Quando
fui estudante de Graduação em História na Universidade Federal de Santa Maria (em priscas
eras do século passado) fiz a leitura de artigos de etnologia geral e do
Brasil. O tema povoamento da América e do território brasileiro era fascinante
e a diversidade de povos indígenas do litoral, região amazônica e hinterland provocava
muitas interrogações sobre os contatos com as fronteiras culturais da região mesoamericana
e caribenha (Maias...) e a cordilheira dos Andes (Incas...).
As raízes do povoamento que recuava a mais de
dez mil anos e as adaptações espaço-temporais dos bandos de caçadores, tribos,
horticultores de floresta tropical e subtropical e chefias (como as sociedades
Marajoara e Santarém), eram algumas das tantas temáticas extremamente ricas que
se escondiam na vida real das populações ameríndias e que foram preservadas
parcialmente na documentação histórica e etnográfica e nos vestígios materiais encontrados
nos sítios arqueológicos.
Estas leituras etnológicas ganharam outra
dimensão quando realizei pesquisas arqueológicas na região de Santa Maria e de
São Pedro do Sul: confirmei que muitas histórias estão encobertas pela terra e
contam capítulos fundamentais da caminhada da humanidade! Escavar e tocar numa
cerâmica que está voltando à luz depois de mais de mil anos dormitando na terra
traz uma forte sensação de que a vida está renascendo nos fragmentos coletados:
o passado não foi apenas transitoriedade, mas, também um ato cultural de
sentido.
Pesquisadores que tiveram contato direto com
índios em seu cotidiano podem ter experimentado, como está expresso em vários
textos antropológicos, esta sensação da vida que ficou preservada documentalmente
frente ao genocídio que rondava a vida dos indígenas a partir do processo
civilizatório europeu.
Um dos etnólogos que me despertaram o
interesse era o alemão Curt Unckel (Iena, 1883- Alto Solimões, 1945) que veio
ao Brasil em 1903. Sua trajetória de aventureiro que viajou milhares de quilômetros
pelo interior do Brasil deixou um legado de defensor dos povos indígenas. Já em
1906 o seu nome é mudado para Curt Nimuendajú ("aquele que criou seu
próprio lugar") quando morou com os Apapokuva-Guarani, em São Paulo. Em
1922, adotou a nacionalidade brasileira, mas, segundo ele, o preconceito por
ser estrangeiro (alemão) o perseguiu até a sua morte. Conheceu muitos grupos
indígenas e conseguiu a integração que lhe permitiu conhecer e partilhar da
vida cotidiana material e espiritual: passou a vida na indigência financeira e
suas expedições dependiam de financiamento de instituições alemãs ou
norte-americanas. Em contrapartida, enviava coleções de peças das populações
indígenas brasileiras para estes países– acervos que ainda existem e que foram
pesquisados e transformados em artigos científicos.
Por mais de uma vez esteve entre a vida e a
morte por adquirir doenças tropicais (malária etc) e ao se recuperar, voltava a
organizar expedições para conhecer novas tribos ou revisitar as já contatadas. Ele
ressaltou em seus escritos a desolação em ver a dizimação, por doenças, de
indígenas que ele havia pesquisado, os quais, poucos anos depois estavam
reduzidos a poucos integrantes. A marcha dos micro-organismos patológicos foi
devastadora para muitos povos que desapareceram completamente após o contato
com doenças que não tinham anticorpos para defesa. Nos últimos anos de vida,
Nimuendajú estava fornecendo coleções para o Museu Nacional do Rio de Janeiro e
com a sua morte, toda a sua vasta produção escrita, linguística, mapoteca e
peças indígenas ficou com este Museu. Desta forma, uma pequena parte da
preciosa história indígena brasileira ficou preservada! Será?
A tragédia do genocídio poderia ser repetida?
A morte física não é a única possível, pois, ela pode ser replicada na morte da
cultura material, aquela que deveria ser preservada enquanto patrimônio
material/imaterial de populações do passado.
Ao ler a matéria do jornal “O Estado de São
Paulo” do dia 20 de setembro de 2018 “Indígenas lamentam perda de documentos
históricos em incêndio no Museu Nacional” lembrei do desconsolo de um
integrante da tribo Tenetehára-Guajajara, o índio José Urutau: “é como um novo
genocídio, como se eles tivessem assassinado mais uma vez todas estas
comunidades indígenas. Era ali que se encontrava a nossa memória”. José estava
pesquisando a herança de sua tribo no maior arquivo do planeta sobre a
historicidade dos índios brasileiros (mais de quarenta mil artefatos de mais de
100 etnias).
O jornal “Estado de São Paulo” também
reproduz a fala de Glicéria Jesus Silva, uma das atuais líderes dos tupinambás:
"Aquele lugar era como uma memória, a memória de um computador que a
qualquer momento, qualquer grupo étnico do meu povo poderia acessar para obter
informações, para saber o que nós somos, para não nos sentirmos perdidos".
Exatamente: os acervos guardam trajetórias de sociedades e são locais de
produção e releitura de vida, que pode dar sentido ao presente...
Parte do trabalho da vida de Curt Nimuendajú
queimou junto com milhões de outras peças do acervo do Museu Nacional! Sobreviveu
aquilo que foi enviado para museus/universidades do exterior.
Pesadas polêmicas que ganharam fôlego nas
décadas de 1930-40 de que as peças do patrimônio brasileiro não deveriam deixar
o país e que ficariam seguras em nosso conjunto museológico, na atualidade, não
passam de debates esquecidos no tempo: outros projetos culturais milionários relegaram
esta modalidade de cultura material (os acervos diversos de nossa civilização) ao
esquecimento e a desvalorização! Esqueceu-se que acervos são lugares de
memória, de pesquisa, de construção do conhecimento, de reconstrução discursiva
das memórias passadas, de construção de trajetórias civilizatórias que nos
tornam humanos e não apenas itens a serem descartados na marcha insana rumo a
um local obscuro do futuro!
O que estamos fazendo com os acervos
materiais do passado? Qual a relevância
que damos para a preservação das memórias pretéritas e das nossas? O que vamos
deixar de legado pedagógico real para as novas gerações? Na ausência de
consciência preservacionista do legado do passado e do enfrentamento crítico no
presente, o que podemos esperar de políticas de preservação efetivas no futuro?
Nimuendajú em 1943. |
Mapa Etnográfico elaborado por Nimuendajú, 1908. |
Recomendo aos interessados o acesso ao amplo material da Biblioteca digital Curt Nimuendajú no endereço: http://www.etnolinguistica.org
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