Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

segunda-feira, 17 de abril de 2017

RUA MARECHAL FLORIANO EM 1865

             
Rua da Praia no ano que passaria a se chamar Rua Pedro II (atual Marechal Floriano) - 1865. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense. 

         A importância desta rua já foi destacada por Saint-Hilaire em 1820, quando este descreveu o plano urbano da então Vila do Rio Grande que era composta por “seis ruas muito desiguais, atravessadas por outras excessivamente estreitas, denominadas becos”. A rua mais extensa chamava-se Rua da Praia (Marechal Floriano), localizando-se à margem do canal (Lagoa dos Patos): nessa rua estavam situadas “quase todas as lojas e a maioria das vendas, umas e outras igualmente sortidas. Várias casas com janelas envidraçadas, cobertas de telhas e com sacadas de ferro, estão situadas na Rua da Praia”.
         Era denominada de rua da Praia, pois, a água chegava até sua imediação. No foto de 1865 se observa a atuação de um vendedor de água em pipa e provavelmente a foto mais antiga de um figurante muito difundido na cidade até o presente: um cachorro. 

RIO GRANDE - A CAPITAL

Com a invasão e a ocupação espanhola durante treze anos (1763-1776) Rio Grande deixou de ser, como vinha ocorrendo entre 1737 e 1763, a capital administrativa do Rio Grande do Sul, passando estas atividades para Viamão e posteriormente para Porto Alegre.
 Numa analogia contemporânea a Porto Alegre, a importância em sediar o centro administrativo revela-se na dinamização de atividades comerciais e na circulação de numerário por parte de todo funcionalismo envolvido na administração pública além das obras de infra-estrutura essenciais para o funcionamento de uma capital. Rio Grande, apresentando o único porto marítimo do estado, associado a centro administrativo concentrando o governo estadual e a câmara de deputados, com certeza viveria uma realidade diferenciada da atual, o que promoveria reflexos na zona sul do estado. Situações hipotéticas relacionadas ao aumento da renda per capita mobilizariam novos padrões de consumo, atraindo um grande número de indústrias e atividades de prestação de serviços. Num exercício imaginativo podemos relacionar a Grande Porto Alegre (trecho em direção a Canoas, São Leopoldo, Novo Hamburgo), com a metrópole rio-grandina cuja cidade satélite seria Pelotas, interligadas por uma série de novas cidades dormitórios que surgiriam nestes sessenta quilômetros que separam os rio-grandinos dos pelotenses.
Obviamente este exercício intelectual é polêmico. Alguns dirão que as condições históricas, o meio físico (vento, areia, umidade, insalubridade), a mentalidade da população, a proximidade do espaço do latifúndio escravista ligado a pecuária, o papel militar da cidade e a fronteira com a geopolítica platina a tornam propícia ou vulnerável. Os mais diferentes argumentos somente confirmariam que esta polêmica é extremamente interessante para resenhar o que os rio-grandinos e os estrangeiros pensam sobre a cidade.
Pois esta  discussão não é mera ficção literária mas está expressa numa obra historiográfica e foi objeto de estudo pelo governo português a mais de duzentos anos atrás, como constata-se a seguir.
Sebastião Francisco Bettamio terminou de escrever em 19 de janeiro de 1780 a Notícia Particular do Continente do Rio Grande do Sul, uma das fontes históricas mais importantes relativas à vida econômica e social da Capitania na segunda metade do século 18. Bettamio viera de Portugal para o Brasil em 1767 afim de introduzir novos métodos de contabilidade fiscal. Em 1775, auxiliou o general João Henrique Böhm, comandante das tropas luso-brasileiras na luta contra a ocupação espanhola, organizando as linhas de suprimento.
