*Capítulo do livro de
Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a
cidade sob o prisma europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995.
Vereker
Ao escrever The British shipmaster’s hand book to Rio Grande
do Sul[1],
Vereker atuava complementarmente à sua ação como representante diplomático e
sua ação como escritor estava a contento com os desígnios britânicos, de acordo
com o pressuposto de que conhecer é um dos melhores caminhos para dominar, numa
política que a Inglaterra adotava tanto para as suas colônias propriamente
ditas, quanto para as regiões onde exercia preeminência econômico-financeira,
não sendo, portanto à toa, o constante envio de expedições científicas inglesas
(prática também usual ente as demais potências) para os mais longínquos locais
do mundo, em busca de aprimorar qualquer conhecimento que facilitasse e até
legitimasse (tendo em vista o argumento da necessidade de levar-se a
“civilização” aos povos “atrasados”) as práticas expansionistas das nações
hegemônicas capitalistas. Neste sentido, o manual de Vereker constituía-se num
pequeno fragmento que representava, ainda que em diminuta escala, as práticas
imperialistas dos britânicos naquela época, constituindo-se verdadeira
afinidade entre sua atuação político-diplomática e os pendores científicos[2].
De acordo com essa conjuntura, o próprio autor, ao explicar seu manual,
esclarecia os objetivos de seus escritos. Segundo ele, suas observações não
pretendiam regular os procedimentos dos capitães, e sim, apenas dar-lhes alguma
assistência, habilitando-os, com a devida atenção, às alterações que poderiam
ocorrer, para avaliar o curso adotado pelos práticos. Esperava o
cônsul/escritor que seus registros pudessem ser proveitosos aos navegantes britânicos
e outros interessados no comércio do Rio Grande do Sul, e que estes pudessem
ajudar, mesmo que de forma limitada, na promoção desse comércio[3].
Uma das grandes preocupações de Vereker quanto à costa do Rio Grande, era a de
alertar para os seus perigos, pois, segundo ele, a máxima atenção deveria ser
dada para o acerto da posição do navio em latitude e longitude, uma vez que
existiam poucas partes do mundo em que o navegador devesse ter tanta certeza de
seus cálculos[4].
Predominantemente descritivo e técnico, o trabalho de Henry Vereker
detalhava vários aspectos acerca do litoral rio-gradino, originando-se suas
asserções do estudo da literatura já existente e das observações que realizou
no contato epidérmico com o ambiente retratado. Do conjunto de facetas
registradas pelo cônsul, podem ser destacadas algumas[5].
A entrada pela Barra foi uma de suas preocupações centrais, como ao descrever
que todos os bancos que circundavam a Barra eram compostos de areia fina, e
constantemente ocorriam alterações, mas não em proporção tão grande como se
imaginava. Complementava a informação com uma série de observações para as
quais chamava atenção de as mesmas não deveriam ser tomadas como normas pelos
navegantes, mas apenas como referência para, com a devida atenção às alterações
que poderiam ocorrer nos bancos de areia, observar o curso adotado pelos
práticos.
Ainda no que tange ao tema, observa o
britânico que os bancos de areia que se formavam na região da Barra eram de
pura areia fina, porém, quando permaneciam fixos por certo período, a parte
superior tornava-se muito compacta e dura, formando uma espécie de crosta,
entretanto, por baixo, a areia era solta, como areia movediça. Alertava que,
quando um navio chocava-se com o banco, era como se colidisse com rocha, exceto
porque o banco era um pouco mais elástico, de maneira que, freqüentemente o
navio batia várias vezes, ficando em situação ainda mais crítica, às vezes
ultrapassando o obstáculo, às vezes sendo posto fora de perigo. Nessa
perspectiva, demarcava as possibilidades, ou seja, se um navio encalhado
atravessasse sobre a superfície do banco, rapidamente ficaria preso na areia;
logo começaria a acumular areia no lado em que batia a arrebentação, o que
dificultava o socorro eficiente, ou mesmo a aproximação; ou, se enterrado, como
acima suposto, e com carga pesada, era provável que afundasse na areia até ser
totalmente engolido.
Indicava o manual que, se por
infelicidade o navio ficasse encalhado nos bancos, o comandante deveria
imediatamente, pois cada momento de demora seria crucial, solicitar socorro da
praticagem e um rebocador a vapor; lançar âncoras na direção em que houver mais
probabilidade de desencalhar o navio, considerando os ventos, as correntes e os
canais, e puxá-lo com as âncoras. Ainda explicava que se deveria tomar
providências para aliviar peso da embarcação, de acordo com os princípios
usualmente adotados. Apontava também para possíveis procedimentos errôneos,
como no caso de muitos comandantes que, ao encalhar, começavam por alijar
carga, mas geralmente isso fazia com que a embarcação, conforme fosse ficando
mais leve, avançasse mais sobre o baixio, diante do que havia perda de
embarcações por esse motivo, quando poderiam ter sido salvas se a carga tivesse
permanecido a bordo.
