Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

NIMUENDAJÚ E O MUSEU NACIONAL


         


       Quando fui estudante de Graduação em História na Universidade Federal de Santa Maria (em priscas eras do século passado) fiz a leitura de artigos de etnologia geral e do Brasil. O tema povoamento da América e do território brasileiro era fascinante e a diversidade de povos indígenas do litoral, região amazônica e hinterland provocava muitas interrogações sobre os contatos com as fronteiras culturais da região mesoamericana e caribenha (Maias...) e a cordilheira dos Andes (Incas...).
As raízes do povoamento que recuava a mais de dez mil anos e as adaptações espaço-temporais dos bandos de caçadores, tribos, horticultores de floresta tropical e subtropical e chefias (como as sociedades Marajoara e Santarém), eram algumas das tantas temáticas extremamente ricas que se escondiam na vida real das populações ameríndias e que foram preservadas parcialmente na documentação histórica e etnográfica e nos vestígios materiais encontrados nos sítios arqueológicos. 
Estas leituras etnológicas ganharam outra dimensão quando realizei pesquisas arqueológicas na região de Santa Maria e de São Pedro do Sul: confirmei que muitas histórias estão encobertas pela terra e contam capítulos fundamentais da caminhada da humanidade! Escavar e tocar numa cerâmica que está voltando à luz depois de mais de mil anos dormitando na terra traz uma forte sensação de que a vida está renascendo nos fragmentos coletados: o passado não foi apenas transitoriedade, mas, também um ato cultural de sentido.
Pesquisadores que tiveram contato direto com índios em seu cotidiano podem ter experimentado, como está expresso em vários textos antropológicos, esta sensação da vida que ficou preservada documentalmente frente ao genocídio que rondava a vida dos indígenas a partir do processo civilizatório europeu.
Um dos etnólogos que me despertaram o interesse era o alemão Curt Unckel (Iena, 1883- Alto Solimões, 1945) que veio ao Brasil em 1903. Sua trajetória de aventureiro que viajou milhares de quilômetros pelo interior do Brasil deixou um legado de defensor dos povos indígenas. Já em 1906 o seu nome é mudado para Curt Nimuendajú ("aquele que criou seu próprio lugar") quando morou com os Apapokuva-Guarani, em São Paulo. Em 1922, adotou a nacionalidade brasileira, mas, segundo ele, o preconceito por ser estrangeiro (alemão) o perseguiu até a sua morte. Conheceu muitos grupos indígenas e conseguiu a integração que lhe permitiu conhecer e partilhar da vida cotidiana material e espiritual: passou a vida na indigência financeira e suas expedições dependiam de financiamento de instituições alemãs ou norte-americanas. Em contrapartida, enviava coleções de peças das populações indígenas brasileiras para estes países– acervos que ainda existem e que foram pesquisados e transformados em artigos científicos.
Por mais de uma vez esteve entre a vida e a morte por adquirir doenças tropicais (malária etc) e ao se recuperar, voltava a organizar expedições para conhecer novas tribos ou revisitar as já contatadas. Ele ressaltou em seus escritos a desolação em ver a dizimação, por doenças, de indígenas que ele havia pesquisado, os quais, poucos anos depois estavam reduzidos a poucos integrantes. A marcha dos micro-organismos patológicos foi devastadora para muitos povos que desapareceram completamente após o contato com doenças que não tinham anticorpos para defesa. Nos últimos anos de vida, Nimuendajú estava fornecendo coleções para o Museu Nacional do Rio de Janeiro e com a sua morte, toda a sua vasta produção escrita, linguística, mapoteca e peças indígenas ficou com este Museu. Desta forma, uma pequena parte da preciosa história indígena brasileira ficou preservada! Será?
A tragédia do genocídio poderia ser repetida? A morte física não é a única possível, pois, ela pode ser replicada na morte da cultura material, aquela que deveria ser preservada enquanto patrimônio material/imaterial de populações do passado.
Ao ler a matéria do jornal “O Estado de São Paulo” do dia 20 de setembro de 2018 “Indígenas lamentam perda de documentos históricos em incêndio no Museu Nacional” lembrei do desconsolo de um integrante da tribo Tenetehára-Guajajara, o índio José Urutau: “é como um novo genocídio, como se eles tivessem assassinado mais uma vez todas estas comunidades indígenas. Era ali que se encontrava a nossa memória”. José estava pesquisando a herança de sua tribo no maior arquivo do planeta sobre a historicidade dos índios brasileiros (mais de quarenta mil artefatos de mais de 100 etnias).
O jornal “Estado de São Paulo” também reproduz a fala de Glicéria Jesus Silva, uma das atuais líderes dos tupinambás: "Aquele lugar era como uma memória, a memória de um computador que a qualquer momento, qualquer grupo étnico do meu povo poderia acessar para obter informações, para saber o que nós somos, para não nos sentirmos perdidos". Exatamente: os acervos guardam trajetórias de sociedades e são locais de produção e releitura de vida, que pode dar sentido ao presente...
Parte do trabalho da vida de Curt Nimuendajú queimou junto com milhões de outras peças do acervo do Museu Nacional! Sobreviveu aquilo que foi enviado para museus/universidades do exterior.
Pesadas polêmicas que ganharam fôlego nas décadas de 1930-40 de que as peças do patrimônio brasileiro não deveriam deixar o país e que ficariam seguras em nosso conjunto museológico, na atualidade, não passam de debates esquecidos no tempo: outros projetos culturais milionários relegaram esta modalidade de cultura material (os acervos diversos de nossa civilização) ao esquecimento e a desvalorização! Esqueceu-se que acervos são lugares de memória, de pesquisa, de construção do conhecimento, de reconstrução discursiva das memórias passadas, de construção de trajetórias civilizatórias que nos tornam humanos e não apenas itens a serem descartados na marcha insana rumo a um local obscuro do futuro!
O que estamos fazendo com os acervos materiais do passado?  Qual a relevância que damos para a preservação das memórias pretéritas e das nossas? O que vamos deixar de legado pedagógico real para as novas gerações? Na ausência de consciência preservacionista do legado do passado e do enfrentamento crítico no presente, o que podemos esperar de políticas de preservação efetivas no futuro?
  
