*Capítulo
do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do
Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no século XIX". Rio Grande:
FURG, 1995.
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Pintura de Saint-Hilaire por Henrique Manzo. Museu Paulista da USP. |
Saint-Hilaire
Saint-Hilaire
aponta a insensibilidade que ele captara na Capitania, destacando “o hábito de
castigar os escravos que lhes entorpece a sensibilidade”. Outra modalidade cruel
estava relacionada à facilidade dos habitantes em renovar seus cavalos o que
impedia de se afeiçoarem a eles, podendo impunemente tratá-los sem piedade
alguma, vivendo “por assim dizer, em matadouros”. É um comentário que o
naturalista generaliza para a Capitania. No caso específico da população da
cidade “não é, pois, de estranhar se eles forem ainda, mais insensíveis que o
resto de seus compatriotas” pois “fala-se aqui das desgraças alheias com o mais
inalterável sangue-frio”. E exemplifica: “conta-se que um navio naufragou e a
tripulação pereceu afogada, como se relatassem fatos os mais desinteressantes”.
No dia 18 de agosto, ele registrou
que foi passear na “aldeia aldeia Norte, situada, na extremidade da península
que separa a Lagoa dos Patos do mar”. A travessia entre Rio Grande e São José
do Norte era feita por embarcações chamadas de catraias, movidas tanto a remo
como a vela. Ele esclarece que os habitantes da região distinguem esses dois
lugares simplesmente pelos nomes de Sul e Norte; mas a aldeia do Norte se
chama, propriamente, São José do Norte e faz parte da paróquia que tem o nome
de Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Estreito do Norte do Rio Grande
de São Pedro.
As embarcações aportam na aldeia
do Norte e as mercadorias são transportadas para a alfândega de São
Pedro. Como o centro do comércio do sul da Capitania se acha, de há muito,
localizado em São Pedro, pois os “negociantes mais ricos da região tem aí suas
residências e seus armazéns” não seria conveniente privar Rio Grande dos
privilégios usufruídos com a localização da alfândega embora esta localização
seja contrária “a ordem natural das coisas”.
A barra do Rio Grande é visitada por
Saint-Hilaire na companhia do Conde, embarcados numa galera pertencente
ao Rei. O canal de navegação é indicado por balizas “que tem o inconveniente de
serem muito frágeis e que podem facilmente ser arrastadas pela correnteza”.
Relata que na ponta sul da Barra o terreno é completamente arenoso
existindo uma casa bastante grande na qual se estabeleceu uma guarda de
ordenanças, encarregada de visitar as embarcações que saem com o objetivo de
impedir a fuga de algum desertor. Peças de artilharia sem reparo destinada a
defender a entrada da barra estão junto desta casa, estando também
presentes na ponta norte. “Junto às baterias há uma casa coberta de
telhas, destinada a alojar um destacamento de soldados”, avistando-se uma
“torre quadrada que serve de sinalização aos navegadores”. Segundo ele “nada se
iguala à tristeza desses lugares. De um lado, o bramir do oceano; e do outro, o
rio”. O terreno é extremamente plano e quase ao nível do mar, é todo areal
esbranquiçado, onde crescem plantas esparsas, especialmente o senecio. “As
choupanas, mal conservadas, só anunciam miséria: destroços de embarcações
semi-enterradas na areia recordam pungentes desgraças e nossa alma se enche,
pouco a pouco, de melancolia e terror”.
Os naufrágios eram fator de apreensão
no acesso à barra. Além da torre de sinalização, o papel do prático era
indispensável para a entrada e saída das embarcações. “O prático da barra, num
pequeno barco denominado catraia, vai mostrando, por meio de uma bandeira, que
ele inclina de um lado ou de outro, o caminho a seguir”.
O naturalista associa o crescimento
do Rio Grande com a luta na Cisplatina, “só depois da insurreição das Colônias
Espanholas, foi que esta cidade começou a florescer e que se construiu a
maioria das casas importantes”. Até então, como a barra é muito perigosa e a
carne seca dos arredores é de qualidade inferior a de Buenos Aires e de
Montevidéu era nesses portos “que se ia buscá-la antigamente”. O
desenvolvimento econômico estaria associado aos conflitos no Prata, pois depois
da guerra, Rio Grande tornou-se centro desse comércio e um importante porto
para o Brasil.
