*Capítulo do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz
Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no
século XIX". Rio Grande: FURG, 1995.
Conde
D’Eu
Guerra da
Tríplice Aliança, na qual ele intentou participar até atingir seu objetivo. Já
outros escritores buscaram enaltecer e identificar na atitude do nobre um ato
de heroicidade.
Ao vir para o Rio Grande do Sul, Gastão
d’Orleans passaria por Rio Grande, Porto Alegre, Rio Pardo, Cachoeira,
Caçapava, São Gabriel, Alegrete, chegando à Uruguaiana a tempo de assistir a
rendição paraguaia, visitando a essa, bem como a Itaqui e São Borja. Seu
retorno teria por rota as localidades de Alegrete, Livramento, Bagé, Jagurão,
Pelotas, São José do Norte e Rio Grande, de onde embarcaria de volta para o Rio
de Janeiro. Durante esse trajeto, o nobre francês escreveu um diário de viagem,
no qual descreveu as regiões pelas quais passou e que foi publicado, bem mais
tarde, em 1919, junto a outras correspondências e anotações do autor.
Na introdução de sua obra, D’Eu fez
algumas ressalvas quanto ao conteúdo e à natureza da mesma. Destacava, desta
maneira que deveria ficar evidenciado que as observações consignadas nas
páginas que escrevera referiam-se a fatos ocorridos há cinqüenta e quatro anos
passados e não tinham pois aplicação à situação contemporânea das regiões que
então percorrera e já haviam chegado a adiantado estado de civilização.
Esclarecia também que suas “imperfeitas impressões” de viagem eram destinadas
principalmente à sua família na Europa, para quem a Princesa cuidadosamente as
recopiava, uma vez que, recém-chegado ao Brasil, não estava ainda familiarizado
com muitos dos usos especiais da terra, dando esta circunstância lugar a
algumas considerações que já não ofereceriam interesses, mas, ao mesmo tempo,
declarava que preferira não as suprimir para não tirar ao “modesto escrito” o
cunho de originalidade, que seria seu único mérito[1].
O conde chegou à cidade do Rio Grande a
5 de agosto de 1865 e sua primeira imagem do local foi que, por detrás de uma
saliência da margem do sul, deparava-se com a cidade do Rio Grande do Sul,
precedida de uma floresta de mastros, sendo necessário para atingi-la seguir um
canal sinuoso e estreito, mas bem balizado com uma série de bóias. Foi ele
recebido com um pequeno discurso proferido pelo Presidente da Câmara Municipal,
havendo ainda a presença de outras autoridades e grande multidão, que soltavam
os “vivas” do estilo e foguetes em todas as direções[2].
O autor apontava a cidade como a
primeira que se fundou na Província e que contava, segundo o que lhe disseram,
com quatorze mil habitantes. Segundo ele, havia muitas casas de comércio
européias, na maior parte alemãs, sendo os mais relevantes objetos de comércio,
os couros e a carne seca. O nobre descreveu as três ruas principais, todas
paralelas à praia, nas quais se via lojas elegantes e a rua mais importante
apresentava muitas bandeiras de consulados, como a do “famoso” consulado
inglês, donde saíram as “diatribes tão injustas” do sr. Prendergast Vereker.
Ainda quanto às ruas, descrevia-as como calçadas, mas antes que passassem as
últimas casas da cidade, já se estava num mar de areia, no qual se tornava
muito custoso andar. Destacou também a construção de um hospital por uma Santa
Casa, com o auxílio do governo, do qual, naquele momento, só havia uma das
quatro fachadas, mas considerava que iria ficar um edifício muito bonito, ou
pelo menos muito grande[3].
Tratando-se de um relato com relevância
ao aspecto militar, o diário de viagem deu ênfase às fortificações, guarnições
e preocupações com a defesa do município, como ao referir-se à Guarda Nacional,
caracterizando-a, de certo modo, como improvisada. Relatava Gastão d’Orleans
que parecia que a Guarda Nacional só fora chamada ao serviço depois da passagem
do Imperador, por ter sido mandada para o interior a guarnição de linha que até
então ocupava a cidade, compondo-se a mesma unicamente de habitantes da cidade,
na maior parte empregados do comércio. Sobre a força em questão, descrevia que
nela não se via um só homem de cor, e o tipo geral indicava um grau de educação
superior ao dos guardas nacionais do norte, entretanto, em compensação, os
oficiais mostravam bem no aspecto que havia saído naquele instante de seus
escritórios e dos seus estabelecimentos de venda, estando prontos a voltar
rapidamente a seus afazeres. Complementava a informação, destacando que a
guarda era composta por pouco mais de 400 homens que usavam quepe de couro,
farda azul e calça branca[4].