Nimuendajú em 1943.


Mapa Etnográfico elaborado por Nimuendajú, 1908.
 Recomendo aos interessados o acesso ao amplo material da Biblioteca digital Curt Nimuendajú no endereço:  http://www.etnolinguistica.org


sexta-feira, 21 de setembro de 2018

LIVRO CARLOS SANTOS

       

          Em 2004, a pedido da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, elaborei um livro sobre o cidadão e político negro que deixou um grande legado de contribuição efetiva e seriedade à vida pública brasileira. O título da publicação é "Carlos Santos: trajetória biográfica". O operário da cidade do Rio Grande alcançou projeção nacional sem ter esquecido as raízes da negritude e sem ter deixado de defender em seus projetos os pescadores, agricultores e segmentos menos favorecidos que ele conviveu ao longo da vida.   

       Segue o link para acessar o livro que está na página da Assembléia Legislativa do RS:

COMPANHIA FRANCESA


Obras de construção dos Molhes da Barra. In: Lloyd. 


Há 110 anos a Companhia Francesa do Porto do Rio Grande estava assumindo o contrato para construção dos Molhes e do Porto Novo. A volumosa publicação do inglês Reginald Lloyd “Impressões do Brasil no século vinte: sua história, seu povo, comércio, indústrias e recursos” (Londres: Lloyds Greater Britain Publishing Company Ltd, 1913) dedica um capítulo ao Rio Grande do Sul e um dos destaques é a cidade do Rio Grande. O comércio de exportação e importação e o crescimento industrial estão interligados com o espaço portuário (do Porto Velho) em meio às expectativas pelo desenrolar das obras de construção do Porto Novo e dos Molhes da Barra. As obras da Companhia Francesa estavam em andamento e as perspectivas eram de que o acalentado sonho de segurança ao canal de acesso da Barra do Rio Grande finalmente seria realizado.
Para Reginald Lloyd a “Compagnie Française du Port de Rio Grande do Sul. O contrato para a construção do porto do Rio Grande do Sul foi primitivamente dado ao engenheiro americano E. Corthel, a 12 de setembro de 1906. A 9 de julho de 1908, foi pelo Governo Federal transferido este contrato a Compagnie Française du Port de Rio Grande. O capital desta empresa é constituído por 20 milhões de francos em ações ordinárias e 10 milhões de francos em ações preferenciais. A Companhia, devido à importância dos trabalhos a realizar, emitiu também uma série de obrigações, sendo que, devido a condições especiais do contrato, o juro e amortização desse empréstimo está garantido pelo poderoso grupo financeiro Sociéte Générale de Construction que é, ao mesmo tempo a principal empreiteira das obras: esta última, por sua vez, sub-empreitou os trabalhos a firma Enterprise Daydé et Pillé, Fougerolles Fréres et J. Groselier. Os trabalhos cuja responsabilidade por contrato assumiu a Compagnie du Port de Rio Grande, consistem em trabalhos na barra e trabalhos no porto propriamente dito. Os trabalhos a executar na barra consistem na construção de dois quebra-mares, revestimento dos bordos do Canal do Norte, de modo a terem eles estabilidade, e retenção, por meio de plantações de árvores, das areias, na costa leste do Canal do Norte. Os trabalhos a executar no porto consistem na dragagem dum canal de acesso entre o Canal do Norte e o porto, e dragagem do último; terraplanagem a noroeste e a este do