No dia 30 de agosto, o diário do
naturalista francês, traz descrições do plano urbano da cidade que era composto
por seis ruas muito desiguais, atravessadas por outras excessivamente
estreitas, denominadas becos. A rua mais comprida chamava-se Rua da Praia
localizando-se à margem do canal; nessa rua estavam situadas quase todas as
lojas e a maioria das vendas, umas e outras igualmente sortidas. Várias casas
com janelas envidraçadas, cobertas de telhas e com sacadas de ferro, estão
situadas na Rua da Praia, enquanto no resto da cidade não se contam pouco mais
de seis a oito casas assobradadas. As quatro últimas ruas são constituídas
“quase unicamente de miseráveis casebres de teto bastante alto, porém mal
conservados, pequenos, construídos de pau-a-pique e onde moram pessoas pobres,
operários e pescadores”. Portanto, 2/3 da faixa urbana estaria ocupada pela
categoria habitacional pau-a-pique e não pela categoria dos assobradados.
Porém, há um elemento unificador à vivência cotidiana: “nas duas ruas
principais vêem-se lajes na frente das casas, entretanto nenhuma delas é
calçada; enterram-se aí os pés na areia, o que dificulta o caminhar”. Somente a partir da década de 1860 é que teria início os calçamentos na cidade.
O excesso de areia e a falta de
árvores impressionam o botânico que ao ficar observando de uma área não
construída de aproximadamente seiscentos passos (atual praça Xavier Ferreira)
em direção a Lagoa, não conseguiu encontrar maiores atrativos: “Dessa praça
avistam-se, além, das águas as ilhas dos Cavalos e dos Marinheiros; e ao
nordeste percebe-se o Norte distante, bem como as embarcações ancoradas
defronte à aldeia”. Essa visão de espaço vazio obtido por Saint-Hilaire, hoje
apresenta outra espacialidade com a presença da Biblioteca Rio-Grandense,
entreposto pesqueiro, mercado público, alfândega e demais prédios. O
naturalista considerava a paisagem pouco agradável, não oferecendo nenhum ponto
onde os olhos possam deter-se prazerosamente. “As ilhas são, como disse, muito
chatas e tudo na paisagem parece nivelado (...) Nada mais triste que a posição
do Rio Grande, pois, de todos os lados, só se avistam areais, pântanos e água,
em todos os arredores não há nada que possa recrear a vista, nem mesmo uma
árvore”.
O futuro do Rio Grande é pintado com
cores pessimistas. A instalação da alfândega no sul e não no norte foi uma
“proteção oficial, inteiramente contrária a ordem natural das coisas”. Sem essa
proteção a cidade “entrará em decadência”. Conforme o naturalista, outro fator
do crescimento teria ocorrido ha oito anos, após a insurreição das colônias
espanholas, pois antes dessa época, só existiam choupanas. O comércio de couro
e de carne seca trouxera o enriquecimento em detrimento da decadência de
Montevidéu. “A Capitania do Rio Grande do Sul tornou-se, pois, riquíssima em
gado, à custa da pilhagem, ao mesmo tempo que desfrutava, pelo menos no
interior, uma paz favorável ao seu comércio e do qual os mesmos vizinhos
estavam privados”.
A capitalização estaria associada à decadência
da economia charqueadora de Montevidéu e a localização da alfândega. A natureza
era o fator de comprometimento para o futuro do Rio Grande: vento, areia e
melancolia da paisagem. No dia 5 de setembro de 1820, após uma estadia de aproximadamente um mês na cidade,
Saint-Hilaire partiu pela Lagoa dos Patos em direção a Pelotas, deixando em seu
diário, os lamentos pelo pequeno número de casas com jardins; os poucos
pessegueiros, figueiras e laranjeiras observados; os escassos legumes que negros
acocorados vendiam no mercadinho, como couves, cebolas e alfaces. Aos olhos
do botânico, que passaria o resto
de sua vida na França, escrevendo suas
vivências e classificando o material recolhido, o que mais marcou sua passagem
por Rio Grande foi a paisagem monótona da interminável areia onde seus pés
afundavam ao caminhar.