Bettamio dedicou uma considerável parte de sua Notícia a então Vila do Rio Grande de São Pedro, a qual, segundo ele, “tanto tem custado à Coroa Portuguesa, parece de justiça se conserve, e se passe para ela a capital, mudando-se de Porto Alegre as pessoas que formam o Estado Civil, e restituindo-se a antiga posse em que estavam na Vila”. A proposta de trazer a capital para Rio Grande, estava ligada a proximidade da barra, o acesso para a navegação marítima e os contatos com o interior da Capitania. “Dirão que o terreno é indigno pelas muitas areias que formam com combros formidáveis, e que estes cada vez mais se vão aproximando da Vila, sepultando os edifícios dela, o que não duvido sucede, e sucederá se não houver algum trabalho para impedir. Se, porém, considerarem as utilidades que se seguem de ser ali a capital do continente, somente pela proximidade da barra, e sem atender às mais que resultam aos povos vizinhos, que são já em grande número, vir-se-á a conhecer que se deve empregar todo o cuidado na conservação e aumento da Vila”. Rio Grande, por sua posição estratégica “é sempre mais defendida, e se pode cobrir com alguma fortificação no sítio chamado do Estreito”. Essas razões evidenciavam que é em Rio Grande que se deve trabalhar e “por todos os meios que parecerem conducentes para o seu estabelecimento, povoação, aumento e cultura”.
O autor propos ao Governador da Capitania, uma série de providências para garantir o crescimento da Vila do Rio Grande, medidas que se tivessem sido implementadas, mudariam radicalmente o ritmo do desenvolvimento histórico local. Ainda, elaborou vinte e nove pontos voltados a ocupação urbana através de obras básicas e do enfrentamento dos problemas diários da população. Bettamio acreditava que o Governador do Continente, a Câmara, os magistrados e todo o corpo civil deveriam ser obrigados a morar na Vila. O primeiro ponto da argumentação define a sua essência: que seja ordenado que a capital do Continente seja na Vila de São Pedro, “da qual se não possa mudar por pretexto algum, fazer-se a este respeito representação. Em quanto se não assentar fixamente nesta resolução, e que não fique arbítrio dos governadores poderem mudar a sua residência, sempre aqueles moradores se conservarão na esperança de melhorar, ou trocar de sítio, e nunca farão estabelecimentos permanentes, nem casas a que se possa dar este nome, mas sim choupanas para viver algum tempo”.
Escrevendo sob o efeito da ocupação espanhola que a somente três anos encerrara, Bettamio defendeu a fortificação militar e o povoamento, insistindo na necessidade em concentrar a população nas imediações deste centro urbano a fim de garantir sua manutenção no caso de novos ataques castelhanos. Os problemas ligados a carência de água e ausência de cobertura vegetal, de depósitos para conservação dos produtos da lavoura, do empobrecimento acarretado pela luta contra os espanhóis, da falta de material não perecível para construção e do contínuo movimento da areia, são alguns dos problemas enfrentados pela população na segunda metade do século 18 os quais Sebastião Bettamio buscou soluções, demonstrando um conhecimento do cotidiano da localidade.
 Quanto à proposta de transferência da capital de Porto Alegre para a Vila do Rio Grande, a primeira foi mantida com argumentos ligados a facilidade de defesa militar, a centralização do território, o solo propício à agricultura, a existência de madeiras para construção civil e naval, a abundância de água potável entre outros fatores.
Na encruzilhada histórica do ano de 1780, o peso político não favoreceu Rio Grande, decisão que teria mudado todo o seu ritmo de desenvolvimento e de diferenciadas experiências somente projetáveis no exercício intelectual da imaginação.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