D’Eu descreveu ainda o quartel da
Guarda Nacional, onde estava instalado um hospital militar que parecia em suma
estar funcionando perfeitamente. Apontou também a construção de uma
fortificação no extremo da cidade, a qual davam o nome de trincheira,
caracterizando-a como uma simples linha de redentes que devia fechar uma a
outra praia, a ponta de terra em que estava edificada a cidade. Nessa
construção, destacou ele, levanto-se em toda sua extensão um muro vertical de
alvenaria, indispensável para sustentar as areias, que se tornavam verdadeiro
obstáculo à obra, visto que, a falta de coerência das mesmas dificultava muito
os trabalhos, pois que, ao mais pequeno vento, logo se acumulava areia do lado
exterior do muro. Explicava ainda que trabalhavam na nova trincheira cento e
vinte operários sob as ordens de um major de engenharia[5].
Segundo o nobre francês, as
providências defensivas provinham do fato que as autoridades e os habitantes da
cidade temiam que, se os paraguaios entrassem na parte oeste do Estado
Oriental, ocorresse uma sublevação geral dos blancos uruguaios e que, nesse
caso, os orientais, transpondo a fronteira do Chuí, viessem a atacar a cidade.
Destacava ainda que foi com a mesma idéia que se armou a cavalo a Guarda
Nacional de todas as povoações que se estendiam do Rio Grande até o Chuí e das
que ficavam próximas ao Jaguarão[6].
Esse temor levou à mobilização de todos
os contingentes possíveis, como narrava o conde, que viu num largo um magote de
homens em trajo civil, quase todos de mais de cinqüenta anos, que pareciam ter
vindo submeter-se a uma inspeção. Relatou, a respeito desses indivíduos que lhe
disseram que os mesmos eram da Guarda Nacional, isentos do serviço por motivos
de saúde, mas que começaram voluntariamente a organizar-se para fazer o serviço
da cidade, no caso de dever a Guarda Nacional ativa marchar para outra parte[7].
Na narrativa de Gastão d’Orleans também
podem ser observados aspectos sociais da comuna rio-grandina, como ao escrever
sobre os hábitos de seus anfitriões, revelando a abundância na qual vivia a
família que lhe recepcionou, servindo-se o jantar em grande mesa luxuosamente
posta com cozinha francesa delicada e abundante. Destacou que um dos filhos
havia sido educado na Europa, mas, na sua impressão, concluiu que o mesmo não
passara do Porto e que a própria família já havia viajado aquele continente, permanecendo
dois meses em Paris e mês e meio em Londres, além da existência de uma filha
mais nova que tocava piano, estudando com um mestre alemão. Também chamou-lhe
atenção a qualidade do vinho e das manteigas presentes no almoço do dia
seguinte. De seus anfitriões, ao que tudo indica uma abastada família ligada ao
comércio, o conde só fez uma queixa, pois apesar da elegância do quarto de
dormir que estava em harmonia com a da sala de jantar, o leito deixava a
desejar, visto que para agasalho só havia um lençol quase transparente e uma
coberta de seda, tudo cortado à alemã, isto é, de menor dimensão que o leito,
diante disso e tendo de enfrentar o rigoroso inverno rio-grandino do mês de
agosto, o nobre lamentou-se, afirmando que teve muito frio[8].
Mesmo à noite, o Conde D’Eu continuou a
receber homenagens, como a de uma comissão de sis negociantes franceses que fez
pequeno discurso de felicitação em nome dos franceses residentes no Rio Grande,
que seriam em torno de quarenta, ou ainda de uma sociedade musical que vinha
dar uma serenata, precedida de archotes e bandeiras, cantando o hino nacional[9].
