“Dentro
da noite na calma habitual de nossa pacata cidade um navio desusado, iniciou-se
de momento prezo de um dinamismo invulgar que tinha qualquer coisa de
angustioso. Depois, alarmados e consternados os raros que dela tiveram ciência,
a nota célere levou a notícia trágica de que um vapor na barra, prestes a
assobrar ingentemente clamava socorro. Do Porto Velho, o apito demorado e
alarmante dos rebocadores era um apelo decisivo a marujada da terra
conclamando-a para o cumprimento do dever. Fogos acesos, máquinas que se
movimentam, fumo nas chaminés tudo indica a atividade infatigável dos homens do
mar. Eles sabem melhor do que ninguém antever o espetáculo dantesco do mar em
fúria arrastando no pináculo aguçado o espumante das ondas, as últimas
esperanças do náufrago aflito. Por isso trabalham. As caldeiras fervem, as
fornalhas atiram o clarão rubro para o dorso suorento do carvoeiro que tem um
movimento rítmico e apressado, lançando carvão... Quando a manhã brevemente
bordou de ouro as franças das árvores e as beiras dos telhados umedecidos, a
notícia corria já brandando a plenos pulmões na boca dos madrugadores, dizendo
do sinistro que enchera a noite de pavor. Assim, infatigáveis, na faina de
melhor servir a nosso público, o dia nos encontrou na lida, prosseguindo na
tarefa árdua”. (Eco do Sul, 06 de
fevereiro de 1933).
O
FATO
Aproximadamente
à 01h30min da madrugada de domingo, dia 05 de fevereiro de 1933, a Capitania dos
Portos recebeu mensagem da Estação de Rádio da Junção, comunicando que o
Paquete Araçatuba da frota do Lloyd
Nacional, chocou-se com o molhe leste encontrando-se em perigo de afundamento.
Falhas no sistema de sinalização e o mau tempo devido ao vento sul, provocaram
o acidente. A participação de rebocadores no resgate foi crítica por
passageiros que exaltaram o comportamento da tripulação que buscava controlar o
pânico a bordo. Conforme o jornal O Tempo,
o navio trazia 46 passageiros e 72 tripulantes. O drama vivido nas horas que se
seguiram ao acidente, fez reviver a memória da população sobre a tragédia do
naufrágio do navio Rio Apa em julho de 1887. No teatro dos acontecimentos, os
molhes da barra, e num dia dedicado ao culto de Nossa Senhora dos Navegantes, a
sobrevivência acabou superando a tragédia.
O
ARROJADO MARINHEIRO
O Araçatuba, vindo
do norte do país com destino a Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre, devido à
inexistência de bóia de luz que deveria orientar a navegação junto à entrada
dos molhes chocou-se com as pedras. O vento e a forte correnteza alarmaram a
tripulação sobre a rápida possibilidade de afundamento. Esta a preocupação fez
com tentativas de prender um cabo de vai-e-vem fossem realizadas por
tripulantes do navio. O êxito na ligação entre o navio e a terra coube ao
marinheiro João Alves, “o gaúcho”, o qual, lançando-se ao mar, conduziu um cabo
para uma possível passagem dos passageiros. Apesar das contusões e escoriações
disseminadas nos pés, mãos e rosto, provocadas pelo choque com as pedras do
molhe leste, o marinheiro conseguiu dirigir-se para a praticagem informando do
acidente. Conforme o jornal O Tempo
“por esse meio e usando-se uma cadeirinha, procedeu-se ao salvamento,
primeiramente das crianças e senhoras e mais tarde, quando os elementos
amainaram, lançou-se mão de baleeiras do Araçatuba
para o transporte dos demais passageiros que desembarcaram na 5ª secção da
Barra, indo dali para a Vila Siqueira, com destino a cidade” (O Tempo, 07/02/1933).
O acidente ocorreu no dia comemorativo de Nossa Senhora dos
Navegantes, com grande movimentação de embarcações que deslocam-se anualmente
para São José do Norte. Com a difusão da notícia, a apreensão tomou conta dos
participantes. No domingo à tarde, informados do salvamento dos passageiros e
tripulantes, a procissão passou a ser de ação de graças. “A esta cerimônia
solidarizaram-se todos quantos se encontravam na vila”, quando a multidão
seguiu a banda musical Rossini pelas ruas centrais de São José do Norte
comemorando o final feliz do
incidente.
AS
CAUSAS E OS PREJUÍZOS
Os passageiros, a maioria dos quais rumava para Porto
Alegre, ao deixarem a cidade, redigiram uma declaração com o seguinte teor:
“Nós, abaixo assinados, passageiros do vapor nacional Araçatuba, salvos depois do triste sinistro, queremos, antes de
retirarmo-nos desta cidade, patentear todos os nossos agradecimentos e
admiração pela atuação calma e eficiente, e peça grande perícia do sr.
Comandante (Alberto Martinho de Almeida) e de todos os demais componentes da
tripulação, oficiais e marinheiros, no momento de grande perigo originado ao
que podemos constatar, na falta de uma bóia luminosa indicativa do canal de
acesso da barra”. A falta de sinalização foi apontada, nos jornais, como o
fator que motivou o choque com o molhe”.
Dez dias após o acidente o navio continuava a afundar
lentamente, não deixando dúvida que “em breve desaparecerá no seio das águas,
descendo à profundidade de doze metros existentes no local em que naufragou”. O
navio ficou em atrito com as pedras, acompanhando o movimento das ondas, “com o
embate de encontro às pedras, além do grande rombo de cinco metros, que recebeu
ao montar no molhe, o navio está agora abrindo fendas em vários outros pontos.
A submersão do navio pela proa vai se dando gradualmente”. Entretanto, os
serviços de resgate da carga continuavam. “Estes trabalhos, dirigidos pelo
comandante Julio Bahia, com segurança e presteza, tem conseguido salvar carga
que montam já a algumas centenas de contos de réis. Só as partidas de
lança-perfume que o navio perdido trazia para o carnaval próximo, em Porto Alegre , Rio
Grande e Pelotas, já montam a cerca de 180:000$000. Ao mesmo tempo arrebatados
pelas águas, à parte do navio já submersa, continuam a dar à praia objetos,
móveis e cargas do Araçatuba as quais
alcançam já a altura dos faróis do Sarita e do Albardão. A autoridade fiscal
teve denúncia de que pessoas residentes nas proximidades destes faróis estão se
apoderando dos salvados...” (O Tempo,
15 de fevereiro de 1933).
No
mês de março, o navio prosseguiu em seu lento desaparecimento nas profundezas
da barra do Rio Grande...
Ilustrações:
Acidente do navio Araçatuba nos Molhes da Barra. Fonte: Acervo Histórico do Porto do Rio Grande.
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