280 ANOS DE FUNDAÇÃO E A PINTURA DE ALDO LOCATELLI

          O dia 19 de fevereiro de 1737 assinala o nascimento oficial do Rio Grande do Sul português com o desembarque do Brigadeiro José da Silva Paes e de sua frota na Barra do Rio Grande. O fundador e consolidador da ocupação militar e do povoamento da mais antiga cidade do Rio Grande do Sul foi citado por inúmeras fontes historiográficas como um referencial imprescindível para o projeto luso-brasileiro. Antes do enxovalhamento que tem sofrido nos últimos anos, especialmente no período da data magna da cidade, o Brigadeiro foi retratado, respeitosamente, nos escritos históricos e literários, além de se fazer presente na linguagem das artes visuais. É o caso de sua presença em painel pintado por Aldo Locatelli no Salão Alberto Pasqualini do Palácio Piratini. A sede do governo do Rio Grande do Sul ostenta este painel, infelizmente tão desconhecido dos moradores da cidade do Rio Grande, denominado de “A Fundação da Cidade do Rio Grande” obra iniciada no ano de 1951 e finalizada em 1955. Centralizando a imagem está o Brigadeiro José da Silva Paes e em seu entorno estão militares, um índio, a nau capitânia de Silva Paes e outros elementos figurativos da fundação do Rio Grande. No mesmo Salão está a obra monumental “A Formação Histórico-Etnográfica do Povo Riograndense” em que Locatelli interpreta a formação do Rio Grande do Sul e reproduz um oficial de Dragão e a imagem do Forte Jesus-Maria-José, mandado edificar por Silva Paes. Outra obra de Locatelli está exposta no saguão do Teatro do SESI e pertence a FIERGS. A pintura de 1960 tem como personagem central José da Silva Paes (com expressão imponente e como se olhasse para o futuro), circundado pelo gaúcho, imigrante, o conquistador português, o negro etc. Novamente o brigadeiro é visto pelo artista como componente essencial para a execução do projeto histórico-civilizatório luso-brasileiro no sul do Brasil. Aldo Locatelli nasceu na Itália em 1915 e faleceu em Porto Alegre em 1962. Pintor, muralista e professor do Instituto de Artes da UFRGS, chegou ao Brasil em 1948 para realizar afrescos na catedral de Pelotas. Seus afrescos pautaram-se na arte renascentista que influenciou a produção de Locatelli desde sua formação clássica na Itália. O tempo de convívio em Pelotas pode ter legado conhecimentos que facilitaram a elaboração dos painéis em que Silva Paes é retratado com destaque. Certamente, ele deve ter visitado e sido pessoalmente e sido influenciado pelas representações presentes no monumental monumento à Silva Paes inaugurado em 19 de fevereiro de 1939 de autoria do escultor paulista Humberto Carpineli. Rio Grande pode se orgulhar que seu fundador foi retratado em escultura magnífica de Carpineli e por duas vezes nas pinturas de Locatelli. São obras de arte que devem ser divulgadas e ter suas histórias recontadas para que a acefalia não seduza os cérebros do presente a realizarem leituras infundadas do passado.
Aldo Locatelli. Fundação do Rio Grande. Brigadeiro Silva Paes no centro da obra. Acervo: Palácio do Piratini. 

JOSÉ DA SILVA PAES

"De todos estes homens, o que mais se aproxima do ideal do Engenheiro Setecentista, em que se fundem o técnico, o político e o organizador, é José da Silva Paes, que funda províncias, constrói fortalezas e desenha mapas.” Jaime Cortesão.

Nascido em 1679 na freguesia de Nossa Senhora das Mercês, Lisboa, José da Silva Paes é um dos principais personagens envolvidos na fundação do Rio Grande do Sul lusitano. Casou-se com Máxima Teresa da Silva em 1704, com quem teve seis filhos. Seguindo a carreira militar, orientou-se para a engenharia participando de importantes planos de edificação de cidadelas militares no Rio de Janeiro, Santos, Santa Catarina e Rio Grande, além de obras voltadas a construção civil de interesse público. Tornou-se Brigadeiro de Infantaria em janeiro de 1735, vindo para o Brasil onde passou a exercer intensas atividades nas conjunturas de conflito relativas a Colônia do Sacramento. Foi um dos grandes estrategistas que não apenas idealizou, mas participou diretamente da administração pública que estruturou a concepção de Brasil Meridional lusitano.

