Corrida de cavalos. Emeric Essex Vidal, Buenos Aires (1820). |
A seguir,
serão reproduzidas algumas passagens do naturalista francês que nos permite
reportar aos imaginários de dois séculos no passado:
►No meio
rural os poucos móveis ou objetos chamou por diversas vezes a atenção de
Saint-Hilaire. A restrita circulação monetária e de mercadorias voltadas ao
consumo e ao conforto ainda eram dominantes: “Nos arredores da estância de
Palmares, as pastagens são rentes ao chão, o que sempre acontece perto das
habitações, por que é principalmente aí que o gado pasta. As construções dessa
estância constam de algumas choupanas esparsas e da casa do proprietário,
coberta de telhas, porém pequena e de um só andar. O interior, quase
desguarnecido de móveis, não oferece comodidade. Dizia-nos, no entanto, o
proprietário que possuía de 10 a 12 mil reses, equivalente a um capital de
cerca de 250 mil francos, além de ser ao mesmo tempo senhor de muitos escravos
e ter grande número de cavalos. Parece, em geral, que esta capitania é muito
rica, mas não se encontra nem no mobiliário das casas nem no modo de viver dos
habitantes coisa alguma que denuncie tal riqueza”.
►A
documentação do século XVIII destacou os maus-tratos dedicados aos cavalos. O
animal era indispensável para o deslocamento diário e se tornou uma marca da
identidade do rio-grandense: o gaúcho a pé não é um gaúcho! (levando em
consideração a utilização do termo gaúcho sem o sentido pejorativo do gaúcho
histórico). “Nesta capitania, todos
possuem grande número de cavalos; mas não se lhes dispensa o menor cuidado; não
lhes dão milho e, nesta estação, com as pastagens secas, estes animais ficam
magros e fracos. Para a menor viagem é necessário, por isso, levar-se grande
número de cavalos de reserva; ou então, vai-se trocando de cavalo em cada
estância. Fazem pouco caso dos cavalos, não os prendem e os estancieiros só
conhecem os que lhes pertencem pela marca. (...) Havendo eu me perdido,
dirigi-me a uma casa que avistei ao longe; aí uma mulher trabalhava acocorada
sobre um pequeno estrado. Recebeu-me com delicadeza, mas sem levantar-se, e
deu-me um negro para me ensinar o caminho. Ao ficarmos sozinhos, apressou-se em
demonstrar sua admiração por ver-me a pé, pois nesta região, toda gente, mesmo
pobre, inclusive os escravos, não dão um passo sem ser a cavalo”.
►Castigos
físicos e insensibilidade foram elementos do cotidiano vivenciados pelo
naturalista francês. “Os brasileiros são, em geral, prestativos, mas o hábito
de castigar os escravos lhes entorpece a sensibilidade. Nesta capitania
acresce, ainda, outra modalidade cruel: a facilidade com que os habitantes
podem renovar seus cavalos os impede de se afeiçoarem a estes, podendo impunemente
tratá-los sem piedade alguma; vivem, por assim dizer, em matadouros; o sangue
dos animais corre incessantemente em torno deles e, desde a infância, se
acostumam ao espetáculo da morte e dos sofrimentos. Não é, pois, de estranhar
se eles forem, ainda, mais insensíveis que o resto de seus com patriotas.
Fala-se aqui das desgraças alheias com o mais inalterável sangue-frio. Conta-se
que um navio naufragou e a tripulação pereceu afogada, como se relatassem fatos
os mais desinteressantes”.
►Um médico francês
em Pelotas. “Dois franceses se estabeleceram em São Francisco de Paula.
Visitei-os. Um deles, M. T., é cirurgião gasconês, muito jovem ainda, meu
conhecido do Rio de Janeiro, onde me divertira pela sua vaidade. Após essa
época, conheceu o mundo, casou-se aqui, tornando-se mais sensato. Entretanto
notei-lhe ainda essa falta de prudência e esse espírito difamatório que os
franceses revelam muito, quando estão em país estrangeiro. Retratou-me
fielmente o povo desta região, sob certos aspectos, mas exagerou sob vários
outros. Relacionarei os traços coincidentes com as minhas próprias observações.
Os habitantes desta capitania são ricos e não ambicionam se não enriquecer
mais; sua fortuna, porém, pouco contribui para lhes tornar mais agradável a
existência; nutrem-se mal e não conhecem nenhum divertimento honesto. Os
instantes de lazer são dedicados aos jogos, ou a pequenas intrigas que uns
forjam contra os outros. A maioria é ignorante e sem educação; como não
conhecem nenhum princípio de honra e de moral, agem, via de regra, de má-fé em
seus negócios”.
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