Conforme os
autores Liz-Rejane Issberner e Philippe Léna “o termo Antropoceno foi criado
para levar em consideração o impacto da acelerada acumulação de gases de efeito
estufa sobre o clima e a biodiversidade e, da mesma forma, dos danos
irreversíveis causados pelo consumo excessivo de recursos naturais. Contudo, é
preciso transformá-lo em uma nova época geológica. Enquanto o debate continua
entre cientistas, ainda precisam ser encontradas soluções. Nós estamos, de
fato, testemunhando uma forma coletiva de negação, que é o resultado de uma fé
ingênua no progresso, de uma ideologia consumista e de poderosos lobbies
econômicos.
A palavra
Antropoceno aparece hoje no título de centenas de livros e artigos científicos,
em milhares de citações, e seu uso continua a crescer nos meios de comunicação.
Referindo-se à época em que as ações humanas começaram a provocar alterações
biofísicas em escala planetária, ela foi criada nos anos 1980 pelo biólogo
norte-americano Eugene Stoermer e popularizado na década de 2000 por Paul
Crutzen (link is external), o cientista atmosférico holandês e vencedor do
Prêmio Nobel de Química de 1995. Os especialistas constataram que essas alterações
afastavam o Sistema Terra do relativo equilíbrio observado desde o início do
Holoceno, há 11.700 anos. Para marcar o início dessa nova era, eles propuseram
simbolicamente o ano de 1784, o ano em que o inventor escocês James Watt
aperfeiçoou a máquina a vapor com novas invenções, que também corresponde ao
início da revolução industrial e da utilização dos combustíveis fósseis.
Parece haver
um consenso de que vários parâmetros do Sistema Terra apresentam uma evolução
recente além do espectro da variabilidade natural característica do Holoceno –
agora, é mais ou menos aceito o uso do termo Antropoceno para caracterizar as
mudanças que têm origem humana. Porém, um grupo de cientistas resolveu ir além
de usar o termo como uma simples metáfora ou uma ferramenta prática e
interdisciplinar, e propuseram que o Antropoceno seja considerado formalmente
como uma nova época geológica, como o Holoceno e o Pleistoceno.
Um Grupo de
Trabalho sobre o Antropoceno (Anthropocene Working Group – AWG (link is external))
se encarregou de apresentar essa proposta à União Internacional de Ciências
Geológicas (International Union of Geological Sciences – IUGS (link is
external)). Contudo, para uma nova época ser aceita pelos estratigrafistas, é
necessário existir uma ruptura observável e universal entre as camadas
sedimentares de duas épocas. Embora o carbono antropogênico esteja presente em
sedimentos desde os anos 1850, isso não foi considerado suficiente. Com isso, o
AWG propõe mudança de época em 1950, ano a partir do qual vários componentes
químicos e partículas de plástico de origem antrópica começaram a aparecer nos
sedimentos. Nota-se que o ano de 1950 é também o início da grande aceleração.
De qualquer forma, um eventual não reconhecimento do Antropoceno como época
geológica não invalidaria em nada o uso científico do termo, como é o caso
atualmente.
Apesar do seu
curto período de existência, o conceito de Antropoceno gerou várias
controvérsias – a própria denominação foi questionada. Historiadores e
antropólogos colocaram em dúvida a referência a antropos, esse ser humano
genérico. Afinal de contas, quem é o responsável pela transgressão dos limites
biogeofísicos, senão o humano ocidental e um sistema socioeconômico específico?
Daí a multiplicação de propostas alternativas como “Ocidentaloceno”,
“Capitaloceno” etc. Outros, em particular especialistas da história mundial ou
ambiental, pensam que não há uma descontinuidade ontológica, e que o caráter
excepcional do crescimento ocidental (a “grande divergência”), deveria ser
reposicionado no longo prazo.
De acordo com
eles, pelo menos durante os últimos 40 mil anos, o ser humano sempre causou um
impacto crescente em seu ambiente. Ele contribuiu, por exemplo, para o
desaparecimento da megafauna americana e australiana. Assim, alguns cientistas
defendem um longo Antropoceno, dividido em subperíodos tais como a
industrialização capitalista (1850-1950) e a grande aceleração. No entanto, a
maioria concorda com a necessidade de se abandonar uma visão linear e
determinista do tempo histórico.