A FUNDAÇÃO DO RIO GRANDE
            Argumentações favoráveis a ocupação do canal do Rio Grande de São Pedro foram formuladas pelo Brigadeiro José da Silva Paes ao Conselho Ultramarino Português em 1735 frente a tensa situação de cerco da Colônia do Sacramento do Rio da Prata. Em parecer de 2 de janeiro de 1736, o Conselho segue as orientações de Silva Paes e projeta a edificação da fortificação e povoação da parte sul do canal através de investimentos da Fazenda Real. Com a conjuntura internacional favorável ao empreendimento, a Coroa Espanhola buscava defender as posições junto a Buenos Aires, Montevidéu e Sacramento frente a um avanço lusitano no Prata. A Espanha não tinha condições de promover um rápido contra-ataque frente à ocupação militar do canal, o que garantia aos portugueses a fortificação do Rio Grande e sua extensão até o Chuí. 
A ocupação e fortificação da barra do Rio Grande foi fator de grande satisfação para Silva Paes que despendeu todos os esforços no êxito desta empresa, afinal, conforme a historiadora Maria Luiz Queiróz, através do presídio do Rio Grande, ficava garantida a posse de todo o território, que se estendia até à Laguna, barrados os espanhóis em suas pretensões de cruzar o canal, ficando sob controle o acesso à imensa rede hidrográfica que penetrava para o interior a partir da Lagoa dos Patos. Para o sul, alcançava-se com socorros a Colônia do Sacramento em tempo de guerra e, em tempo de paz, incrementava-se aquela povoação e os negócios desenvolvidos nela. O novo estabelecimento permitia, dessa forma, disputar a posse dos imensos rebanhos platinos e, ainda, a participação direta no comércio de cavalos e mulas, garantindo o abastecimento dos centros consumidores do país.
Silva Paes orientou um esquema defensivo da região ocupada, estendendo-se para o sul onde construiu o Forte de São Miguel, além de guardas (Chuí, Taim, Albardão e Passo da Mangueira), do Forte Jesus-Maria-José (cuja imagem sempre carregou consigo até sua morte) e do Forte do Estreito. A efetiva resposta a esta ocupação, ficou entalada na garganta dos espanhóis até 1763, quando a conjuntura foi propicia a uma investida de Cevallos e a fuga lusitana das posições ocupadas ao longo de treze anos.
Após a fundação do presídio Jesus, Maria, José e estando à frente da Comandância Militar do Rio Grande, Silva Paes preocupou-se com o exercício administrativo e com a melhoria das defesas do importante ponto estratégico. Em 11 de dezembro de 1737 passou a Comandância ao Mestre-de-Campo André Ribeiro Coutinho que permaneceu no cargo até 22 de dezembro de 1740, assumindo então, o Coronel Diogo Osório Cardoso. Durante a administração de Cardoso ocorre a Revolta dos Dragões do Rio Grande, movimento assim descrito em manuscritos do próprio Coronel: “A cinco de janeiro de 1742, entre quatro e cinco da tarde, depois de rendida a guarda, juntou-se grande quantidade de soldados num capão de mato junto à barra, e dali saindo, tentaram aprisionar um cabo de esquadra que passava; este a cavalo, fugiu e foi dar notícia ao comandante de que algo de anormal ocorria. Todas as providências foram tomadas – reforço da guarda do Porto, envio de oficiais e soldados para a praça de armas, reunião dos paisanos armados, para a defesa da autoridade – caíram no vácuo. Ninguém deu um tiro. Os soldados incumbidos de dominar o motim fizeram causa comum com os seus companheiros.” Silva Paes deslocou-se do Rio de Janeiro para garantir a pacificação do movimento e tranqüilizar as autoridades portuguesas frente a uma sublevação militar que gerasse a perda da posição frente a um revés espanhol. Com habilidade contornou o grave movimento que ameaçou a estabilidade da ocupação lusitana, fazendo concessões aos revoltosos e punindo as lideranças.
A rivalidade com o Governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, foram imediatas a chegada de Silva Paes ao Brasil, afinal, este veio a mando do rei de Portugal. Andrade procurou deixar claro nas correspondências que nenhuma decisão poderia ser tomada sem o seu cumprasse, buscando desta forma, manter Silva Paes sob seu controle e evitando um indesejado ofuscamento de seu poder. A discussão estendeu-se em correspondências mútuas e também endereçadas ao monarca português buscando a delimitação das esferas de poder. Em agosto 1738, Silva Paes assume como governador da Ilha de Santa Catarina, foi a forma do Conselho Ultramarino dispersar o conflito entre dois grande nomes ligados a edificação lusitana no Brasil Meridional.
O testamento de Silva Paes foi escrito reafirmando a crença na Santíssima Trindade. Propriedades e outros bens foram divididos entre os filhos. O testamento também trazia uma relação de livros e seu valor em prata. Segundo ele “somam todos estes livros 437, a saber devotos 68, Filosofias 14, 89 de Geometria e Trigonometria, 252 de História e Vida de Príncipes, 14 de Medicina e cirurgia; além de vários anos de Gazetas soltas e vários papéis curiosos e de dois tomos de várias resoluções de S. Majestade, companhias, que estabeleceram, e promoções dos postos militares até o ano de 1757.” A Biblioteca Rio-Grandense possui a Sala Silva Paes, onde existem um conjunto de obras raras que são citados no testamento.
Em seu testamento expressou que desejava que “meu corpo será amortalhado no hábito do Carmo de que sou 3º e por cima o manto de Cavaleiro de Cristo de que sou professo, e serei sepultado no jazigo dos Irmãos Terceiros de N. Sra. do Carmo”. José da Silva Paes faleceu em Lisboa em 14 de novembro de 1760, sendo sepultado no Convento de N. Sra. do Carmo.

