*Capítulo do livro de
Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a
cidade sob o prisma europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995.
Vereker
O britânico Henry Prendergast Vereker (1824-1904) era de
ascendência nobre e bacharelou-se pelo Trinity College, em Dublin. Atuou na
cidade do Rio Grande como cônsul e agente postal a serviço de seu governo.
Ficou mais conhecido a partir da Questão Christie, que levou à ruptura
diplomática entre Brasil e Inglaterra, tendo ele participação decisiva numa das
facetas que marcou o episódio, quer seja, o naufrágio do navio Prince of
Wales, vindo a ser este, inclusive, um dos motivos de seu afastamento do
Rio Grande, em 1864. Antes, porém, de seu envolvimento naquele incidente, o
representante britânico realizou diversos estudos sobre a costa a rio-grandense
(como também o fez em relação ao litoral paranaense). Obteve o grau LL.D.
(doutor em leis), vindo a ser eleito Fellow da Royal Geographical
Society de Londres. Na década de cinqüenta realizou os estudos e elaborou os
escritos que resultariam, em 1860, na publicação de um roteiro sobre a costa[1].Na
obra, Vereker fez um aprofundado estudo sobre o litoral gaúcho, a partir das
próprias observações e das fontes então existentes, preocupando-se em destacar,
entre outros assuntos, rotas de navegação, ventos, faróis, sondagens, bancos de
areia, ancoradouros, portos, sinalizações, comunicações e providências em caso
de acidente, bem como as praxes comerciais[2].
O contexto internacional que envolveu a formação e evolução do Império
Brasileiro caracterizou-se essencialmente por um predomínio britânico. Essa
hegemonia da Inglaterra, a grande potência imperialista de então, não se
limitava à existência do Estado Nacional, sendo anterior, pois remontava às
origens do Brasil, ainda no período colonial, podendo ser considerada como uma
herança da metrópole lusitana. A colocação de Portugal sob a zona de influência
britânica teve sua gênese a partir do processo da Restauração Lusa, quando, com
a Dinastia de Bragança, terminava a União Ibérica, voltando o país a ter um
soberano português. Nesse momento, Portugal teve de barganhar o reconhecimento
de sua autonomia no cenário internacional, função dificultada pela pressão
hispânica, e só conseguiu atingir sua meta a partir da prática de uma política
de concessões. A Inglaterra, que começava a dar os primeiros passos em direção
a tornar-se uma potência hegemônica, ocupou o espaço diplomático, estratégico e
econômico aberto junto à nação lusa, formando-se os primeiros laços de aliança,
os quais, transformar-se-iam em predomínio econômico-político que teria por
marco a assinatura do Tratado de Methuen, em 1703.
Os interesses britânicos acabariam por também voltar-se para a colônia
portuguesa na América e, progressivamente, a Inglaterra tentaria eliminar
aquele incômodo sócio na exploração do formidável mercado que representava o
Brasil. A ruptura do pacto colonial acelero-se com o deslocamento da Corte
Portuguesa para o Brasil, sob a “proteção”/pressão inglesa, a qual viria a ser
retribuída com uma nova leva de concessões, através da Abertura dos Portos às
Nações Amigas (1808) e os Tratados de Aliança, Comércio e Navegação (1810),
atitudes que abriram em grande parte o mercado brasileiro à Inglaterra.
O predomínio britânico no Brasil viria a completar-se com o processo
emancipatório, uma vez que a necessidade de respaldo internacional tendo em
vista o reconhecimento da independência brasileira, mais uma vez se daria a
partir da busca do apoio inglês, nascendo o Estado Nacional já sob a égide do
predomínio dessa potência, a qual intermediou as negociações com Portugal e foi
decisiva para aquele reconhecimento, ocorrendo, inclusive, a renovação dos
acordos anteriormente assinados e que davam amplas vantagens para a
Grã-Bretanha. Essa hegemonia dos ingleses, mormente no campo econômico,
permaneceria incontestável durante o período imperial, porém, no que tange às
relações diplomáticas, esse fenômeno não se repetiria de forma absolutamente
completa.
