Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

VISÕES DO RIO GRANDE - CONDE D'EU


*Capítulo do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995. 

 
Edição de 1936 In: www.letravivaleiloes.com.br
Conde D’Eu
          Luís Filipe Maria Fernando Gastão d’Orleans (1842-1922), o Conde D’Eu, nobre francês e esposo da Princesa Isabel, encontrava-se com a mesma na Europa, em 1865, quando, por ocasião da Guerra do Paraguai, o Imperador D. Pedro II tivera de deslocar-se para o Rio Grande do Sul. Ao chegar ao Rio de Janeiro, o conde decidiu seguir o sogro, embarcando para o sul do país, em agosto daquele ano. A sua partida para o sul, segundo alguns autores, viria ao encontra de suas ambições político-militares que seriam confirmadas no desenrolar da
Guerra da Tríplice Aliança, na qual ele intentou participar até atingir seu objetivo. Já outros escritores buscaram enaltecer e identificar na atitude do nobre um ato de heroicidade.
         Ao vir para o Rio Grande do Sul, Gastão d’Orleans passaria por Rio Grande, Porto Alegre, Rio Pardo, Cachoeira, Caçapava, São Gabriel, Alegrete, chegando à Uruguaiana a tempo de assistir a rendição paraguaia, visitando a essa, bem como a Itaqui e São Borja. Seu retorno teria por rota as localidades de Alegrete, Livramento, Bagé, Jagurão, Pelotas, São José do Norte e Rio Grande, de onde embarcaria de volta para o Rio de Janeiro. Durante esse trajeto, o nobre francês escreveu um diário de viagem, no qual descreveu as regiões pelas quais passou e que foi publicado, bem mais tarde, em 1919, junto a outras correspondências e anotações do autor.
         Na introdução de sua obra, D’Eu fez algumas ressalvas quanto ao conteúdo e à natureza da mesma. Destacava, desta maneira que deveria ficar evidenciado que as observações consignadas nas páginas que escrevera referiam-se a fatos ocorridos há cinqüenta e quatro anos passados e não tinham pois aplicação à situação contemporânea das regiões que então percorrera e já haviam chegado a adiantado estado de civilização. Esclarecia também que suas “imperfeitas impressões” de viagem eram destinadas principalmente à sua família na Europa, para quem a Princesa cuidadosamente as recopiava, uma vez que, recém-chegado ao Brasil, não estava ainda familiarizado com muitos dos usos especiais da terra, dando esta circunstância lugar a algumas considerações que já não ofereceriam interesses, mas, ao mesmo tempo, declarava que preferira não as suprimir para não tirar ao “modesto escrito” o cunho de originalidade, que seria seu único mérito[1].
         O conde chegou à cidade do Rio Grande a 5 de agosto de 1865 e sua primeira imagem do local foi que, por detrás de uma saliência da margem do sul, deparava-se com a cidade do Rio Grande do Sul, precedida de uma floresta de mastros, sendo necessário para atingi-la seguir um canal sinuoso e estreito, mas bem balizado com uma série de bóias. Foi ele recebido com um pequeno discurso proferido pelo Presidente da Câmara Municipal, havendo ainda a presença de outras autoridades e grande multidão, que soltavam os “vivas” do estilo e foguetes em todas as direções[2].
         O autor apontava a cidade como a primeira que se fundou na Província e que contava, segundo o que lhe disseram, com quatorze mil habitantes. Segundo ele, havia muitas casas de comércio européias, na maior parte alemãs, sendo os mais relevantes objetos de comércio, os couros e a carne seca. O nobre descreveu as três ruas principais, todas paralelas à praia, nas quais se via lojas elegantes e a rua mais importante apresentava muitas bandeiras de consulados, como a do “famoso” consulado inglês, donde saíram as “diatribes tão injustas” do sr. Prendergast Vereker. Ainda quanto às ruas, descrevia-as como calçadas, mas antes que passassem as últimas casas da cidade, já se estava num mar de areia, no qual se tornava muito custoso andar. Destacou também a construção de um hospital por uma Santa Casa, com o auxílio do governo, do qual, naquele momento, só havia uma das quatro fachadas, mas considerava que iria ficar um edifício muito bonito, ou pelo menos muito grande[3].
