Com a
invasão e a ocupação espanhola durante treze anos (1763-1776) Rio Grande deixou
de ser, como vinha ocorrendo entre 1737 e 1763, a capital
administrativa do Rio Grande do Sul, passando estas atividades para Viamão e
posteriormente para Porto Alegre.
Numa analogia contemporânea a Porto Alegre, a
importância em sediar o centro administrativo revela-se na dinamização de
atividades comerciais e na circulação de numerário por parte de todo
funcionalismo envolvido na administração pública além das obras de
infra-estrutura essenciais para o funcionamento de uma capital. Rio Grande,
apresentando o único porto marítimo do estado, associado a centro
administrativo concentrando o governo estadual e a câmara de deputados, com
certeza viveria uma realidade diferenciada da atual, o que promoveria reflexos
na zona sul do estado. Situações hipotéticas relacionadas ao aumento da renda per capita mobilizariam novos padrões de
consumo, atraindo um grande número de indústrias e atividades de prestação de
serviços. Num exercício imaginativo podemos relacionar a Grande Porto Alegre
(trecho em direção a Canoas, São Leopoldo, Novo Hamburgo), com a metrópole
rio-grandina cuja cidade satélite seria Pelotas, interligadas por uma série de
novas cidades dormitórios que surgiriam nestes sessenta quilômetros que separam
os rio-grandinos dos pelotenses.
Obviamente
este exercício intelectual é polêmico. Alguns dirão que as condições
históricas, o meio físico (vento, areia, umidade, insalubridade), a mentalidade
da população, a proximidade do espaço do latifúndio escravista ligado a
pecuária, o papel militar da cidade e a fronteira com a geopolítica platina a
tornam propícia ou vulnerável. Os mais diferentes argumentos somente
confirmariam que esta polêmica é extremamente interessante para resenhar o que
os rio-grandinos e os estrangeiros
pensam sobre a cidade.
Pois
esta discussão não é mera ficção
literária mas está expressa numa obra historiográfica e foi objeto de estudo
pelo governo português a mais de duzentos anos atrás, como constata-se a
seguir.
Sebastião
Francisco Bettamio terminou de escrever em 19 de janeiro de 1780 a Notícia Particular do Continente do Rio Grande do Sul, uma das
fontes históricas mais importantes relativas à vida econômica e social da
Capitania na segunda metade do século 18. Bettamio viera de Portugal para o
Brasil em 1767 afim de introduzir novos métodos de contabilidade fiscal. Em
1775, auxiliou o general João Henrique Böhm, comandante das tropas
luso-brasileiras na luta contra a ocupação espanhola, organizando as linhas de
suprimento.
Bettamio
dedicou uma considerável parte de sua Notícia
a então Vila do Rio Grande de São Pedro, a qual, segundo ele, “tanto tem
custado à Coroa Portuguesa, parece de justiça se conserve, e se passe para ela
a capital, mudando-se de Porto Alegre as pessoas que formam o Estado Civil, e
restituindo-se a antiga posse em que estavam na Vila”. A proposta de trazer a
capital para Rio Grande, estava ligada a proximidade da barra, o acesso para a
navegação marítima e os contatos com o interior da Capitania. “Dirão que o
terreno é indigno pelas muitas areias que formam com combros formidáveis, e que
estes cada vez mais se vão aproximando da Vila, sepultando os edifícios dela, o
que não duvido sucede, e sucederá se não houver algum trabalho para impedir.
Se, porém, considerarem as utilidades que se seguem de ser ali a capital do
continente, somente pela proximidade da barra, e sem atender às mais que
resultam aos povos vizinhos, que são já em grande número, vir-se-á a conhecer
que se deve empregar todo o cuidado na conservação e aumento da Vila”. Rio
Grande, por sua posição estratégica “é sempre mais defendida, e se pode cobrir
com alguma fortificação no sítio chamado do Estreito”. Essas razões
evidenciavam que é em Rio
Grande que se deve trabalhar e “por todos os meios que
parecerem conducentes para o seu estabelecimento, povoação, aumento e cultura”.
O autor
propos ao Governador da Capitania, uma série de providências para garantir o
crescimento da Vila do Rio Grande, medidas que se tivessem sido implementadas,
mudariam radicalmente o ritmo do desenvolvimento histórico local. Ainda,
elaborou vinte e nove pontos voltados a ocupação urbana através de obras
básicas e do enfrentamento dos problemas diários da população. Bettamio
acreditava que o Governador do Continente, a Câmara, os magistrados e todo o
corpo civil deveriam ser obrigados a morar na Vila. O primeiro ponto da
argumentação define a sua essência: que seja ordenado que a capital do
Continente seja na Vila de São Pedro, “da qual se não possa mudar por pretexto
algum, fazer-se a este respeito representação. Em quanto se não assentar
fixamente nesta resolução, e que não fique arbítrio dos governadores poderem
mudar a sua residência, sempre aqueles moradores se conservarão na esperança de
melhorar, ou trocar de sítio, e nunca farão estabelecimentos permanentes, nem
casas a que se possa dar este nome, mas sim choupanas para viver algum tempo”.
Escrevendo
sob o efeito da ocupação espanhola que a somente três anos encerrara, Bettamio
defendeu a fortificação militar e o povoamento, insistindo na necessidade em
concentrar a população nas imediações deste centro urbano a fim de garantir sua
manutenção no caso de novos ataques castelhanos. Os problemas ligados a carência
de água e ausência de cobertura vegetal, de depósitos para conservação dos
produtos da lavoura, do empobrecimento acarretado pela luta contra os
espanhóis, da falta de material não perecível para construção e do contínuo
movimento da areia, são alguns dos problemas enfrentados pela população na
segunda metade do século 18 os quais Sebastião Bettamio buscou soluções,
demonstrando um conhecimento do cotidiano da localidade.
Quanto à proposta de transferência da capital
de Porto Alegre para a Vila do Rio Grande, a primeira foi mantida com
argumentos ligados a facilidade de defesa militar, a centralização do
território, o solo propício à agricultura, a existência de madeiras para
construção civil e naval, a abundância de água potável entre outros fatores.
Na encruzilhada
histórica do ano de 1780, o peso político não favoreceu Rio Grande, decisão que
teria mudado todo o seu ritmo de desenvolvimento e de diferenciadas
experiências somente projetáveis no exercício intelectual da imaginação.
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