SEBASTIÃO DA CÂMARA E A CAPITAL DO RIO GRANDE

A condição de capital foi perdida por Rio Grande quando da invasão espanhola em 1763. Desde 25 de julho de 1773, Porto Alegre era sede do Governo do Rio Grande de São Pedro segundo resolução do governador José Marcelino de Figueiredo. Com a retomada portuguesa em 1776, a capital foi mantida em Porto Alegre apesar de argumentos favoráveis ao seu retorno à Vila do Rio Grande. Um ofício do então Governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, datado de 22 de dezembro de 1780 e dirigido ao vice-rei Luiz de Vasconcelos e Souza, trata deste assunto.
O autor do documento a seguir transcrito, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, nasceu em Portugal e faleceu na Vila do Rio Grande em 1801, tendo sido enviado para o Brasil para combater os espanhóis nas Guerras do Sul recebendo ordens do Tenente-General Bohm. As qualidades militares e administrativas que sempre evidenciou, colocam-no como uma das maiores figuras portuguesas no sul do Brasil, tendo desempenhado a função de Governador do Rio Grande de São Pedro no período de 1780 a 1801.

CORRESPONDÊNCIA AO VICE-REI
"Ilmo. Exm. Sr.: quando V. Ex. foi servido encarregar-me o governo deste Continente do Rio Grande, dignando-se ouvir o meu parecer sobre o lugar fixo da sua capital, representei sinceramente a V. Ex. a impossibilidade de satisfazer então (por falta de conhecimentos) a respeitável ordem de V. Ex. reservando para ocasião mais oportuna a informação que até agora me não foi possível dar em matéria de tanta importância.
No ano de 1735 [data correta 1737] principiou o brigadeiro José da Silva Paes a povoação do Rio Grande, que em 1752 [data correta 1751], criou vila por ordem de Sua Majestade Fidelíssima o desembargador ouvidor da comarca da Ilha de Santa Catarina Manoel José de Faria. Ela foi invariavelmente residência dos governadores, senado da Câmara, provedoria da real fazenda, e por conseqüência até o dia 24 de abril de 1763, no qual a invadiram as tropas espanholas.
O comércio de muitos dos principais gêneros em que abunda o país, transportados facilmente por mar à capital do Brasil; a grande multidão de gado e de cavalos e mulas, cuja venda para a Capitania de S. Paulo, se praticava por preços avantajados; a possessão de mais de sessenta léguas de bom terreno em que se achavam situadas até a Angustura de Castilhos muitas estâncias consideráveis, começava a sua opulência no mesmo tempo em que experimentou o golpe e a desordem com que passou a domínio estranho; resultando desta fatalidade, a decadência anexa a semelhantes casos e continuada por espaço de treze anos que mediaram até a sua restauração no dia 1º de abril de 1776; não obstante, conserva ao presente (é verdade que quase todos reedificados e alguns construídos de novo) edifícios muito decentes, proporcionados aos fins a que se acham dedicados, como por exemplo,  a igreja, a casa da residência dos governadores, um armazém, o hospital, a ferraria, a casa de armas, dois corpos de guarda e os quartéis do forte de S. José da Barra. Entre o restante das casas dos moradores há poucas capazes, sendo a maior parte, ao péssimo uso do país, cobertas de palha e construídas de má madeira, sem reboque, forros, e quase sem pregos. O número, porém das casas tem-se aumentado e vai-se aumentando consideravelmente, não só com as muitas e numerosas famílias da Colônia, mas com alguns homens de negócio que, como não são pobres, fazem os melhores arranchamentos e hoje excedem de dois mil e quatrocentos os fregueses do Rio Grande, posto que muitos vivem em estâncias ou estabelecimentos separados, tendo semeado este presente ano 1.126 alqueires de trigo.