Após percorrer diversas regiões do
território rio-grandense, Gastão d’Orleans retornou à cidade do Rio Grande, a 3
de novembro de 1865, para daí voltar à Corte. Nessa nova visita, ele descreveu
outros detalhes sobre a comunidade rio-grandina, como uma “regata de remos”, na
qual os barcos e os remadores lembravam o Tâmisa ao autor, pois eram as mesmas
camisolas de flanela e os mesmos chapéus de palha redondos com fitas azuis,
além do que, dentre os vencedores, pode reconhecer a origem britânica da maior
parte pelos cabelos louros e sobretudo pelo sotaque como que exclamavam: “Viva
a Nação Brasileira! Viva Sua Majestade o Imperador!”[10].
Outro detalhe observado pelo nobre
francês foi um certo entusiasmo patriótico por parte da população, afirmando
ser, decididamente o Rio Grande, de todas as povoações da Província a que fez
mais demonstrações, através de constantes “vivas” ao Imperador e, segundo ele,
na cidade, a Tríplice Aliança parecia ser mais popular pois, em quase todos os
edifícios se viam, ao lado da bandeira brasileira, os estandartes, mais
pequenos das duas repúblicas aliadas e, às vezes até o escudo era sustentado
pelas bandeiras republicanas. Além disso, fazia referência a um “belo impulso
de patriotismo”, a Municipalidade resolvera substituir os nomes de algumas
ruas, por outros ilustrativos aos feitos no Paraguai, como Rua do Imperador,
Rua dos Príncipes, Rua Dezesseis de Julho, Rua Riachuelo, Rua de Uruguaiana,
entre outras. Destacou também um baile organizado em homenagem aos membros da
Família Real que na cidade se faziam presentes, embora o conde não tenha ficado
com opinião positiva a respeito do mesmo, afirmando que, durante as duas horas
que lá esteve, se não dançou e pouco se falou, estando trinta ou quarenta
senhoras, solenemente sentadas à roda da sala, estando as janelas todas
fechadas[11].
A saída do Conde D’Eu da cidade do Rio
Grande, a 4 de novembro de 1865, representou também a sua despedida da Província
e o último tópico de seu diário sobre as viagens empreendidas em terras
rio-grandenses. Sobre a publicação, Câmara Cascudo afirmou que todas as
questões de acomodação, deslocamento de pessoal, instalação de casernas,
cozinhas militares, fardamentos, pousos de remonta para a cavalhada, instrução
de recrutas, tudo, enfim, está analisado às pressas no livro em questão, mas
com segurança, precisão e conhecimento de um técnico, graças aos “dotes de
observador” do francês, considerados como “agudos e felizes”, de modo que,
recém chegado ao Brasil, podia notar-se em sua narrativa o “cuidado extremo” de
informar-se de tudo, bem como de tudo detalhadamente estudar. Nesse quadro,
ainda de acordo com Cascudo, as análises do conde sobre o tipo do gaúcho, os
costumes, a família, a hospitalidade, desde o chimarrão até o churrasco, a
valentia cavalheiresca, o arrojo das bolheadeiras, as disparadas doídas pela
vastidão do pampa, passavam a constituir quadros de movimento e de cor,
narrados em estilo simples, claro, preciso, nítido, sem arabesco, sem
artificialidade e sem retórica[12].
Assim, a obra do nobre francês tem considerável valor militar e informativo,
sendo avaliada por Abeillard Barreto como um livro interessantíssimo, que pode
ser colocado entre os melhores de viagens ao Rio Grande do Sul[13].
[1]
EU, Luís Filipe Maria Fernando Gastão d’Orleans, Conde D’. Viagem militar ao Rio Grande do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: EDUSP, 1981. p. 13-14.
[2] EU. p. 23.
[3]
EU. p. 24. Sobre o cônsul britânico Henry Prendergast Vereker ao qual o autor
fez referência, ver o capítulo deste livre referente ao citado personagem.
[4] EU. p. 23.
[5] EU. p. 23-24.
[6] EU. p. 24.
[7] EU. p. 25.
[8] EU. p. 25 e 27.
[9] EU. p. 27.
[10]
EU. p. 140.
[11]
EU. p. 140-141.
[12]
CASCUDO, Luís da Câmara. Conde D’Eu.
São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1933. p. 69-70.
[13]
BARRETO, Abeillard. Bibliografia
sul-rio-grandense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento
e a integração do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal de
Cultura, 1973. v. 1. p. 480.
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