porto, com material proveniente das dragagens; construção em alvenaria duma muralha a oeste do porto, de modo a aí poderem atracar navios do calado de 10 metros; aparelhamento deste cais com armazéns, linhas férreas, guindastes, etc; construção duma muralha a leste do canal de acesso, para proteger o porto contra a invasão das areias; outros trabalhos anexos, tais como balizagens, iluminação, abastecimento de água, calçamento do cais e anexos, construção de depósito frigorífico, depósito para inflamáveis, edifício para correio e telégrafo, doca fixa ou flutuante, conservação do canal da barra, etc. As obras vão já bem adiantadas e para a sua rápida execução dispõe a Companhia de instalações completas. A pedra é fornecida por duas pedreiras, Monte Bonito e Capão do Leão. Os processos empregados para a extração da pedra são dos mais modernos. Possui a Companhia, em torno de cada pedreira, verdadeiras vilas operárias, com uma população de 3.000 almas”.

Vista da cidade do Rio Grande: Praça Tamandaré, Prédio da Câmara do Comércio e Porto Velho do Rio Grande. In: Lloyd, 1913. 


quarta-feira, 19 de setembro de 2018

TERRA DE GIGANTES


         

       No dia 22 de setembro de 1968 foi exibido nos Estados Unidos (pela Rede ABC) o primeiro episódio da série Terra de Gigantes (produção da 20th Century Fox Television e Irwin Allen Production). Até 22 de março de 1970 foram 51 episódios de 60 minutos cada ao longo de duas temporadas. Foi à série mais cara até então produzida custando duzentos e cinquenta mil dólares cada episódio.
O criador era Irwin Allen que já havia produzido clássicos da ficção que animavam as tardes juvenis: Viagem ao Fundo do Mar, Túnel do Tempo e Perdidos no Espaço. Viagens espaciais, no tempo e nas profundezas do Oceano, permeadas por muita criatividade, era a filosofia de trabalho de Allen. Em Terra de Gigantes (Land of the Giants) a viagem se faz numa dobra do tempo para outro planeta e recorrendo ao efeito Gulliver: a contraposição gigantes e pequeninos. A “Liliput” não tem o ar aristocrático do Antigo Regime, mas é uma grande metrópole com um arrastar de gigantes tomados de uma curiosidade mórbida de agarrar ou conhecer os pequenos invasores.
Para contextualizar o enredo, a série tem início em 12 de junho de 1983 (15 anos à frente de 1968 num otimismo excessivo de que a tecnologia astronáutica avançaria muito em curto período!) e uma nave espacial de propulsão atômica (a Spindrift) faz o voo entre Los Angeles e Londres entrando numa misteriosa névoa que transporta a nave para um “planeta Terra” alternativo povoado por gigantes que viviam na tecnologia dos anos 1960 (inferior ao Spindrift de 1983).  Após a queda, se descobre que a cidade não é Londres e que os animais e os gigantes podem ser muito perigosos ou até fatais. A fuga é constante e as tentativas em arrumar a nave se repetem nos episódios que trazem detalhes das casas, móveis, aparelhos e artefatos usados pelos gigantes. A produção de objetos e cenários de grande porte, buscando um efeito visual de realidade. elevou os custos da produção a valores impensáveis para a época. As cenas com estes objetos (como uma máquina fotográfica) ou com animais (como a memorável cena com um gato) foram pioneiras em efeitos especiais sofisticados sem o artificialismo do excesso de computação gráfica.