Vereker chamava atenção para a
existência de dois fundeadouros fora da Barra – um a sueste (com sete braças de
profundidade) e o outro a su-sudoeste do farol, com seis braças, em fundo de
vasa e areia, com boa ancoragem. A esse respeito, explicava que o fundeadouro a
su-sudoeste parecia o mais adequado, pois proporcionava mais oportunidade de
entrar na Barra, sendo aconselhável que o navio estivesse fundeado, se
possível, de modo que o mestre pudesse observar os sinais e aproveitar a
primeira oportunidade de entrar. Detalhava que, às vezes os navios tinham de
permanecer fora da Barra por tempo considerável devido à falta de calado ou de
ventos favoráveis, avisava ainda que, todavia, em nenhum destes fundeadouros a
âncora deveria permanecer por muito tempo no mesmo lugar, pois poderia afundar
totalmente na areia, e se tornaria difícil içá-la em uma emergência, de modo
que, a cada dois ou três dias a âncora deveria ser levantada e novamente
lançada, e o comandante deveria estar preparado para marcar a âncora com uma
bóia eficientemente, em caso de, se julgar necessário, soltá-la, por algum
motivo.
Ainda sobre o acesso à cidade, relatava o cônsul/geógrafo que, tão logo
o navegante avistasse totalmente o farol do Rio Grande, deveria içar os sinais
do calado do navio, devendo para isso estar munido de uma bandeira vermelha,
uma azul, uma branca e uma flâmula ou galhardete azul. E continuava explicando
que, estando hasteados os sinais e determinada a posição do navio, o mestre
deveria tomar o rumo do farol, levando em consideração sua posição, os ventos e
as correntes, e, conforme aproximava-se, o navegante distinguiria primeiro os
sinais na torre de sinalização perto do farol, ou na catraia da praticagem,
dentro da Barra. Destacava também que a estação da catraia da praticagem estava
a pouca distância dentro da Barra, e o curso de entrada deveria ser primeiro
direcionado a esse barco, de modo que, ao aproximar-se, o navegante avistaria
os sinais de calado içados na catraia, e deveria guiar-se por esses sinais, não
mais pelos sinais da torre, pois estes eram derivados dos sinais da catraia.
Também sobre os extremos cuidados necessários ao entrar na urbe
portuária, Vereker relatava que, ocasionalmente havia outra catraia de
praticagem postada no lagamar entre a Barra e a entrada do fundeadouro, fazendo
esse barco a sinalização do mesmo modo que o outro, mas sem os sinais de
calado. Nesse quadro, alertava que, se o segundo barco estivesse em sua
estação, o mestre deveria guiar-se por esses sinais, imediatamente após passar
pela primeira catraia, mas, se a segunda catraia não estiver no local, deveria
proceder de acordo com os sinais da primeira catraia, e, finalmente, se nenhuma
das catraias fosse avistada e o sinal de entrada continuasse desfraldado, o
mestre deveria agir totalmente baseado nos sinais da torre, a partir da qual
deveriam ser emitidos sinais de bandeira vermelha para indicar a direção, como
nas catraias, embora isso não fizesse parte dos serviços e só era feito em
casos extraordinários. O representante inglês destacava ainda a existência de
um sistema de telegrafia entre a vila da Barra e a cidade do Rio Grande, pelo
qual a comunidade poderia informar-se diariamente sobre os navios que entravam,
saiam ou permaneciam fora da Barra, ou ainda outras ocorrências. Detalhava que os
sinais eram exibidos em mastros; um mastro localizava-se junto ao trapiche em
frente ao farol, denominado trapiche da praticagem; o segundo, a meio caminho
entre esse ponto e a cidade do Rio Grande, na margem oeste do rio, e o terceiro
no teatro do Rio Grande. Dessa forma, complementava o autor que o mestre que
estivesse para entrar deveria desconsiderar os sinais feitos no mastro junto ao
trapiche da praticagem, pois estes destinavam-se tanto aos navios que
estivessem para sair quanto à telegrafia, mas era bom que o navegante soubesse
da existência desse telégrafo, pois poderia, através da praticagem,
comunicar-se com seu cônsul ou com o consignatário.
