Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

NIMUENDAJÚ E O MUSEU NACIONAL


         


       Quando fui estudante de Graduação em História na Universidade Federal de Santa Maria (em priscas eras do século passado) fiz a leitura de artigos de etnologia geral e do Brasil. O tema povoamento da América e do território brasileiro era fascinante e a diversidade de povos indígenas do litoral, região amazônica e hinterland provocava muitas interrogações sobre os contatos com as fronteiras culturais da região mesoamericana e caribenha (Maias...) e a cordilheira dos Andes (Incas...).
As raízes do povoamento que recuava a mais de dez mil anos e as adaptações espaço-temporais dos bandos de caçadores, tribos, horticultores de floresta tropical e subtropical e chefias (como as sociedades Marajoara e Santarém), eram algumas das tantas temáticas extremamente ricas que se escondiam na vida real das populações ameríndias e que foram preservadas parcialmente na documentação histórica e etnográfica e nos vestígios materiais encontrados nos sítios arqueológicos. 
Estas leituras etnológicas ganharam outra dimensão quando realizei pesquisas arqueológicas na região de Santa Maria e de São Pedro do Sul: confirmei que muitas histórias estão encobertas pela terra e contam capítulos fundamentais da caminhada da humanidade! Escavar e tocar numa cerâmica que está voltando à luz depois de mais de mil anos dormitando na terra traz uma forte sensação de que a vida está renascendo nos fragmentos coletados: o passado não foi apenas transitoriedade, mas, também um ato cultural de sentido.
Pesquisadores que tiveram contato direto com índios em seu cotidiano podem ter experimentado, como está expresso em vários textos antropológicos, esta sensação da vida que ficou preservada documentalmente frente ao genocídio que rondava a vida dos indígenas a partir do processo civilizatório europeu.
Um dos etnólogos que me despertaram o interesse era o alemão Curt Unckel (Iena, 1883- Alto Solimões, 1945) que veio ao Brasil em 1903. Sua trajetória de aventureiro que viajou milhares de quilômetros pelo interior do Brasil deixou um legado de defensor dos povos indígenas. Já em 1906 o seu nome é mudado para Curt Nimuendajú ("aquele que criou seu próprio lugar") quando morou com os Apapokuva-Guarani, em São Paulo. Em 1922, adotou a nacionalidade brasileira, mas, segundo ele, o preconceito por ser estrangeiro (alemão) o perseguiu até a sua morte. Conheceu muitos grupos indígenas e conseguiu a integração que lhe permitiu conhecer e partilhar da vida cotidiana material e espiritual: passou a vida na indigência financeira e suas expedições dependiam de financiamento de instituições alemãs ou norte-americanas. Em contrapartida, enviava coleções de peças das populações indígenas brasileiras para estes países– acervos que ainda existem e que foram pesquisados e transformados em artigos científicos.
Por mais de uma vez esteve entre a vida e a morte por adquirir doenças tropicais (malária etc) e ao se recuperar, voltava a organizar expedições para conhecer novas tribos ou revisitar as já contatadas. Ele ressaltou em seus escritos a desolação em ver a dizimação, por doenças, de indígenas que ele havia pesquisado, os quais, poucos anos depois estavam reduzidos a poucos integrantes. A marcha dos micro-organismos patológicos foi devastadora para muitos povos que desapareceram completamente após o contato com doenças que não tinham anticorpos para defesa. Nos últimos anos de vida, Nimuendajú estava fornecendo coleções para o Museu Nacional do Rio de Janeiro e com a sua morte, toda a sua vasta produção escrita, linguística, mapoteca e peças indígenas ficou com este Museu. Desta forma, uma pequena parte da preciosa história indígena brasileira ficou preservada! Será?
A tragédia do genocídio poderia ser repetida? A morte física não é a única possível, pois, ela pode ser replicada na morte da cultura material, aquela que deveria ser preservada enquanto patrimônio material/imaterial de populações do passado.
Ao ler a matéria do jornal “O Estado de São Paulo” do dia 20 de setembro de 2018 “Indígenas lamentam perda de documentos históricos em incêndio no Museu Nacional” lembrei do desconsolo de um integrante da tribo Tenetehára-Guajajara, o índio José Urutau: “é como um novo genocídio, como se eles tivessem assassinado mais uma vez todas estas comunidades indígenas. Era ali que se encontrava a nossa memória”. José estava pesquisando a herança de sua tribo no maior arquivo do planeta sobre a historicidade dos índios brasileiros (mais de quarenta mil artefatos de mais de 100 etnias).
O jornal “Estado de São Paulo” também reproduz a fala de Glicéria Jesus Silva, uma das atuais líderes dos tupinambás: "Aquele lugar era como uma memória, a memória de um computador que a qualquer momento, qualquer grupo étnico do meu povo poderia acessar para obter informações, para saber o que nós somos, para não nos sentirmos perdidos". Exatamente: os acervos guardam trajetórias de sociedades e são locais de produção e releitura de vida, que pode dar sentido ao presente...
Parte do trabalho da vida de Curt Nimuendajú queimou junto com milhões de outras peças do acervo do Museu Nacional! Sobreviveu aquilo que foi enviado para museus/universidades do exterior.
Pesadas polêmicas que ganharam fôlego nas décadas de 1930-40 de que as peças do patrimônio brasileiro não deveriam deixar o país e que ficariam seguras em nosso conjunto museológico, na atualidade, não passam de debates esquecidos no tempo: outros projetos culturais milionários relegaram esta modalidade de cultura material (os acervos diversos de nossa civilização) ao esquecimento e a desvalorização! Esqueceu-se que acervos são lugares de memória, de pesquisa, de construção do conhecimento, de reconstrução discursiva das memórias passadas, de construção de trajetórias civilizatórias que nos tornam humanos e não apenas itens a serem descartados na marcha insana rumo a um local obscuro do futuro!
O que estamos fazendo com os acervos materiais do passado?  Qual a relevância que damos para a preservação das memórias pretéritas e das nossas? O que vamos deixar de legado pedagógico real para as novas gerações? Na ausência de consciência preservacionista do legado do passado e do enfrentamento crítico no presente, o que podemos esperar de políticas de preservação efetivas no futuro?
  
Nimuendajú em 1943.


Mapa Etnográfico elaborado por Nimuendajú, 1908.
 Recomendo aos interessados o acesso ao amplo material da Biblioteca digital Curt Nimuendajú no endereço:  http://www.etnolinguistica.org


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