Por que nós
nos recusamos a ver isso? Podemos listar alguns fatores: a fé cega no progresso
e no desenvolvimento – em outras palavras, em um sistema que aumenta
indefinidamente a quantidade de riqueza disponível; poderosos interesses que se
beneficiam dessa dinâmica e realizam um lobbying intenso; a crença na
capacidade da ciência e da tecnologia para resolver todos os problemas e as
externalidades negativas (como, por exemplo, a poluição); o controle do
imaginário dos consumidores pela mídia, que cria uma ânsia pelo consumo
individual, visando tanto ao conforto, quanto para se distinguir e ser
reconhecido.
É
surpreendente que as ciências humanas e sociais tenham permanecido durante
muito tempo alheias a essa problemática, considerando que ela determinará o
futuro da humanidade. Além de serem antropocêntricas por definição, essas
disciplinas consideravam que esse campo de estudos pertencia, por excelência,
às ciências da natureza. A emergência do conceito de Antropoceno confere a
essas áreas a responsabilidade de investigar e explicar como as sociedades
humanas foram capazes de provocar tal magnitude de transformações no modus
operandi do planeta, bem como os diferentes impactos dessas transformações
sobre o mapa terrestre. As ciências sociais e humanas terão de desenvolver e
encampar novos objetos e conhecimentos para responder as questões típicas dessa
nova época: desastres naturais, energias renováveis, esgotamento de recursos
naturais, desertificação, ecocídio, poluição generalizada, migrações, injustiça
social e ambiental.
Um dos grandes
impasses do Antropoceno é que o seu enfrentamento implica lidar com a delicada
questão da justiça ambiental. A mudança climática ampliará os riscos existentes
e criará outros riscos para os sistemas naturais e humanos, sendo que tais
riscos são distribuídos de forma desigual e geralmente são maiores para pessoas
e grupos desfavorecidos. Porém, uma solução satisfatória para esse problema não
é simples, pois os países apresentam diferentes graus de desenvolvimento,
tamanho, população, recursos naturais etc.
Além disso, a
pegada ecológica humana já excede em 50% a capacidade de regeneração e absorção
do planeta, e 80% de sua população vive em países cuja biocapacidade já está
abaixo de sua pegada ecológica. Um país como o Brasil – e outros países das
Américas – ainda apresenta um superávit importante em termos de biocapacidade,
embora já consuma 1,8 planeta. Contudo, 26% das suas emissões de GEE são
devidas ao desmatamento. Uma parte significativa de sua pegada ecológica vem da
exportação de produtos primários, que estão na origem de boa parte desse
desmatamento. O sistema competitivo e globalizado procura se abastecer com o
menor custo, estimulando o extrativismo em muitos países e a apropriação de
terras (landgrabbing) em outros.
Mesmo se fosse
possível parar imediata e completamente as emissões de CO2 dos países de alta
renda, isso não seria o bastante para reduzir a pegada de carbono global de
modo a se manter dentro dos limites impostos para a biosfera até 2050. Ou seja,
apesar das consideráveis diferenças do tamanho de suas economias e de suas
reservas de recursos naturais, todos os países deverão se empenhar no
enfrentamento do problema mais urgente do Antropoceno: a redução drástica das
emissões de GEE.
Isso é
exatamente o que nos leva ao impasse que normalmente ressurge em todas as
negociações internacionais: a busca por culpados, o que faz com que os países
relutem em assumir compromissos, pelo receio de comprometer o seu crescimento
econômico e seus empregos, assim como de contrariar interesses poderosos.
Submersos em
contradições, dilemas e ignorância, os gravíssimos problemas ambientais do
Antropoceno não constam nas agendas nacionais e sociais com a prioridade que
merecem. É como se a humanidade, entorpecida, aguardasse o fim do filme, onde
os heróis apareceriam para resolver tudo e, assim, e seríamos todos felizes
para sempre”, concluem Liz-Rejane Issberner e Philippe Léna.