O pequeno grupo que se une para sobreviver era constituído pelo piloto, copiloto e pela comissária de bordo. Os passageiros são poucos: um engenheiro milionário, uma atriz decadente, um menino com o seu inseparável cachorro e um suposto militar (uma espécie de Dr. Smith de Perdidos no Espaço) que de fato é um vigarista que utiliza todos os golpes baixos para tentar fugir ou salvar-se. A maioria dos gigantes são anônimos com exceção ao inspetor Kobick (chefe de uma polícia política) ao qual é dado um grande destaque pela perseguição que ele move aos pequeninos que poderiam ser uma ameaça a ordem autoritária constituída. É feito referencia a gigantes dissidentes que tentam desestabilizar o governo e que são perseguidos pela polícia política em possível referencia ao bloco soviético.

Em 1969 a série foi transmitida no Brasil pela TV Record sendo a partir de 1974 exibida na Rede Globo. 50 anos após o seu lançamento, a qualidade do projeto Terra de Gigantes merece ser revisitado ou conhecido. Em especial, a nostalgia remete aos anos 1960 permeados de contracultura de um lado e de crenças no progresso científico que remeteria o homo sapiens para viagens interplanetárias: a série identifica a rápida expansão da fronteira dos conhecimentos das ciências exatas, mas, identifica os Gigantes com a repressão e a curiosidade mórbida/sadismo projetando neles o “humano demasiado humano” dos pequeninos.


Publicação da EBAL de 1972 com adaptação para os Quadrinhos da série Terra de Gigantes. 

Na série hiper da EBAL (publicava HQ de Jornada nas Estrelas, dos 16 números, 4 foram dedicados a Terra de Gigantes. Acervo: guiadosquadrinhos.com 

BENTO GONÇALVES E TEIXEIRA LOPES


Teixeira Lopes In: http://memoriasgaiensesbibliotecadegaia.blogspot.com


O artigo “Teixeira Lopes e a Construção de um Herói Brasileiro” publicado por José Francisco Alves na revista “Convocarte – Revista de Ciências da Arte” (Lisboa-n.3, 2016) tem por foco um monumento que há 109 anos se destaca na paisagem urbana de Rio Grande. Trechos do artigo foram reproduzidos, sendo enfatizado especialmente, alguns aspectos da importância de Bento Gonçalves, do escultor português e da monumentalidade da obra. 