Os embates acontecidos entre os dois países teriam normalmente por pano
de fundo o interesse britânico em coibir o tráfico e as práticas escravistas,
elementos fundamentais às estruturas econômicas brasileiras de então. A
tradição inglesa de fazer prevalecer seus intentos utilizando-se de todos os
meios possíveis já era histórica. Para isso, não poupava esforços e, além de
seu potencial econômico, marítimo e bélico, contou com representantes que
sempre buscaram fazer valer seus interesses, utilizando-se dos princípios diplomáticos
ou de artifícios menos nobres, como o suborno ou a pressão/retaliação
político-militar, configurando-se aquilo que passou a ser reconhecido com a
diplomacia da canhoneira. Nesse quadro, destacaram-se nomes como John Methuen,
Percy Clinton Smith (Visconde de Strangford), Charles Stuart e William Dougall
Christie, levando este último ao desencadear de um dos mais críticos momentos
nas relações entre Brasil e Inglaterra, culminando com a ruptura diplomática.
O interesse britânico em coibir a escravatura em busca da ampliação de
mercados constituiu uma manifestação histórica nas inter-relações para com o
Brasil. Já nos Tratados Strangford (1810), encontrava-se uma cláusula que
previa que Portugal extinguiria, gradualmente, o tráfico de escravos. Na renovação
daqueles acordos (1826-1827), ficava novamente prevista a abolição do comércio
negreiro. A situação agravar-se-ia a partir de 1845, quando, com o Bill Aberdeen, a Inglaterra,
unilateralmente, auto-concedia-se o direito de fiscalização de embarcações, em
qualquer lugar, para averiguar se ocorria ou não o transporte de escravos. Essa
lei levou a atitudes arbitrárias que variavam das “visitas” até o afundamento
de navios, não respeitando nem mesmo as águas territoriais de outros países,
como no caso brasileiro, promovendo uma série de desentendimentos.
Diante das pressões inglesas pela extinção do tráfico negreiro, a
postura brasileira foi variável, ocorrendo duas grande fases no que tange às
relações entre os governos brasileiro e inglês, envolvendo o tema do comércio
de escravos. A primeira vai da independência a 1845, a qual constituiu uma
etapa de cooperação difícil, de pressões e decisões entre 1826 e 1831 e de
fracasso posterior. Já a segunda, a partir de 1845, representou uma fase de
ruptura e conflito, marcado pela ação inglesa unilateral e eficiente em 1850, e
pelas seqüelas do conflito bilateral nos anos seguintes[3].
À medida que recrudescia a pressão britânica, o Brasil buscava tomar
atitudes conciliadoras, que agradassem os ingleses, mas não prejudicassem as
estruturas escravocratas, negociante com medidas paliativas, ou, quando mais
decisivas, protelava-as na sua ação prática ou criava mecanismos de
continuidade, ainda que parcial. Assim, o Império conduziu suas relações
diplomáticas com uma grande potência que, de modo contínuo, fazia exigências
exorbitantes, sendo que, em geral, sua resposta consistia em concordar
verbalmente e satisfazer publicamente. Desse modo, o Brasil, na aparência e
para uso externo, fazia concessões com prazenteira boa vontade, porém, por
outro lado, adiava, procrastinava e tornava insignificante grande parte da
substância objetivada pelos britânicos[4].
As atitudes coercitivas britânicas intensificaram-se, culminando com a
medida unilateral do Bill Aberdeen,
diante da qual o Governo Brasileiro elaborou veementes protestos, chegando os
dois países a aproximar-se de um enfrentamento mais contundente, porém, pelas
próprias relações de dependência econômica, o Brasil acabou por recuar,
decretando, em 1850, a Lei Eusébio de Queirós, que extinguia o tráfico negreiro
no país. Apesar disso, a Inglaterra continuou exercendo sua ação
“fiscalizadora” com relação ao comércio de escravos, além de manter as pressões
para a extinção da escravatura como um todo.
Nesse contexto, desenvolveu-se a chamada Questão Christie, momento no
qual a Inglaterra utilizou-se de acontecimentos não muito significantes,
transformando-os em verdadeira querela diplomática. Esses elementos serviram
como pretextos, pois, ao que parece, a Grã-Bretanha procurava uma ocasião para
exibir o predomínio do seu poder[5]
e fazer valer seus propósitos anti-escravocratas no Brasil. Tanto as atitudes,
quanto os pronunciamentos de William Christie, quando representante britânico
no Império, revelavam a identidade de objetivos entre a situação diplomática
por ele criada e as intenções inglesas no que tange à escravidão brasileira.
