Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

LITERATURA DE VIAGEM

Corrida de cavalos. Emeric Essex Vidal, Buenos Aires (1820).


      Frente à lacuna de publicações existente na historiografia do Rio Grande do Sul no século XIX, os viajantes europeus foram utilizados por intelectuais da segunda metade deste século como fonte para o estudo da História da Província do Rio Grande. Muitas interpretações desenvolvidas por esses cronistas foram incorporadas por intelectuais rio-grandenses sem uma perspectiva que considerasse a ausência do recurso ao documental e a não explicitação dos fundamentos metodológicos no campo do conhecimento histórico. Uma grande diversidade de temáticas por eles abordada são extremamente pertinentes para promovermos reflexões sobre cotidianos pouco documentados. Um destes viajantes que deixou uma obra de suma importância foi Auguste de Saint-Hilaire. O caráter de testemunho ocular, mesmo que repleto de suas visões de mundo nos permite aproximações com personagens, relações sociais e políticas, materialidade e espiritualidade das populações etc.
A seguir, serão reproduzidas algumas passagens do naturalista francês que nos permite reportar aos imaginários de dois séculos no passado:

►No meio rural os poucos móveis ou objetos chamou por diversas vezes a atenção de Saint-Hilaire. A restrita circulação monetária e de mercadorias voltadas ao consumo e ao conforto ainda eram dominantes: “Nos arredores da estância de Palmares, as pastagens são rentes ao chão, o que sempre acontece perto das habitações, por que é principalmente aí que o gado pasta. As construções dessa estância constam de algumas choupanas esparsas e da casa do proprietário, coberta de telhas, porém pequena e de um só andar. O interior, quase desguarnecido de móveis, não oferece comodidade. Dizia-nos, no entanto, o proprietário que possuía de 10 a 12 mil reses, equivalente a um capital de cerca de 250 mil francos, além de ser ao mesmo tempo senhor de muitos escravos e ter grande número de cavalos. Parece, em geral, que esta capitania é muito rica, mas não se encontra nem no mobiliário das casas nem no modo de viver dos habitantes coisa alguma que denuncie tal riqueza”.
►A documentação do século XVIII destacou os maus-tratos dedicados aos cavalos. O animal era indispensável para o deslocamento diário e se tornou uma marca da identidade do rio-grandense: o gaúcho a pé não é um gaúcho! (levando em consideração a utilização do termo gaúcho sem o sentido pejorativo do gaúcho histórico).  “Nesta capitania, todos possuem grande número de cavalos; mas não se lhes dispensa o menor cuidado; não lhes dão milho e, nesta estação, com as pastagens secas, estes animais ficam magros e fracos. Para a menor viagem é necessário, por isso, levar-se grande número de cavalos de reserva; ou então, vai-se trocando de cavalo em cada estância. Fazem pouco caso dos cavalos, não os prendem e os estancieiros só conhecem os que lhes pertencem pela marca. (...) Havendo eu me perdido, dirigi-me a uma casa que avistei ao longe; aí uma mulher trabalhava acocorada sobre um pequeno estrado. Recebeu-me com delicadeza, mas sem levantar-se, e deu-me um negro para me ensinar o caminho. Ao ficarmos sozinhos, apressou-se em demonstrar sua admiração por ver-me a pé, pois nesta região, toda gente, mesmo pobre, inclusive os escravos, não dão um passo sem ser a cavalo”.
►Castigos físicos e insensibilidade foram elementos do cotidiano vivenciados pelo naturalista francês. “Os brasileiros são, em geral, prestativos, mas o hábito de castigar os escravos lhes entorpece a sensibilidade. Nesta capitania acresce, ainda, outra modalidade cruel: a facilidade com que os habitantes podem renovar seus cavalos os impede de se afeiçoarem a estes, podendo impunemente tratá-los sem piedade alguma; vivem, por assim dizer, em matadouros; o sangue dos animais corre incessantemente em torno deles e, desde a infância, se acostumam ao espetáculo da morte e dos sofrimentos. Não é, pois, de estranhar se eles forem, ainda, mais insensíveis que o resto de seus com patriotas. Fala-se aqui das desgraças alheias com o mais inalterável sangue-frio. Conta-se que um navio naufragou e a tripulação pereceu afogada, como se relatassem fatos os mais desinteressantes”.
►Um médico francês em Pelotas. “Dois franceses se estabeleceram em São Francisco de Paula. Visitei-os. Um deles, M. T., é cirurgião gasconês, muito jovem ainda, meu conhecido do Rio de Janeiro, onde me divertira pela sua vaidade. Após essa época, conheceu o mundo, casou-se aqui, tornando-se mais sensato. Entretanto notei-lhe ainda essa falta de prudência e esse espírito difamatório que os franceses revelam muito, quando estão em país estrangeiro. Retratou-me fielmente o povo desta região, sob certos aspectos, mas exagerou sob vários outros. Relacionarei os traços coincidentes com as minhas próprias observações. Os habitantes desta capitania são ricos e não ambicionam se não enriquecer mais; sua fortuna, porém, pouco contribui para lhes tornar mais agradável a existência; nutrem-se mal e não conhecem nenhum divertimento honesto. Os instantes de lazer são dedicados aos jogos, ou a pequenas intrigas que uns forjam contra os outros. A maioria é ignorante e sem educação; como não conhecem nenhum princípio de honra e de moral, agem, via de regra, de má-fé em seus negócios”.


Nenhum comentário:

Postar um comentário