao mar, conduziu um cabo para uma possível passagem dos passageiros. Apesar das contusões e escoriações disseminadas nos pés, mãos e rosto, provocadas pelo choque com as pedras do molhe leste, o marinheiro conseguiu dirigir-se para a praticagem informando do acidente. Conforme o jornal O Tempo “por esse meio e usando-se uma cadeirinha, procedeu-se ao salvamento, primeiramente das crianças e senhoras e mais tarde, quando os elementos amainaram, lançou-se mão de baleeiras do Araçatuba para o transporte dos demais passageiros que desembarcaram na 5ª secção da Barra, indo dali para a Vila Siqueira, com destino a cidade” (O Tempo, 07/02/1933).
         O acidente ocorreu no dia comemorativo de Nossa Senhora dos Navegantes, com grande movimentação de embarcações que deslocam-se anualmente para São José do Norte. Com a difusão da notícia, a apreensão tomou conta dos participantes. No domingo à tarde, informados do salvamento dos passageiros e tripulantes, a procissão passou a ser de ação de graças. “A esta cerimônia solidarizaram-se todos quantos se encontravam na vila”, quando a multidão seguiu a banda musical Rossini pelas ruas centrais de São José do Norte comemorando o final feliz do incidente.

AS CAUSAS E OS PREJUÍZOS
         Os passageiros, a maioria dos quais rumava para Porto Alegre, ao deixarem a cidade, redigiram uma declaração com o seguinte teor: “Nós, abaixo assinados, passageiros do vapor nacional Araçatuba, salvos depois do triste sinistro, queremos, antes de retirarmo-nos desta cidade, patentear todos os nossos agradecimentos e admiração pela atuação calma e eficiente, e peça grande perícia do sr. Comandante (Alberto Martinho de Almeida) e de todos os demais componentes da tripulação, oficiais e marinheiros, no momento de grande perigo originado ao que podemos constatar, na falta de uma bóia luminosa indicativa do canal de acesso da barra”. A falta de sinalização foi apontada, nos jornais, como o fator que motivou o choque com o molhe”.
         Dez dias após o acidente o navio continuava a afundar lentamente, não deixando dúvida que “em breve desaparecerá no seio das águas, descendo à profundidade de doze metros existentes no local em que naufragou”. O navio ficou em atrito com as pedras, acompanhando o movimento das ondas, “com o embate de encontro às pedras, além do grande rombo de cinco metros, que recebeu ao montar no molhe, o navio está agora abrindo fendas em vários outros pontos. A submersão do navio pela proa vai se dando gradualmente”. Entretanto, os serviços de resgate da carga continuavam. “Estes trabalhos, dirigidos pelo comandante Julio Bahia, com segurança e presteza, tem conseguido salvar carga que montam já a algumas centenas de contos de réis. Só as partidas de lança-perfume que o navio perdido trazia para o carnaval próximo, em Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas, já montam a cerca de 180:000$000. Ao mesmo tempo arrebatados pelas águas, à parte do navio já submersa, continuam a dar à praia objetos, móveis e cargas do Araçatuba as quais alcançam já a altura dos faróis do Sarita e do Albardão. A autoridade fiscal teve denúncia de que pessoas residentes nas proximidades destes faróis estão se apoderando dos salvados...” (O Tempo, 15 de fevereiro de 1933).
No mês de março, o navio prosseguiu em seu lento desaparecimento nas profundezas da barra do Rio Grande...

Ilustrações: Acidente do navio Araçatuba nos Molhes da Barra. Fonte: Acervo Histórico do Porto do Rio Grande.