         Tratando-se de um relato com relevância ao aspecto militar, o diário de viagem deu ênfase às fortificações, guarnições e preocupações com a defesa do município, como ao referir-se à Guarda Nacional, caracterizando-a, de certo modo, como improvisada. Relatava Gastão d’Orleans que parecia que a Guarda Nacional só fora chamada ao serviço depois da passagem do Imperador, por ter sido mandada para o interior a guarnição de linha que até então ocupava a cidade, compondo-se a mesma unicamente de habitantes da cidade, na maior parte empregados do comércio. Sobre a força em questão, descrevia que nela não se via um só homem de cor, e o tipo geral indicava um grau de educação superior ao dos guardas nacionais do norte, entretanto, em compensação, os oficiais mostravam bem no aspecto que havia saído naquele instante de seus escritórios e dos seus estabelecimentos de venda, estando prontos a voltar rapidamente a seus afazeres. Complementava a informação, destacando que a guarda era composta por pouco mais de 400 homens que usavam quepe de couro, farda azul e calça branca[4].
         D’Eu descreveu ainda o quartel da Guarda Nacional, onde estava instalado um hospital militar que parecia em suma estar funcionando perfeitamente. Apontou também a construção de uma fortificação no extremo da cidade, a qual davam o nome de trincheira, caracterizando-a como uma simples linha de redentes que devia fechar uma a outra praia, a ponta de terra em que estava edificada a cidade. Nessa construção, destacou ele, levanto-se em toda sua extensão um muro vertical de alvenaria, indispensável para sustentar as areias, que se tornavam verdadeiro obstáculo à obra, visto que, a falta de coerência das mesmas dificultava muito os trabalhos, pois que, ao mais pequeno vento, logo se acumulava areia do lado exterior do muro. Explicava ainda que trabalhavam na nova trincheira cento e vinte operários sob as ordens de um major de engenharia[5].
         Segundo o nobre francês, as providências defensivas provinham do fato que as autoridades e os habitantes da cidade temiam que, se os paraguaios entrassem na parte oeste do Estado Oriental, ocorresse uma sublevação geral dos blancos uruguaios e que, nesse caso, os orientais, transpondo a fronteira do Chuí, viessem a atacar a cidade. Destacava ainda que foi com a mesma idéia que se armou a cavalo a Guarda Nacional de todas as povoações que se estendiam do Rio Grande até o Chuí e das que ficavam próximas ao Jaguarão[6].
         Esse temor levou à mobilização de todos os contingentes possíveis, como narrava o conde, que viu num largo um magote de homens em trajo civil, quase todos de mais de cinqüenta anos, que pareciam ter vindo submeter-se a uma inspeção. Relatou, a respeito desses indivíduos que lhe disseram que os mesmos eram da Guarda Nacional, isentos do serviço por motivos de saúde, mas que começaram voluntariamente a organizar-se para fazer o serviço da cidade, no caso de dever a Guarda Nacional ativa marchar para outra parte[7].
         Na narrativa de Gastão d’Orleans também podem ser observados aspectos sociais da comuna rio-grandina, como ao escrever sobre os hábitos de seus anfitriões, revelando a abundância na qual vivia a família que lhe recepcionou, servindo-se o jantar em grande mesa luxuosamente posta com cozinha francesa delicada e abundante. Destacou que um dos filhos havia sido educado na Europa, mas, na sua impressão, concluiu que o mesmo não passara do Porto e que a própria família já havia viajado aquele continente, permanecendo dois meses em Paris e mês e meio em Londres, além da existência de uma filha mais nova que tocava piano, estudando com um mestre alemão. Também chamou-lhe atenção a qualidade do vinho e das manteigas presentes no almoço do dia seguinte. De seus anfitriões, ao que tudo indica uma abastada família ligada ao comércio, o conde só fez uma queixa, pois apesar da elegância do quarto de dormir que estava em harmonia com a da sala de jantar, o leito deixava a desejar, visto que para agasalho só havia um lençol quase transparente e uma coberta de seda, tudo cortado à alemã, isto é, de menor dimensão que o leito, diante disso e tendo de enfrentar o rigoroso inverno rio-grandino do mês de agosto, o nobre lamentou-se, afirmando que teve muito frio[8].
         Mesmo à noite, o Conde D’Eu continuou a receber homenagens, como a de uma comissão de sis negociantes franceses que fez pequeno discurso de felicitação em nome dos franceses residentes no Rio Grande, que seriam em torno de quarenta, ou ainda de uma sociedade musical que vinha dar uma serenata, precedida de archotes e bandeiras, cantando o hino nacional[9].