Descrevendo o Porto do Rio Grande do Sul Prendergast Vereker explicava
que ele compreendia o espaço navegável desde a Barra, ao sul, até a extremidade
oeste da cidade do Rio Grande, a noroeste, e até o extremo norte da cidade de
São José do Norte, a nordeste, complementando ao informar que a distância desde
a Barra até cada um destes pontos referidos era de aproximadamente dez milhas,
havendo nesse espaço quatro fundeadouros: o primeiro, na Barra, a oeste do
farol, onde todos os navios permaneciam depois de entrar, aguardando visitação,
etc.; o segundo, na bóia (uma grande bóia vermelha, na cabeceira dos canais que levavam respectivamente
ao Rio Grande e a São José do Norte), onde usualmente fundeavam os navios com
destino ao Rio Grande que tivessem bons ventos para subir o rio mas não para
tomar o rumo da cidade, ao sul, esperando vento favorável ou um rebocador a
vapor; o terceiro fundeadouro era o de São José do Norte, e o quarto, o do
porto do Rio Grande do Sul, descrevendo detalhadamente o autor as melhores
formas de acesso a cada um deles.
O cônsul buscava deixar evidenciadas as diferenças históricas e de
tratamento governamental entre os portos do Rio Grande e de São José do Norte.
No que tange à parte operacional, esclarecia que os navios com carga
exclusivamente de sal ou carvão tinham permissão para continuar descarregando
no fundeadouro de São José do Norte, que era muito melhor do que o do sul, mas
era exigido que os navios com carga geral descarregassem ao sul (Rio Grande),
permitindo-se que fosse descarregada parte em São José do Norte apenas
suficiente para diminuir o calado, a fim de adentrar o canal raso para o sul, e
essa carga aliviada deveria ser imediatamente transportada em barcaças para o
Rio Grande. No mesmo sentido, relatava que as cargas de cinza de ossos e lastro
geralmente eram carregadas em São José do Norte, e lá, devido ao fundeadouro
com maior calado, a maioria dos navios britânicos completavam suas cargas de
couros ou outras mercadorias. E arrematava, informando que o canal ao sul
usualmente admitia navios de nove pés de calado, ao passo que o fundeadouro ao
norte é adequado para qualquer navio que pudesse transpor a Barra e tivesse
calado médio de seis braças. Indicava Vereker a prudência de contar com um
prático a bordo e descrevia em minúcias as regras, procedimentos e melhores
momentos para realizar a entrada no Porto.
Assim, Henry Prendergast Vereker inter-complementava sua atuação como
cônsul e estudioso, em ambos os casos a serviço da Coroa, tanto que sua obra
foi muito apreciada na Inglaterra, esgotando-se, em pouco tempo, duas edições[6].
Revelava-se o interesse britânico em conhecer cada um dos microcosmos que
compunham o vasto contexto mundial, alvo da sua ação imperialista. A ação de
Vereker como porta-voz da diplomacia da canhoneira acabaria por trazer à sua
pessoa uma visão bastante negativa no Brasil, no Rio Grande do Sul e na cidade
portuária onde morou, de modo que seu livro ficarei de certo modo obscurecido
pelos seus procedimentos nos episódios da Questão Christie. Ainda, assim,
Abeillard Barreto considerou que o representante diplomático produziu um
trabalho de grande mérito, pois, dentro do assunto que se propôs a estudar, ou
seja, como roteiro da costa gaúcha, foi a melhor e mais completa descrição que
dela foi feita à sua época[7].
[1] VEREKER, Henry Prendergast. The British
shipmaster’s hand book to Rio Grande do Sul. London: Effingham
Wilson, Royal Exchange, 1860.
[2]
ALVES, Francisco das Neves. Henry Prendergast Vereker e seu tempo. In: VEREKER,
Henry Prendergast. Vereker, 1860:
roteiro da costa do Rio Grande do Sul. Rio Grande: Ed. da FURG, 2001. p.
7.
[3]
VEREKER. 1860. p. 20 e 39.
[4]
VEREKER. 1860. p. 16.
[5] A
partir de então, todos os trechos citados foram adaptados a partir da tradução
realizada por João Reguffe, em VEREKER. 2001.
[6]
Jornal O Commercial. Rio Grande, 21/julho/1860.
Citado por João Reguffe em VEREKER. 2001.
[7] BARRETO. 1976. v. 2. p. 1389.
Túmulo de Vereker em Binstead, Inglaterra. https://pt.findagrave.com/memorial/141522325/henry-prendergast-vereker |
Nenhum comentário:
Postar um comentário