O escultor António Teixeira Lopes (Vila Nova de Gaia, 1866-1942), foi um dos mais destacados artistas portugueses. Manteve ateliê na França, mas, atuou especialmente em sua cidade natal Vila Nova de Gaia: este ateliê foi uma verdadeira escola artística portuguesa. Em relação ao Brasil, Teixeira Lopes é o autor das portas da igreja da Candelária (RJ, 1901) e do monumento ao General Bento Gonçalves da Silva em Rio Grande. O monumento buscou perpetuar a memória da Revolução Farroupilha e do primeiro presidente da República Rio-Grandense. Esta experiência pioneira republicana foi resgatada pelo Partido Republicano Rio-Grandense (fundado em 1882) e com a chegada ao poder em 1889, foi inserido um artigo na Constituição republicana de 1891 com o seguinte teor: “Art. 8° - Será elevado, em uma das praças públicas do Estado, um monumento à memória de Bento Gonçalves e de seus gloriosos companheiros da cruzada de 1835, logo que os cofres públicos o permitam, se antes a iniciativa particular não houver satisfeito esse patriótico tributo”. 
Em 1900, Rio Grande recebe a doação, por parte da família, dos restos mortais de Bento Gonçalves os quais ficam em exposição no prédio da Intendência Municipal. É criada uma Comissão que arrecada fundos para a construção do monumento-túmulo e organiza um concurso internacional para escolha do projeto. Conforme Alves “concursos internacionais para monumentos são bem raros no Brasil, principalmente por volta de 1900, devido aos custos e dimensão institucional do processo. O que se dirá quando realizado numa cidade como Rio Grande, longe inclusive da capital do estado, por si só um estado distante do “centro do país”. O secretário da Comissão era Alfredo Ferreira Rodrigues o primeiro intelectual a preservar e divulgar na imprensa e em seu Almanaque a memória documental dos farroupilhas.
Após atrasos significativos no andamento da obra, “os bronzes foram fundidos em 1908, em Vila Nova de Gaia, na Fundição de Bronzes Adelino de Sá Lemos. Enquanto aguardava o embarque para o Brasil, a estátua de Bento Gonçalves foi admirada pela família real. Em visita ao ateliê do artista, em Gaia, a Rainha Mãe D. Amélia, Teixeira Lopes, seu pai o escultor José Joaquim Teixeira Lopes, além de uma extensa comitiva, posaram para uma fotografia junto à “estátua épica do general Bento Gonçalves, admirável pela poderosa expressão, pela atitude, pela vida que tumultuosamente palpita, estremece nesse corpo”. Dois dias depois, o Rei D. Manuel II também esteve no ateliê. Em “frente a monumental estátua do general”, teria ele observado: “Gloriosa atitude!”
A estátua do general “é o cume, o centro de convergência do monumento, modelada e fundida em bronze, com cerca de três metros de altura. Mostra o General Bento Gonçalves em atitude de quem comanda um encarecido combate. Com a mão esquerda segura a bandeira da República Rio-Grandense. Com a direita, a espada em riste. As suas feições o mostram a bradar um grito de guerra, um aspecto (boca aberta) que muito incomodou a comissão do monumento, chegando ao ponto de solicitar a modificação da estátua pelo artista, o qual tomou a sugestão como uma censura. Na parte inferior frontal, assentados sobre o embasamento e o chanfrado, estão dois vigorosos leões de bronze em combate, um dominando o outro. Representam o Império Brasileiro e os revolucionários farroupilhas. Abaixo dos leões, no embasamento, um pequeno elemento em bronze: uma palma e uma coroa de folhas”.
José Francisco Alves conclui que o monumento, foi inaugurado no centro da Praça Tamandaré somente em “20 de setembro de 1909, exatos 74 anos após o início da Guerra dos Farrapos. A cidade de Rio Grande também passou a contar com o mais grandioso monumento do Rio Grande do Sul, superando a estátua de mármore do Conde de Porto Alegre (1883), na capital Porto Alegre, a qual havia sido erigida justamente ao destacado militar que combateu, entre outros, os próprios farroupilhas”. 

Rainha de Portugal D. Amélia em visita ao ateliê de Teixeira Lopes (1908). Acervo: Biblioteca de Gaia.



