Porto do Rio Grande em 1908

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sexta-feira, 23 de junho de 2023

REVOLUÇÃO FARROUPILHA

 

Cavalaria Farroupilha. Pintor Guilherme Litran. Acervo: Museu Júlio de Castilhos. 

Façamos algumas reflexões que permitem caracterizar a Revolução Farroupilha no viés da explicação enquanto processo histórico. Ou seja, a formação política, econômica, social e ideológica do Rio Grande do Sul a partir desta construção no século XVIII até a década de 1830.

A base interpretativa se faz na pesquisa da historiadora Sandra Pesavento e outros aportes historiográficos. 

O texto foi elaborado para os alunos da disciplina História do Rio Grande do Sul I como reflexão preliminar do tema. 

Para Sandra Pesavento, a Revolução Farroupilha (1835-1845) foi o maior conflito interno enfrentado pelo Império Brasileiro no século XIX. Este foi o evento político-militar que recebeu o maior destaque da historiografia tradicional.

Conforme a autora, a história é um processo cumulativo de verdades, equidistantes tanto da postura que advoga a existência de uma verdade absoluta quanto da que admite a existência de tantas verdades quantas forem os historiadores. As divergências teóricas não só representam frutos da atividade humana inserida num contexto histórico determinado como, uma vez contrapostas, estimulam o debate e propiciam, por sua vez, a realização de novas pesquisas e estudos.

A Revolução Farroupilha se insere no processo de descolonização que ocorreu na passagem do século XVIII para o XIX. O sistema capitalista, ao se desenvolver, promoveu mudanças nas áreas coloniais. O desenvolvimento do sistema colonial do Antigo Regime, conforme Fernando Novais, promoveu os fatores de sua superação. No século XIX a economia se diversifica, e novos grupos sociais surgem, com interesses próprios que passam a se contrapor aos metropolitanos, formulando soluções políticas alternativas para resolver os problemas que se configuram.

O nível político é o lugar privilegiado de enfrentamento as normas de dominação colonial. Com as independências das colônias latino-americanas, as elites locais passam a assumir o controle das decisões políticas das jovens nações, apesar da dependência econômica externa se perpetuar. A partir da terceira década do século XIX, a elite que controla o Brasil fundamentado numa política centralizadora é a cafeeira. Os interesses das elites que dominam o país estão voltados em manter o controle das decisões políticas, garantindo a fidelidade dos cargos executivos regionais através da nomeação dos presidentes da província. Estas elites que comandavam o Brasil buscavam também favorecer o centro através da definição de uma política econômico-financeira nacional, exercendo desta forma a hegemonia sobre o país.

Mapa do Teatro da Guerra (1839). http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart259202/cart259202.jpg

No Rio Grande do Sul das primeiras décadas do século XIX, o contexto é de domínio do componente militar-fronteiriço e o domínio da pecuária na economia. O enfrentamento com os castelhanos define um padrão de comportamento autoritário para a elite dirigente e um contorno militarizado para a sociedade sulina. As atividades da pecuária extensiva e da charqueada escravista, cuja produção era voltada ao mercado interno brasileiro, promoveram uma posição periférica das elites rio-grandenses na economia brasileira. Afinal, a Província não se enquadrava numa economia colonial de exportação e era dependente dos preços oferecidos pelo centro, da capacidade de absorção do mercado interno e, inclusive, da política tributária, orientada pelos interesses nucleados na economia agroexportadora central (Rio de Janeiro e São Paulo). A sociedade rio-grandense não era tão aristocratizada quanto aquela vinculada à economia de exportação.

 O latifúndio pecuarista, onde a criação do gado era extensiva, demarcava-se por limites naturais o que exigia garantir a sua posse pelas armas. A relação assalariada não era dominante para o pagamento da peonada. Os grupos que se sedentarizaram e estabeleceram estâncias de criação gado, formando os troncos seculares das tradicionais famílias sulinas, constituindo os clãs familiares, que assumiram no contexto local uma situação de predomínio face ao monopólio da terra e do rebanho. Foi à posse da terra e do gado o elemento fundamental que marcou a vinculação da camada senhorial nascente com o Estado, primeiramente lusitano e posteriormente Imperial brasileiro. Forjavam-se através da recompensa com postos militares na defesa da fronteira e com títulos de nobreza, os laços de solidariedade entre senhores de terra e gado do Rio Grande do Sul e o Estado Brasileiro.