         Após percorrer diversas regiões do território rio-grandense, Gastão d’Orleans retornou à cidade do Rio Grande, a 3 de novembro de 1865, para daí voltar à Corte. Nessa nova visita, ele descreveu outros detalhes sobre a comunidade rio-grandina, como uma “regata de remos”, na qual os barcos e os remadores lembravam o Tâmisa ao autor, pois eram as mesmas camisolas de flanela e os mesmos chapéus de palha redondos com fitas azuis, além do que, dentre os vencedores, pode reconhecer a origem britânica da maior parte pelos cabelos louros e sobretudo pelo sotaque como que exclamavam: “Viva a Nação Brasileira! Viva Sua Majestade o Imperador!”[10].
         Outro detalhe observado pelo nobre francês foi um certo entusiasmo patriótico por parte da população, afirmando ser, decididamente o Rio Grande, de todas as povoações da Província a que fez mais demonstrações, através de constantes “vivas” ao Imperador e, segundo ele, na cidade, a Tríplice Aliança parecia ser mais popular pois, em quase todos os edifícios se viam, ao lado da bandeira brasileira, os estandartes, mais pequenos das duas repúblicas aliadas e, às vezes até o escudo era sustentado pelas bandeiras republicanas. Além disso, fazia referência a um “belo impulso de patriotismo”, a Municipalidade resolvera substituir os nomes de algumas ruas, por outros ilustrativos aos feitos no Paraguai, como Rua do Imperador, Rua dos Príncipes, Rua Dezesseis de Julho, Rua Riachuelo, Rua de Uruguaiana, entre outras. Destacou também um baile organizado em homenagem aos membros da Família Real que na cidade se faziam presentes, embora o conde não tenha ficado com opinião positiva a respeito do mesmo, afirmando que, durante as duas horas que lá esteve, se não dançou e pouco se falou, estando trinta ou quarenta senhoras, solenemente sentadas à roda da sala, estando as janelas todas fechadas[11].
         A saída do Conde D’Eu da cidade do Rio Grande, a 4 de novembro de 1865, representou também a sua despedida da Província e o último tópico de seu diário sobre as viagens empreendidas em terras rio-grandenses. Sobre a publicação, Câmara Cascudo afirmou que todas as questões de acomodação, deslocamento de pessoal, instalação de casernas, cozinhas militares, fardamentos, pousos de remonta para a cavalhada, instrução de recrutas, tudo, enfim, está analisado às pressas no livro em questão, mas com segurança, precisão e conhecimento de um técnico, graças aos “dotes de observador” do francês, considerados como “agudos e felizes”, de modo que, recém chegado ao Brasil, podia notar-se em sua narrativa o “cuidado extremo” de informar-se de tudo, bem como de tudo detalhadamente estudar. Nesse quadro, ainda de acordo com Cascudo, as análises do conde sobre o tipo do gaúcho, os costumes, a família, a hospitalidade, desde o chimarrão até o churrasco, a valentia cavalheiresca, o arrojo das bolheadeiras, as disparadas doídas pela vastidão do pampa, passavam a constituir quadros de movimento e de cor, narrados em estilo simples, claro, preciso, nítido, sem arabesco, sem artificialidade e sem retórica[12]. Assim, a obra do nobre francês tem considerável valor militar e informativo, sendo avaliada por Abeillard Barreto como um livro interessantíssimo, que pode ser colocado entre os melhores de viagens ao Rio Grande do Sul[13].


[1] EU, Luís Filipe Maria Fernando Gastão d’Orleans, Conde D’. Viagem militar ao Rio Grande do Sul. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1981. p. 13-14.
[2] EU. p. 23.
[3] EU. p. 24. Sobre o cônsul britânico Henry Prendergast Vereker ao qual o autor fez referência, ver o capítulo deste livre referente ao citado personagem.
[4] EU. p. 23.
[5] EU. p. 23-24.
[6] EU. p. 24.
[7] EU. p. 25.
[8] EU. p. 25 e 27.
[9] EU. p. 27.
[10] EU. p. 140.
[11] EU. p. 140-141.
[12] CASCUDO, Luís da Câmara. Conde D’Eu. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1933. p. 69-70.
[13] BARRETO, Abeillard. Bibliografia sul-rio-grandense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento e a integração do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973. v. 1. p. 480.

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