Porto do Rio Grande em 1908

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sábado, 23 de maio de 2020

UMA HERANÇA NA FRANÇA - A HERDEIRA

      Entre as notícias publicadas em 1905 estava a decisão judicial pelo recebimento da herança de Timoleon Zalony por uma "suposta ex-escrava" do súdito francês. De fato a herança foi deixada para um "ex-escravo" mas não recebida por ele. 
       
     A herança chegou tarde para o escravo João Othelo que foi emancipado quando Zalony partiu para a França. A alforria pode ter sido concedida por volta de 1860-61 e longas quatro décadas transcorreram. João já devia ter falecido e a herdeira passou a ser Bemvinda Maria da Conceição e seus filhos.  Bemvinda, ao contrário da matéria do jornal, não deve ter sido escrava de Zalony, e sim, casada com João Othelo. 


      Olavo Bilac escreveu sobre este assunto em seu livro Crítica e Fantasia (Lisboa: Livraria Teixeira, 1904, p. 319-321). O poeta e cronista faz uma empolgada defesa de Zalony e remete a uma questão debatida nos primórdios do século XX: que a escravidão era uma página a ser esquecida e a documentação eliminada, o que Bilac discordava frontalmente.
    Importante: a transcrição respeitou integralmente a grafia do livro. 

   "O Jornal do Commercio transcreve dos jornaes do Rio Grande do Sul, uma noticia de grande interesse emocional. Trata-se de um raro, de um singular, de um extranho caso de gratidão. A gratidão já é um sentimento tão pouco vulgar, que sempre causa certo espanto. Mas, aqui, o espanto é maior: porque no caso maravilhoso, a gratidão vem de um homem rico para um homem miserável, de um senhor para um escravo. 

   Timoléon Zalony, que por muito tempo viveu, e enriqueceu, no Rio Grande do Sul, possuia um escravo, João Othelo, cujos serviços especialmente estimava. Assim que fez fortuna, Zalony deu liberdade ao escravo, e retirou-se para a Europa. Mas, de lá, continuou a interessar-se pela vida do seu antigo servidor, e mandava lhe com pontualidade uma pensão mensal. Agora, fallecido Timoléon Zalony, e aberto o seu testamento, viu-se que o finado deixou a totalidade dos bens ao ex-escravo: e as auctoridades francezas acabam de pedir ás auctoridades brasileiras que procurem esse afortunado liberto, ou os seus herdeiros, para que as disposições testamentarias do morto possam ser cumpridas... 

    Creio que nunca se viu cousa tão extraordinaria: um senhor que ama o seu escravo, que o liberta, que lhe sustenta e ampara a vida, e que ainda lhe deixa em testamento a fortuna. 

   Ah! por esse único, por esse prodigioso, por esse estupendo caso de gratidão, — quantos outros de ingratidão feroz, de criminosa indiferença, de perversa crueldade! 

     Não tem conta os homens do Brasil que, na sua primeira infancia, foram amamentados, carregados ao collo, acariciados e amimados por velhas pretas,— amas de leite ou amas-seccas. Quantos d’esses homens serão capazes de saber que fim levaram, onde foram viver e morrer, onde jazem sepultadas essas mães-pretas — tão carinhosas, tão boas, que, como escravas, eram forçadas a separar se dos proprios filhos para amamentar os filhos das senhoras, e que n’estes concentravam, resignadamente e abnegadamente, todo o seu carinho e todo o seu affecto? 

   Em regra geral, quando acabava o periodo do aleitamento, as mães-pretas voltavam para o eito ou eram vendidas; algumas vezes, os seus serviços eram recompensados com a carta de alforria; — mas não eram muitos os casos, em que os sinhôs-moços amparassem até a morte as suas amas... 

   Lendo agora, a noticia do caso de Zalony, lembro-me d’essa infinita multidão de mulheres martyres. . . Quantas d’ellas terão merecido das mães verdadeiras, que substituíram, e dos homens a quem deram o seu leite, uma prova de carinho e de gratidão, como essa que Zalony deu ao seu antigo escravo ? 

    Dizem por ahi que a escravidão é uma pagina horrivel, que convem rasgar e esquecer. . . Não penso assim. E bom que conservemos e releiamos sempre essa pagina, afim de que, cultivando a nossa bondade, possamos remir a grande culpa das gerações que precederam a nossa. O melhor meio de resgatar um crime, não é esquecel-o: é compensal-o com um progresso moral incessante, com uma incessante ascensão para o bem e para a bondade..." (Olavo Bilac).

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