Charqueada em Pelotas. Aquarela de Jean Debret. 

As charqueadas operavam como empresas escravistas e produziam, ao longo do século XIX, os principais produtos de exportação sulinos: charque, couro e sebo. A charqueada exigia um investimento de capital superior ao da criação extensiva de gado. O Rio Grande do Sul era uma economia regional baseada na criação extensiva de gado e na charqueada escravista, produzindo para o abastecimento do mercado interno brasileiro.

Os cafeicultores procuravam um baixo preço do charque para alimentação da escravaria através da imposição de baixas tarifas alfandegárias permitindo a entrada dos concorrentes platinos no mercado brasileiro em detrimento dos charqueadores. O Rio Grande do Sul era duplamente lesado, pois, para garantir as rendas provenientes da cobrança de impostos pelas alfândegas, o Império cobrava altos impostos de importação para insumos como o sal. A relação entre a economia agroexportadora central e as economias voltadas para o mercado interno eram conflituosas.

A política Imperial de colonização estrangeira no Sul, com a vinda de imigrantes alemães, a partir de 1824, tinha como um dos objetivos a constituição de sociedade de grandes proprietários rurais fiéis ao governo central. A dialética RS e o Brasil, giravam em laços de solidariedade fundadas na manutenção da propriedade da terra e escravos, no reconhecimento pelo centro do papel militar-fronteiriço gaúcho e da insatisfação das elites pecuaristas-charqueadoras com a política Imperial, resultando num relacionamento fundado no equilíbrio instável, por laços de complementaridade e conflito.

Abate do gado em uma charqueada. Aquarela de Jean Debret. 

Após o Tratado de Santo Ildefonso, em 1777, ocorreu a expansão da fronteira em proveito da pecuária rumo ao sul do RS. Com a anexação da Banda Oriental no governo de D. João VI, os interesses da oligarquia local, proprietária de terra e gado foi favorecido pelo acesso aos rebanhos e terras do Uruguai. Bento Gonçalves, assim como vários latifundiários, possuíam propriedades no RS e também no Uruguai. Porém, com a Independência do Uruguai, em 1828, os interesses dos rio-grandenses foram prejudicados.

Com o período regencial (1831-1840) ocorre a hegemonia da oligarquia cafeicultora do Vale do Paraíba do Sul que defende uma política centralizadora e unitária, significando perda de poder político. A subordinação do RS ao centro acarretará na Revolução Farroupilha! O centro exercerá a opressão no plano econômico e político. A questão estrutural da subordinação da economia regional de subsistência à economia central de exploração será explica pela elite local devido à submissão política a Corte. A elite local criticava a injusta tributação sobre o charque, desta forma favorecendo o charque platino e prejudicando o rio-grandense. Criticava também que a Província acabava retendo muito pouco do que produzia, pois o Centro é que definia quanto voltava para o Rio Grande do Sul.

Lenço Farroupilha. Acervo: Museu Júlio de Castilhos. 

O contexto de eclosão da Revolução Farroupilha, em termos de Europa, está ligado a perda de legitimidade do Estado Absolutista e avanço do Estado Liberal, constitucional e representativo, monárquico ou republicano. No plano político o liberalismo implicava na minimização da interferência do Estado na órbita econômica, garantindo o seu livre funcionamento, quanto na ideia de que o poder devia emanar de sua legítima fonte: o povo. Em nível de discurso liberal se afirmam os direitos individuais e a liberdade e na prática efetiva se garantem o direito de propriedade e acumulação, garantindo desta forma a desigualdade social entre proprietários e não-proprietários.

Os liberais brasileiros recolheram da ideologia importada aqueles elementos condizentes com suas reivindicações mais imediatas, ou seja, o liberalismo econômico que tinha o significado de romper monopólios e estabelecer o livre comércio. A contrapartida deste liberalismo, é que o poder de direito era entregue aos representantes de fato: os proprietários de terras e escravos.

No ideário farroupilha, o liberalismo justificaria a rebelião contra um poder que tanto ameaçava a propriedade quanto à soberania dos rio-grandenses. A Revolução Farroupilha não foi a única, mas foi a mais longeva (1835-1845) rebelião do período regencial que se insurgiu contra o centralismo da Corte e o unitarismo de mando imposto pela oligarquia cafeicultora do Rio de Janeiro. A rebelião dos farrapos conduziu à proclamação da República Rio-Grandense em 1836.

