Uma
fotografia pode oferecer muitas leituras de seu conteúdo estético, social, político,
comportamental etc. Muitas histórias podem ser construídas a partir da
observação de uma fotografia! Sempre que olhei para a fotografia reproduzida nesta
página eu vislumbrava uma perspectiva social de prováveis dois ex-escravos
morando na área rural de Porto Alegre em condições precárias de existência
material. Os pés descalços do senhor, seu olhar harmonizado com o pedaço de
universo que ele construiu, expressa cansaço e uma afetuosidade tênue frente às
feridas deixadas pelo escravismo.
Uma
interpretação diferenciada foi proposta por Elvia Bezerra (coordenadora de
Literatura do Instituto Moreira Salles) que buscou o “enamoramento” na cena e
vislumbrou uma estética mais intimista e muito rara nas fotografias brasileiras
até as primeiras décadas do século XX: a afetuosidade. A fealdade da pobreza se
converte numa intimidade real ou construída pelo fotógrafo, de intencionalidade
ou espontaneidade, permitindo uma livre interpretação por parte dos leitores.
Vou
partilhar as reflexões de Elvia Bezerra reproduzindo sua instigante matéria que
foi publicada no site http://brasilianafotografica.bn.br
(publicada em 12-06-2018). O autor da fotografia é o gaúcho Luiz do Nascimento
Ramos, conhecido como Lunara (1864 – 1937). O registro faz parte do álbum
Vistas de Porto Alegre – Photographias artísticas – Editores Krahe & Cia.
Porto Alegre, que traz outras 18 fotografias de Lunara (por volta de 1910.)
“É
sabido que Lunara, montava e dirigia cenas para fotos que fez na periferia da
capital gaúcha, nas primeiras décadas do século XX. Não se pode, no entanto,
saber o que esse método de trabalho foi capaz de desencadear nos coadjuvantes
da composição. Como terá o casal, aqui retratado, voltado à intimidade da sua
tosca torre de Pisa? Terá a senhora repetido o “nhô João, deixa disso!”, como
informa a legenda, quando ficaram a sós? Seu recato terá se mantido dentro de
quatro paredes? Terão os dois sido os mesmos? Haverá o clique do fotógrafo
amador, nascido em Porto Alegre, em 1864, lhes restituído o gosto antigo do
namoro?
Afinal,
não é preciso ser nenhum André Gorz, filósofo austro-francês que só se deu
conta da dimensão de seu amor pela mulher, com quem era casado havia décadas,
depois que ela passou a sofrer de doenças incuráveis: “Já faz 58 anos que
vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca”, escreveu ele em Carta a D.,
documento de amor em que tornou pública a importância de Dorine na sua vida,
confessando, aos 82 anos, que a amava e a desejava como na juventude.
Mas
não é preciso tal situação dramática para acelerar um coração que bate devagar.
Um clique precedido de uma arrumação de cena romantizada pode contagiar os
personagens e fazê-los namorados de novo, ainda que seja por um dia.
Certamente
não foi apenas a arquitetura dessa casa pobre que chamou a atenção de Lunara na
cena registrada em um dos fins de semana em que saía para fotografar– consta
que exercia o ofício especialmente aos domingos. A imagem de declínio, realçado
pelo teto de telha vã da construção de taipa, se prolonga na do casal maduro,
sentado entre a lateral e a frente da casa. A porta, inclinada para a esquerda,
segue o movimento do telhado, deixando-se ver ladeada também pela
irregularidade das varas de bambu, recheadas de barro. A decadência aqui é
questionável.
A
assimetria dos elementos da imagem resulta em harmonia: o telhado, decaído para
a esquerda, compõe o fundo em que sobressai o casal de meia-idade, naquela fase
da vida em que, como no poema de Manuel Bandeira, “o fogo já era frio”.
Contrariamente à ideia de fragilidade que pode passar a milenar técnica
construtiva da casa de taipa, ou pau a pique, como também é conhecida, o método
está entre os mais resistentes. Na foto de Lunara, a solidez da construção é
comprometida por um provável erro no momento da fixação da madeira no solo,
talvez a causa do tombamento para o lado esquerdo. Ainda assim, não há dúvida
com relação à firmeza que a imagem inspira.
Faz
todo o sentido saber que Lunara fotografava nos fins de semana. Só assim
poderia fixar um momento de ternura domingueira, ao ar livre, de um casal cuja
labuta diária o impediria de vivenciá-la em outro dia que não fosse este,
consagrado ao descanso e à oração.
Se
atendem ao pedido de posar, é o homem quem incorpora o papel do cavalheiro, em
atitude de devoção à dama. A figura dele é enternecida, mas sólida: pés
paralelos fincados na terra, posta-se de frente para a companheira, que, sem
encará-lo, coloca-se de lado e olha na direção oposta. Digno, ele segura as
mãos da mulher; ela não as entrega. Recua, numa espécie de rejeição não
totalmente desprovida de dengo, quem sabe provocada pelo desconforto da
manifestação de carinho a céu aberto.
A
fachada da casa é dignificada pelo chapéu que encima a porta, indicando que, ao
deixá-lo à entrada, é com reverência que nhô João entra na sua moradia. A
simplicidade do detalhe está longe da ironia presente no conto “Capítulo dos
chapéus”, de Machado de Assis, em que o bacharel Conrado Seabra é instado pela
mulher, Mariana, a trocar o chapéu por um mais moderno. Machado, impiedoso,
começa por dizer que “o princípio metafísico é este: ‒ o chapéu é a integração
do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento decretado ab æterno;
ninguém o pode trocar sem mutilação”. Ao longo da narrativa, entretanto, sem
poupar a mulher de humilhação, conclui com esta ironia arrasadora: “Mas você
reflita consigo, e verá… Quem sabe? Pode ser até que nem mesmo o chapéu seja
complemento do homem, mas o homem do chapéu…”
A
atmosfera pacífica da foto de Lunara opõe-se à tensão do conto de Machado. Na
cena franciscanamente endomingada do gaúcho, reina a serenidade; quase se ouve
“o silêncio que tem voz”. E o chapéu de palha, no alto, longe de ser objeto de
discórdia ou de prestígio social, como acontece no conto, reafirma seu
inquestionável caráter de dignidade na frente da casa. De resto, fica aqui a
deixa para que, ainda recorrendo ao sombrero, nhô João encante sua mulher com
os versos de Federico García Lorca, que, em “Por tu amor me duele el aire”,
eleva o adereço ao patamar do ar e do coração, todos passíveis de serem
sacrificados por amor:
“¡Ay,
qué trabajo
me
cuesta quererte como te quiero!
Por
tu amor me duele el aire,
el
corazón
y el
sombrero”.
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