UMA FOTOGRAFIA


     
Fotógrafo Lunara, 1910. Acervo: Instituto Moreira Salles. 
   Uma fotografia pode oferecer muitas leituras de seu conteúdo estético, social, político, comportamental etc. Muitas histórias podem ser construídas a partir da observação de uma fotografia! Sempre que olhei para a fotografia reproduzida nesta página eu vislumbrava uma perspectiva social de prováveis dois ex-escravos morando na área rural de Porto Alegre em condições precárias de existência material. Os pés descalços do senhor, seu olhar harmonizado com o pedaço de universo que ele construiu, expressa cansaço e uma afetuosidade tênue frente às feridas deixadas pelo escravismo.
  Uma interpretação diferenciada foi proposta por Elvia Bezerra (coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles) que buscou o “enamoramento” na cena e vislumbrou uma estética mais intimista e muito rara nas fotografias brasileiras até as primeiras décadas do século XX: a afetuosidade. A fealdade da pobreza se converte numa intimidade real ou construída pelo fotógrafo, de intencionalidade ou espontaneidade, permitindo uma livre interpretação por parte dos leitores.
  Vou partilhar as reflexões de Elvia Bezerra reproduzindo sua instigante matéria que foi publicada no site http://brasilianafotografica.bn.br (publicada em 12-06-2018). O autor da fotografia é o gaúcho Luiz do Nascimento Ramos, conhecido como Lunara (1864 – 1937). O registro faz parte do álbum Vistas de Porto Alegre – Photographias artísticas – Editores Krahe & Cia. Porto Alegre, que traz outras 18 fotografias de Lunara (por volta de 1910.)

   “É sabido que Lunara, montava e dirigia cenas para fotos que fez na periferia da capital gaúcha, nas primeiras décadas do século XX. Não se pode, no entanto, saber o que esse método de trabalho foi capaz de desencadear nos coadjuvantes da composição. Como terá o casal, aqui retratado, voltado à intimidade da sua tosca torre de Pisa? Terá a senhora repetido o “nhô João, deixa disso!”, como informa a legenda, quando ficaram a sós? Seu recato terá se mantido dentro de quatro paredes? Terão os dois sido os mesmos? Haverá o clique do fotógrafo amador, nascido em Porto Alegre, em 1864, lhes restituído o gosto antigo do namoro?
    Afinal, não é preciso ser nenhum André Gorz, filósofo austro-francês que só se deu conta da dimensão de seu amor pela mulher, com quem era casado havia décadas, depois que ela passou a sofrer de doenças incuráveis: “Já faz 58 anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca”, escreveu ele em Carta a D., documento de amor em que tornou pública a importância de Dorine na sua vida, confessando, aos 82 anos, que a amava e a desejava como na juventude.
    Mas não é preciso tal situação dramática para acelerar um coração que bate devagar. Um clique precedido de uma arrumação de cena romantizada pode contagiar os personagens e fazê-los namorados de novo, ainda que seja por um dia.
    Certamente não foi apenas a arquitetura dessa casa pobre que chamou a atenção de Lunara na cena registrada em um dos fins de semana em que saía para fotografar– consta que exercia o ofício especialmente aos domingos. A imagem de declínio, realçado pelo teto de telha vã da construção de taipa, se prolonga na do casal maduro, sentado entre a lateral e a frente da casa. A porta, inclinada para a esquerda, segue o movimento do telhado, deixando-se ver ladeada também pela irregularidade das varas de bambu, recheadas de barro. A decadência aqui é questionável.
   A assimetria dos elementos da imagem resulta em harmonia: o telhado, decaído para a esquerda, compõe o fundo em que sobressai o casal de meia-idade, naquela fase da vida em que, como no poema de Manuel Bandeira, “o fogo já era frio”. Contrariamente à ideia de fragilidade que pode passar a milenar técnica construtiva da casa de taipa, ou pau a pique, como também é conhecida, o método está entre os mais resistentes. Na foto de Lunara, a solidez da construção é comprometida por um provável erro no momento da fixação da madeira no solo, talvez a causa do tombamento para o lado esquerdo. Ainda assim, não há dúvida com relação à firmeza que a imagem inspira.
    Faz todo o sentido saber que Lunara fotografava nos fins de semana. Só assim poderia fixar um momento de ternura domingueira, ao ar livre, de um casal cuja labuta diária o impediria de vivenciá-la em outro dia que não fosse este, consagrado ao descanso e à oração.
    Se atendem ao pedido de posar, é o homem quem incorpora o papel do cavalheiro, em atitude de devoção à dama. A figura dele é enternecida, mas sólida: pés paralelos fincados na terra, posta-se de frente para a companheira, que, sem encará-lo, coloca-se de lado e olha na direção oposta. Digno, ele segura as mãos da mulher; ela não as entrega. Recua, numa espécie de rejeição não totalmente desprovida de dengo, quem sabe provocada pelo desconforto da manifestação de carinho a céu aberto.
    A fachada da casa é dignificada pelo chapéu que encima a porta, indicando que, ao deixá-lo à entrada, é com reverência que nhô João entra na sua moradia. A simplicidade do detalhe está longe da ironia presente no conto “Capítulo dos chapéus”, de Machado de Assis, em que o bacharel Conrado Seabra é instado pela mulher, Mariana, a trocar o chapéu por um mais moderno. Machado, impiedoso, começa por dizer que “o princípio metafísico é este: ‒ o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado ab æterno; ninguém o pode trocar sem mutilação”. Ao longo da narrativa, entretanto, sem poupar a mulher de humilhação, conclui com esta ironia arrasadora: “Mas você reflita consigo, e verá… Quem sabe? Pode ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento do homem, mas o homem do chapéu…”

