Um artefato que chama muito a atenção pública
é o zoólito de tubarão. Para os moradores da Planície Costeira, como é o caso
de Rio Grande, Pelotas, Capão do Leão etc, o tubarão é uma das representações
oceânicas mais fortes. A escultura em pedra também é um contundente recurso
“didático” para falarmos de populações indígenas milenares que também tiveram
suas vidas, assim como nós, inseridas na zona costeira e seus ambientes afins.
Os tubarões freqüentavam o litoral do Rio Grande do Sul e
faziam parte do cotidiano de populações que passaram a ocupar as praias do
litoral Norte e Médio nos últimos 4 mil anos. O zoólito em foco é uma peça
esculpida e polida em rocha que foi produzida por populações que edificaram os
Sambaquis (acumulo de restos de alimentação e de enterramentos que se
estenderam por milênios podendo apresentar entre 1 a 30 metros de altura). Porém,
foi encontrado centenas de quilômetros de seu local de origem em sítio
característico da Tradição Vieira. Como o zoólito viajou tanto?
O tubarão, além de sua beleza estética e
simbólica, é um artefato motivador para conhecer as populações que estiveram
relacionadas à sua elaboração e circulação. Para tanto, serão reproduzidos
alguns trechos do artigo de Manuel Gonzalez e Rafael Guedes Milheira
“Reinterpretando o zoomorfo de tubarão da coleção Carla Rosane Duarte Costa” (Cadernos
do LEPAARQ – Textos de Antropologia, Arqueologia e Patrimônio. UFPEL, 2005).
O tema me faz lembrar de conversas mantidas
na Furg com o saudoso prof. Pedro Mentz Ribeiro. Naquele período ele
participava das tratativas de tornar o “tubarão” um bem cultural de acesso
público e objeto de pesquisas o que se tornou uma realidade.
No artigo de Gonzalez e Milheira, os autores
historiam o achado e buscam interpretações para a circulação desta peça e
contatos mantidos por culturas indígenas muito tempo antes da descoberta do
Brasil.
“O zoólito de tubarão do presente estudo faz
parte da coleção lítica “Carla Rosane Duarte Costa” que recebeu número de
catálogo 008. A coleção se encontra sob a salvaguarda do Laboratório de Ensino
e Pesquisa em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Pelotas
(LEPAARQ – UFPel), sendo constituída por dois zoólitos (um tubarão e uma ave),
uma mó, dois bastonetes polidos, uma lâmina de machado polida e duas bolas de
boleadeira mamilar. Esses artefatos foram encontrados pelo pai da Sra. Carla
Rosane Duarte Costa há aproximadamente 25 anos (atualmente, 38 anos), no
município do Capão do Leão - RS, quando da retirada de areia, por sua empresa
de extração, com uma retro-escavadeira. Na ocasião, as peças da coleção foram
retiradas de uma única vez, estando provavelmente depositadas em contexto. Essa
coleção somente veio ao conhecimento público quando houve o processo de
formação do LEPAARQ – UFPel. Nesse momento, os arqueólogos Pedro Augusto Mentz
Ribeiro (FURG) e Fábio Vergara Cerqueira (UFPEL), entraram em contato com a Sra.
Carla Costa no sentido de conhecer as peças e conseqüentemente solicitar a
doação das mesmas, o que foi realizado imediatamente.
O zoólito tornou-se bastante conhecido dentro
e fora do meio acadêmico em função de sua monumentalidade. Tem sido foco de
estudo não só de arqueólogos em função de sua origem cultural, mas também de
artistas plásticos interessados no estilo formal da peça, pois a mesma
apresenta aspectos de simetria, volumetria e representação naturalista que
impressionam pela sua perfeição técnica.
Essa peça também tem sido alvo de estudo de
biólogos, já que incita a discussões não só com relação à questão homem/meio,
mas também a questões sobre a ocorrência da espécie numa região específica. O
artefato teve por matéria-prima o serpentinito que é uma rocha vulcânica, tem
um comprimento de 57,2 cm, largura de 22,3 cm, altura de 13,5 cm e um peso de 11.950
g. A peça é tão detalhada que foi possível identificar a espécie do tubarão:
família Lamnidae, gênero Carcharodon carcharias (tubarão branco).