O Rio Grande é sem dúvida dos lugares mais sadios do Continente; o seu terreno produz com facilidade e abundância, não obstante o defeito das muitas areias (como lhe chama o vulgo, sem advertir que às areias anda anexa a esterilidade), as quais formam avultados combros tão imediatos à povoação, que se faz preciso evitá-los, e isto não é fácil de conseguir sem trabalho e indústria.
A sua defesa e conservação não pode afiançar-se mais que em uma de duas coisas, ou ambas juntas: uma profunda paz ou um respeitável corpo de cavalaria bem armado, pago e disciplinado, pois que do contrário a sua situação na margem meridional do Rio Grande, em uma campanha rasa, suscetível de facilíssimo acesso por meio de várias estradas batidas, sem padrasto, rio caudaloso e fortaleza, ou outro algum obstáculo, fariam infrutíferas quaisquer diferentes providências, tendo por limite o princípio de campo neutral, a quatorze léguas de distância, o insignificantíssimo arroio Taim, que eu presenciei seco, ou  por me explicar com mais verossimilhança, sem correr à praia.
Não há na vila do Rio Grande pedra; as madeiras de boa qualidade devem-se procurar a grandes distâncias e as indispensáveis fábricas de telha e tijolo principiam a produzir.
Os pastos pode dizer-se que são bons à vista da nutrição em que mantêm o gado e cavalhada; não é abundante de águas, se bem que não assusta semelhante falta a quem é prático  do país e acostumado a procurar-lhe remédio, que consiste em poços ou cacimbas, que a poucos palmos de profundidade brotam sofrível água.
A invasão do Rio Grande obrigou o governador Ignácio Eloy de Madureira a transferir interinamente a sua residência, e não menos a capital do Continente para o sítio de Viamão: conservaram este estabelecimento por espaço de dez anos seus sucessores José Custódio de Sá e Faria, Antonio da Veiga de Andrade e José Marcelino de Figueiredo, até que este, por ordem do Ilmo. e Exm. Sr. Marques do Lavradio, Vice-Rei que foi deste Estado, o mudou para Porto Alegre, então pequena povoação de casais das ilhas, denominada S. Francisco do Porto dos Casais, e hoje acrescentada com uma sofrível casa de residência dos governadores, alguns quartéis de tropa menos maus que os das outras guarnições do Continente, e várias casas de paisanos, que concorreram uns pela dependência dos despachos, e outros na esperança de adiantar o seu negócio.
A povoação de Porto Alegre está situada no centro do Continente sobre terreno sólido; tem abundância de pedra; por hora não é falta de madeiras suficientes e conserva a menos de quatro léguas de distância uma boa fábrica de telha e tijolo; a imediação em que está da Lagoa dos Patos lhe facilita as viagens, e transportes para as duas fronteiras do Rio Grande e Rio Pardo, e o socorrê-las dos armazéns reais, que, não sendo atualmente de consideração, servem contudo de remédio.
A freguesia de Porto Alegre, consta de mais de mil e quinhentas pessoas e no seu distrito semearam-se este ano quatrocentos e sessenta e três alqueires de trigo; goza proporcionalmente da pureza dos ares do país e o seu terreno produz também com bastante facilidade. Espero que, não obstante a falta de artifício e ornato das importantíssimas circunstâncias acima ponderadas, mereceram a V. Ex. o conceito de verdadeiras e despidas de encarecimento, servindo-se deliberar à vista delas com a retidão inseparável das determinações de V. Ex. cuja pessoa guarde Deus muitos anos. Vila de S. Pedro do Rio Grande, 22 de dezembro de 1780 – ao Ilm. e Exm. Sr. Luiz de Vasconcellos e Souza. – assinado Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara”.