    A atmosfera pacífica da foto de Lunara opõe-se à tensão do conto de Machado. Na cena franciscanamente endomingada do gaúcho, reina a serenidade; quase se ouve “o silêncio que tem voz”. E o chapéu de palha, no alto, longe de ser objeto de discórdia ou de prestígio social, como acontece no conto, reafirma seu inquestionável caráter de dignidade na frente da casa. De resto, fica aqui a deixa para que, ainda recorrendo ao sombrero, nhô João encante sua mulher com os versos de Federico García Lorca, que, em “Por tu amor me duele el aire”, eleva o adereço ao patamar do ar e do coração, todos passíveis de serem sacrificados por amor:
“¡Ay, qué trabajo
me cuesta quererte como te quiero!
Por tu amor me duele el aire,
el corazón
y el sombrero”.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

TRAGÉDIA ANUNCIADA


       
Museu Nacional do Rio de Janeiro. Noite de 02-09-2018. Foto: Reuters/Ricardo Moraes.

        Esta semana, na aula da disciplina de “História e Terror”, comentei que uma das maiores coleções de múmias/peças egípcias do planeta fazia parte do acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro. O Museu está completando 200 anos e um grande show pirotécnico foi promovido para comemorar a data: o incêndio que o está devastando neste momento! A triste noite de 2 de setembro de 2018 não deveria ser esquecida...
O prédio do Museu Nacional e o acervo são partes fundamentais da memória histórica brasileira. Quantas peças foram e estão sendo destruídas e quantas sobreviverão a esta tragédia anunciada?  Remanescentes da cultura material ameríndia, brasileira, europeia, africana, asiática etc podem ter sido aniquiladas pelo descaso com a trajetória histórica de inúmeras sociedades.
Entre tantos acervos e instituições que vegetam no país outra, também na cidade do Rio de Janeiro, está com uma morte anunciada: a Biblioteca Nacional, o grande depositário da cultura escrita neste país. O prédio apresenta inúmeros problemas de manutenção e também não tem o alvará de prevenção contra incêndio.
Assassinar as instituições de preservação cultural representa um genocídio das gerações passadas que lutaram para edificar estes espaços. Temos a obrigação de preservar suas memórias, de estudar os documentos por eles produzidos para que novas leituras críticas do passado constituam referenciais civilizatórios que alimentem as gerações no presente. A perda dos referenciais traz a encefalia e obscurece um futuro saudável e de superação dos desafios hercúleos que hoje se erguem.
Outras instituições também pedem socorro, como é o caso da Biblioteca Rio-Grandense: porém, suas vozes são tênues e não parecem ser escutadas...