O local onde
foi encontrada fica no município de Capão do Leão o qual se situa numa área de
fronteira geográfica, em que, por um lado, tem-se a borda oriental da Serra do
Sudeste e, por outro lado, a porção meridional da Laguna dos Patos. O local
onde foram coletadas as peças da coleção se localiza próximo à Lagoa do
Fragata, a qual deságua no canal São Gonçalo. Esse recurso hídrico é considerado
como de extrema importância no sistema lagunar, pois liga a referida Laguna à
lagoa Mirim, no território uruguaio. A porção meridional da Laguna dos Patos é
tratada pela literatura arqueológica como uma área de fronteiras culturais, em
que se articulam e interagem populações portadoras de grupos ceramistas
construtores de Cerritos (Tradição Vieira) com grupos referentes às culturas
Guarani (Tradição Guarani). Além disso, os sítios arqueológicos das culturas
sambaquieiras mais próximos se localizam na restinga da Laguna dos Patos
(litoral sul do Estado), há aproximadamente 120 Km do município do Capão do
Leão. Nesse sentido, a coleção de zoólitos e boleadeiras permite pensar, numa
perspectiva empiricista, na possibilidade de contatos interculturais, pois se
pensarmos em materiais diagnósticos, as esculturas são consideradas pela
literatura arqueológica, como pertencente às sociedades sambaquieiras, enquanto
que, as bolas de boleadeiras mamilares, por sua vez, são diagnósticos dos
grupos construtores de Cerritos. Ademais, a matéria-prima do zoólito que
representa o tubarão (serpentinito), segundo Pedro Ribeiro somente seria
encontrada a aproximadamente 150 Km, em direção ao interior da área onde foi
encontrada a coleção, sendo necessário um grande deslocamento para obtenção
desse recurso.
As trocas de materiais indicam, num primeiro
momento, a possibilidade de manutenção de relações interculturais numa
perspectiva de interação social. As sociedades Sambaquieiras e os construtores
de Cerritos devem ser pensados como grupos que se articulam em um espaço
determinado mantido por um período de longa duração. Para pensar nessa manutenção
territorial os autores destacam o conceito de ‘circunscrição territorial’ que
se refere aos espaços habitáveis e de acesso e controle aos recursos naturais.
Considerando que os grupos caçadores-coletores construtores dos Cerritos
mantinham um espaço territorial bem delimitado, percebe-se que, para a obtenção
dessa matéria prima, a sociedade sambaquieira teria que ter entrado em contato
com os construtores de Cerritos. Se articularmos essas três questões:
disponibilidade de matéria-prima, territorialidade e composição da coleção,
podemos pensar em questões como trocas de materiais entre grupos construtores
de Cerritos com grupos sambaquieiros que permeiam tanto a esfera das relações
econômicas como simbólicas.
A interação entre grupos se adequa ao modelo
de manutenção de fronteiras que define a laguna dos Patos como uma área de
fronteira entre os grupos da Tradição Vieira e Tradição Guarani. Nesse caso, a
ocorrência dessa coleção permite pensar nas populações sambaquieiras como um
terceiro elemento a ser inserido nesses fenômenos de fronteiras. As interações
de manutenção de fronteiras poderiam explicar a obtenção de matéria prima para
a confecção do zoólito. Na medida em que relações sociais se estabelecem,
pode-se esperar que não só ocorram relações na esfera imaterial, mas que haja
circulação de materiais que contribuam para a concretização das relações e
facilitem a subsistência dos grupos. Nesse sentido, a própria matéria prima
pode ter sido utilizada como um elemento de troca e que deve ter fortalecido a
interação e manutenção das relações, assim como outros elementos materiais e
imateriais a que não temos acesso”.
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Cartão-postal. Prefeitura Municipal de Pelotas. |
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Três ângulos do zoólito. Universidade Federal de Pelotas. |