Neste quadro, durante a permanência de Christie a serviço no Brasil
(1861-1863), houve diversos pedidos de sua parte para o fornecimento de
informações sobre os emancipados no país, com seus endereços, mas nenhuma
resposta lhe foi repassada. Segundo o representante britânico, estas
informações tinham por meta a promoção da completa emancipação de todos os
escravos libertos. Na concepção inglesa, a legitimação de suas reivindicações
estaria no fato de que a libertação dos cativos havia sido promovida através da
intervenção britânica. Entretanto, o real objetivo era o fim da escravidão do
negro de uma só vez, de modo que foi Christie quem novamente atacou as
instituições vitais do país, afirmando que sugerira em várias ocasiões a
importância de tentar persuadir o governo brasileiro a adotar medidas que
conduzissem à extinção da escravidão e, enquanto se processasse esta medida,
mitigar ao máximo os males que causava. O diplomata inglês, mais tarde,
chegaria a proclamar-se como credor especial pelas medidas tomadas para a
libertação definitiva dos emancipados[6].
Dessa maneira, William Dougal Christie era francamente favorável às
medidas de força para resolver as questões com o Brasil. Ele chegou a afirmar
que o governo brasileiro faria justiça apenas pelo medo, e que todos os pedidos
“razoáveis”, na realidade as exigências inglesas, encontravam desculpas e
delongas evasivas, subterfúgios e afirmações sem base. Na concepção do
representante inglês, enquanto a Corte do Rio fosse justa e convenientemente
modesta e respeitosa, não precisaria temer violência e falta de moderação dos
britânicos, para com uma nação “mais fraca”, entretanto, qualquer desvio do
campo da justiça, modéstia e respeito faria o Brasil sentir o poder da marinha
inglesa[7].
Essas afirmações bem caracterizam o estilo diplomático de Christie que
converteria dois incidentes em uma grave crise diplomática[8].
No quadro regional, um dos episódios que deu origem à Questão Christie
foi o naufrágio da embarcação Prince of
Wales, e foi nesse contexto que esteve inserido Henry Prendergast Vereker.
Como cônsul britânico, ele envolveu-se diretamente com os acontecimentos em
torno do sinistro. Seria mais um episódio de um desastre marítimo na costa
gaúcha, não fosse a relevância dada pelos representantes ingleses, visando
aumentar a pressão sobre o governo brasileiro. Vereker seria incansável em suas
acusações, buscando demonstrar que houvera roubo das peças salvadas do
naufrágio, apontando para a negligência e até conivência das autoridades locais
e chegando a sugerir a possibilidade do assassinato de sobreviventes da
embarcação afundada. As manifestações do cônsul britânico estavam totalmente a
contento com a diplomacia da canhoneira empregada pela Inglaterra, uma vez que,
ficava evidenciado em suas construções discursivas o desprezo para com a
palavra e as ações dos brasileiros, considerados como indivíduos de segunda
categoria em relação aos súditos britânicos. Comungava, assim, com as idéias de
Christie que, só à força, a Inglaterra conseguiria “convencer” o Brasil da
“justeza” de suas reivindicações[9].
[1] VEREKER, Henry Prendergast. The British
shipmaster’s hand book to Rio Grande do Sul. London: Effingham
Wilson, Royal Exchange, 1860.
[2]
BARRETO, Abeillard. Bibliografia
sul-rio-grandense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento
e a integração do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal de
Cultura, 1976. v. 2, p. 1388-1389.
[3]
CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História
da política exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992. p. 72.
[4]
GRAHAM, Richard. Brasil – Inglaterra. In: HOLANDA, S. B. de (org.). História geral da civilização brasileira –
Brasil Monárquico. 2.ed. São Paulo: DIFEL, 1974. v. 4. t. 2. p. 145.
[5]
GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e
imperialismo. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 80.
[6]
GRAHAM, Richard. Grã-Bretanha e o início
da modernização no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973. p. 176-177.
[7]
MANCHESTER, Alan K. Preeminência inglesa
no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973. p. 236.
[8]
Contexto elaborado a partir de: ALVES, Francisco das Neves. A Questão Christie:
o caso do Prince of Wales no Rio
Grande. In: ALVES, F. N. & TORRES, L. H. (orgs.). A cidade do Rio Grande: estudos históricos. Rio Grande: FURG/SMEC,
1995. p. 107-109.
[9] A
esse respeito, ver: ALVES, Francisco das Neves. A diplomacia da canhoneira: a construção discursiva de um
representante britânico no Rio Grande do século XIX. In: Anais da Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica.
Curitiba: SBPH, 2001. p.
257-263.
Nenhum comentário:
Postar um comentário