A BIBLIOTECA RIO-GRANDENSE

     Uma cidade cuja historicidade está ligada aos períodos colonial, imperial e republicano preserva em seu patrimônio múltiplas experiências culturais. Um dos espaços de preservação da memória escrita é a Biblioteca Rio-Grandense que foi fundada em agosto de 1846 como um Gabinete de Leitura. Ao longo das décadas o acervo bibliográfico e de periódicos foi crescendo, tornando-se um dos mais importantes do Brasil.
        O documento de fundação do Gabinete de Leitura (Ata de Fundação) que daria origem a Biblioteca Rio-Grandense fez o seguinte registro daquele acontecimento: “Na sala do prédio sito à rua da Praia, de propriedade do Sr. Cândido Alves Pereira e onde funciona a sociedade bailante, por convite do senhor João Barbosa Coelho, reuniram-se, na tarde de 15 de agosto de 1846, os cidadãos João Barbosa Coelho, Manoel José da Silva Bastos, José Maria Pires de Carvalho, Serafim José Vasques, Francisco de Paula Cardoso, Thomé Rodrigues Vasques, José Marques Vaz de Carvalho Vicente Tourinho Filho, João Joaquim Fernandes Dias, Paulino Alves Granja, Manoel José Antunes Guimarães, João José de Andrade, Antônio Gomes de Oliveira Magano, Gaspar José Martins de Araújo, Antônio Luiz Machado, Francisco Pinto de Carvalho, Frutuoso Machado da Cunha, Manoel Coelho da Rocha Júnior, João da Costa Pinto, José Manoel de Lima, Manoel Luiz Cardoso Guimarães e Eduardo Augusto Machado – para fundarem o gabinete de leitura. Dentre os beneméritos conta a biblioteca os nomes do barão de Villa Isabel, Alfredo Luiz de Mello, Cipião Ferreira, João Luiz Viana, Benjamin Flores, dr Carlos Laudares, Luiz Alexandre Duarte, Arnaldo José Pereira, dr. Moisés Marcondes, Joaquim de Lima Frazão, José Marques Vaz de Carvalho, Carlos Ossola, Visconde Pinto da Rocha
        Fortunato Pimental ao visitar a Biblioteca na primeira metade da década de 1940, afirma que encontrou um esmerado serviço de fichário, estufas para desinfecção de livros, armários especiais para coleções de jornais, prateleiras estucadas, além de notável museu. “Vimos estantes literalmente ocupadas por livros e manuscritos raros, paredes cobertas por mapas, quadros científicos, retratos de homens ilustres nas artes e nas ciências guardados como relíquias de uma religião augusta, de um culto santo, cujo apostolado dignifica o homem e enobrece sua missão na terra, estreitando os laços de amor que vinculam a família humana. Aqueles livros contém em si a marcha da humanidade através dos séculos, conservando fotografadas para sempre as impressões de todos os tempos, e registram a tradição bíblica da grande família humana, desde o alvorecer do pensamento até ao mais intenso fulgor da inteligência e do gênio”, afirmou Pimentel.
Na década de 1940, contava a cidade do Rio Grande com algumas bibliotecas de menor porte como a da Sociedade Polonesa Águia Branca, fundada em 1896; da Sociedade Portuguesa de Beneficência, fundada em 1859; da Sociedade Espírita Luz Beneficiente, fundada em 1909; do Clube Saca-rolhas, fundada em 1878 e da União Operária, que remonta ao final do século XIX.