Conforme Moacyr Flores a “Federação não significa um grupo de províncias autônomas unidas sob um poder central, mas um grupo de estados independentes, atendendo suas aspirações regionais”. Através do controle do legislativo local, os rio-grandenses pretendiam minimizar a subordinação política com relação à Corte, contornando os efeitos de uma política lesiva a seus interesses. Cabia à Assembleia Legislativa velar pela obediência à constituição e combater os abusos da autoridade do executivo.

Alegoria Farroupilha. Acervo: Museu Júlio de Castilhos. 

Locke e Montesquieu, influenciaram o pensamento farroupilha na concepção da divisão de poderes e garantia a vida, a liberdade e a propriedade do cidadão. Os conceitos democráticos de Rousseau não estavam em sintonia com a sociedade pastoril, autoritária, patriarcal e escravocrata do RS.

Apesar da presença republicana, o pensamento farroupilha não defendia as teses de Artigas de expropriação e repartição das terras para os desfavorecidos do campo. O movimento farroupilha circunscreveu-se aos limites da classe dominante, pecuarista, latifundiária e escravocrata. As ideias dos farroupilhas expressariam o aparecer social dos revoltosos: libertários, defensores dos direitos individuais dos cidadãos, respondendo pelas aspirações do povo diante de um poder opressor.

A Revolução Farroupilha não se constituiu numa rebelião popular, que na defesa de seus interesses privados posicionou-se em armas para resistir à política econômica e à dominação do poder central. A demonstração de força da região era dada pela capacidade de resistir ao centro, e a justificativa da rebelião passava pelo endosso seletivo das ideias liberais da época, adaptadas aos interesses e problemas locais.

Em síntese, a formação histórica do Rio Grande do Sul no período colonial se fundou na grande propriedade de terras (estância e latifúndio); na mão-de-obra escrava e na peonada não assalariada; na sociedade militarizada voltada ao controle da fronteira platina frente a presença dos espanhóis ou dos caudilhos platinos; na economia pecuarista de criação extensiva do gado ou das charqueadas.

Proclamação da República de Piratini. Pintura de Antônio Parreiras.
Acervo: Museu Antônio Parreiras. 

O controle militar da fronteira através da célula das estâncias pecuaristas exigiu do governo metropolitano português concessões aos proprietários frente a irregularidades no pacto de submissão familiar frente ao Estado Patrimonialista Português. O alto custo de um exército luso-brasileiro nas fronteiras levou a aceitar o papel militar-fronteiriço das elites terratenientes rio-grandenses. O Rio Grande do Sul se torna uma estalagem militar do Império que acaba não recebendo sua devida atenção em diversos períodos. O interesse das oligarquias do eixo cafeicultor do Vale do Paraíba (Rio de Janeiro) e do Oeste Paulista em obter um charque barato para seus escravos, assim como também é o interesse das elites do nordeste brasileiro, faz com que o gado e o charque sejam desvalorizados em termos de cotação de preços. O charque uruguaio chega ao mercado brasileiro por um custo menor. Os rio-grandenses exigem uma política protecionista ao charque gaúcho com taxas de importação elevados para o charque platino. Acreditam que uma Assembleia Legislativa forte poderia levar as elites econômicas regionais para decidir a redução de impostos e políticas tributárias que favorecessem a economia regional. Queriam eleger o presidente da Província que era indicado pelo Centro. Porém, o governo central, comandado pelo eixo cafeicultor Rio-São Paulo não desejavam estas concessões que também eram buscas por várias outras províncias brasileiras. Esgotando as negociações por via política irrompe a Revolução que é duramente reprimida. 

Combate na Revolução Farroupilha. Autoria de José Washt Rodrigues. 


O resultado foi uma resposta vigorosa de parte do Rio Grande do Sul (farroupilha) frente a outra parte que continua leal ao Império. Tivemos uma luta fatricida entre irmãos e não apenas o levante homogêneo de toda a Província contra o Império Brasileiro. Dez anos de lutas que conduziu a assinatura de paz que possibilitaria trazer o Rio Grande do Sul ao antigo pacto: voltar a garantir com fidelidade as fronteiras frente a tensa e instável situação das repúblicas platinas no Uruguai, Argentina e Paraguai. Esta tensão geopolítica se estendeu entre 1839 (Guerra Civil no Uruguai) até 1870 (final da Guerra do Paraguai). 

Paz de Ponche Verde (1845). Acervo: Arquivo Nacional. 

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