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A Noiva Morta, edição Sebo Clepsidra e Wish, 2022. |
No rastreamento das raízes históricas da literatura vampírica, foi publicada mais uma obra inédita no Brasil. Trata-se de "A Noiva Morta" autoria de Gottfried Peter Rauschnik (nascido em 1779), conto publicado em 1820. O enredo se situa na ação da marquesa italiana Val Umbrosa (a vampira) que provoca várias mortes numa família de nobres alemães. Os motivos das mortes são desconhecidos e o clima de que uma maldição ronda cria uma atmosfera perfeita utilizada nos contos de fantasmas alemães (como os nachzherer) desta época.
O conto foi publicado em formato digital e disponibilizado para os apoiadores do projeto "Especial Vampiras" (Editora Clepsidra e Editora Wish) financiado no Catarse.
A tradução é de Felipe Vale da Silva e a apresentação foi feita por Cid Vale Ferreira que destacou que "o conto inclui inovações notáveis, como a jovem louca
capaz de vislumbrar através das ilusões da
vampira e o cônego versado em artes arcanas que prefigura investigadores do sobrenatural e caçadores de vampiros como Martin
Hesselius (personagem de Le Fanu) e Abraham
Van Helsing (de Stoker)".
O Cônego conhecedor de ocultismo e vampirismo, é mais um fragmento para a criação dos caçadores de vampiros: o Cônego em 1820, Hesselius em 1872 e Van Helsing em 1897.
Uma novela escrita em 1811 por Friedrich Laun foi a base do título/enredo para o conto. Conforme Ferreira: "a
Noiva Morta é um espectro auxiliado por um
capelão fantasma. Sua sina é tomar a forma de
beldades falecidas para tentar jovens noivos
nas vésperas de seus casamentos, buscando aquele que resistirá aos seus avanços para, dessa
forma, dissolver a maldição que a aprisiona". Porém, Rauschnik, mesmo aproveitando esta antiga lenda da atual Alemanha, trouxe elementos diferenciados e um epílogo voltado ao vampirismo. Somente no final é que aparece a palavra vampira superando a condição de espectro. É narrado o ato de sugar o sangue do peito da vítima e o resultado mortal decorrente. Era muito cedo, em 1820, para narrativas de Bram Stoker em que se fazia transfusão de sangue para evitar a morte.
Uma fonte de inspiração para a escrita de Carmilla por Le Fanu está nesta passagem do conto de Rauschnik: "certa vez, sentada no caramanchão do jardim tarde da noite,
uma dama estrangeira os mandou chamar e pediu abrigo pela noite – isso porque
sua carruagem de viagem havia quebrado não longe do castelo". Le Fanu leu este conto!
Um diálogo do Cônego com a marquesa situa a vampira num espaço de transição entre os vivos e os mortos, não residindo em nenhum dos dois lados: “Quem és tu?”, inquiriu à trêmula marquesa, “uma alma penada
é o que não és; pois, fosse tal, não poderias me enganar com teu invólucro.
Também não podes pertencer aos vivos, pois a sombra parcial e pálida que o teu
corpo projeta o atesta. Em nome de Deus, diz- -me quem és!”
Outra passagem evidencia a ação de um predecessor do famoso Van Helsing e a demonstração do conhecimento sobre o ritual anti-vampírico (dos séculos XVII e XVIII) fundado no uso da estaca no coração e na fogueira para converter em cinzas o morto-vivo: "Então era aquele o terrível monstro que não pertencia nem à
vida nem à morte; a quem fora permitido o retorno do tenebroso reino da
putrefação para que se alimentasse do sangue dos vivos e se nutrisse de flores
frescas da juventude a fim de inibir a destruição do próprio corpo. O prelado
mandou que cravassem uma estaca no peito da fera, e sangue quente jorrou da
ferida. Então cremou-se o cadáver, e a maldição, que um destino funesto
depositara sobre aquele corpo morto – embora não inteiramente morto –, foi
destruída".
Inúmeras reflexões podem ser feitas neste conto de dois séculos no passado: se observa a associação entre o desconhecido (a marquesa) enquanto um meio corruptor e que leva a morte - em Stoker será o estrangeiro do leste europeu o perigo; a beleza física escondendo a fealdade que residia na morta-viva; a materialização de um espectro que através da alimentação sanguínea garante sua persistência física na sepultura etc.
Este conto estava esquecido a dois séculos...