O Histórico da Biblioteca

         Segundo informações levantadas pelo historiador rio-grandino Edgar Fontoura, a data de fundação da Biblioteca Rio-Grandense é 15 de agosto de 1846, por iniciativa e apelo de Barbosa Coelho dirigido a um grupo da elite local quando de um encontro na residência de José Antonio Ramos. O nome inicial foi Gabinete de Leitura sendo o primeiro presidente Barbosa Coelho e o primeiro secretário Manoel Coelho da Rocha Júnior. Os estatutos foram aprovados nos dias 21 e 22 de setembro de 1846 e o primeiro bibliotecário foi o próprio Barbosa Coelho. O prédio inaugural situava-se num sobrado localizado à rua do Arsenal (rua Ewbank). A primeira compra de livros foi efetuada por Barbosa Coelho e a primeira doação foi realizada por Malaquias José Neto. Em 3 de novembro de 1847, a Biblioteca foi instalada no prédio nº 146, 2º andar, à rua da Praia (rua Marechal Floriano).Em 1866 mudou-se para a rua Direita (Bacelar). Conforme Fontoura, frente à difícil situação financeira para garantir a manutenção de suas atividades, surgiu o amparo do Barão de Vila Izabel, o qual tomou várias medidas para restabelecer o prestígio e o crédito da histórica instituição, assumindo a presidência desta em 14 de janeiro de 1878. No dia 4 de junho do mesmo ano, o Gabinete de Leitura foi extinto e surgiu a atual denominação Biblioteca Rio-Grandense. “O instituto perde então o seu caráter de sociedade privada, a sua feição original, assumindo as características de biblioteca popular. Ainda em 1878, A Biblioteca foi transferida para o segundo andar do nº 71 da rua Riachuelo. Ampliando sua atuação educadora, a partir de 7 de março de 1879, tem início as conferências literárias. A conferência inaugural foi proferida pelo então estudante do segundo ano da Faculdade de Direito de São Paulo, Joaquim Francisco de Assis Brasil. Este intelectual que teve um destacado papel político no Rio Grande do Sul, escreveu em 1882 uma história da República Rio-Grandense em direção a constituição de uma história popular de caráter regional. Em 1880, a Biblioteca contava com um acervo de 16 mil volumes o que é considerável para a época.
        A aquisição de um prédio mais espaçoso para a Biblioteca, ocorreu na gestão do Visconde Pinto da Rocha (quando a Biblioteca comprou da municipalidade um casarão localizado na esquina das ruas General Netto e Osório – antiga casa da Câmara). O governo municipal adquiriu um prédio (localizado na esquina das ruas General Netto e Floriano Peixoto – atual Prefeitura e antiga residência da família Tigre que fora construída em 1824 pelo comerciante Joaquim Rasgado, sendo após 1886 alugado para os clubes Diógenes e Saca-Rolhas) para a Intendência Municipal e Câmara de Vereadores. Finalmente, no ano de 1900, o chamado “prédio da Câmara” foi desocupado passando a constituir a sede que até hoje guarda o precioso acervo da Biblioteca. As ampliações e reformas ocorridas a partir da década de 1910, promoveram alterações radicais na funcionalidade e estilo do prédio que foi sendo adaptado as necessidades do acervo (ver foto interna da Biblioteca na década de 1920). Em 1917 a Biblioteca contava com 41 mil volumes elevando-se em 1943 a 83 mil.
       Portanto, a cerca de um século a atual sede da Biblioteca integrou-se à paisagem histórico-cultural da cidade, localizando-se na rua General Osório com Netto, no entorno histórico (Prefeitura Municipal, antigo Quartel, Mercado Público, Alfândega, Capela de São Francisco...) cujo centro é a praça Xavier Ferreira.
Biblioteca Rio-Grandense na década de 1970. Acervo: Fototeca Municipal Ricardo Giovaninni.