Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

terça-feira, 26 de novembro de 2019

VISÕES DO RIO GRANDE - VEREKER I


*Capítulo do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995. 

Vereker
Edição de Francisco das Neves Alves e João Reguffe editado pela Editora da Furg. 

         O britânico Henry Prendergast Vereker (1824-1904) era de ascendência nobre e bacharelou-se pelo Trinity College, em Dublin. Atuou na cidade do Rio Grande como cônsul e agente postal a serviço de seu governo. Ficou mais conhecido a partir da Questão Christie, que levou à ruptura diplomática entre Brasil e Inglaterra, tendo ele participação decisiva numa das facetas que marcou o episódio, quer seja, o naufrágio do navio Prince of Wales, vindo a ser este, inclusive, um dos motivos de seu afastamento do Rio Grande, em 1864. Antes, porém, de seu envolvimento naquele incidente, o representante britânico realizou diversos estudos sobre a costa a rio-grandense (como também o fez em relação ao litoral paranaense). Obteve o grau LL.D. (doutor em leis), vindo a ser eleito Fellow da Royal Geographical Society de Londres. Na década de cinqüenta realizou os estudos e elaborou os escritos que resultariam, em 1860, na publicação de um roteiro sobre a costa[1].Na obra, Vereker fez um aprofundado estudo sobre o litoral gaúcho, a partir das próprias observações e das fontes então existentes, preocupando-se em destacar, entre outros assuntos, rotas de navegação, ventos, faróis, sondagens, bancos de areia, ancoradouros, portos, sinalizações, comunicações e providências em caso de acidente, bem como as praxes comerciais[2].

  O contexto histórico da presença de Vereker no Rio Grande: a Questão Christie
O contexto internacional que envolveu a formação e evolução do Império Brasileiro caracterizou-se essencialmente por um predomínio britânico. Essa hegemonia da Inglaterra, a grande potência imperialista de então, não se limitava à existência do Estado Nacional, sendo anterior, pois remontava às origens do Brasil, ainda no período colonial, podendo ser considerada como uma herança da metrópole lusitana. A colocação de Portugal sob a zona de influência britânica teve sua gênese a partir do processo da Restauração Lusa, quando, com a Dinastia de Bragança, terminava a União Ibérica, voltando o país a ter um soberano português. Nesse momento, Portugal teve de barganhar o reconhecimento de sua autonomia no cenário internacional, função dificultada pela pressão hispânica, e só conseguiu atingir sua meta a partir da prática de uma política de concessões. A Inglaterra, que começava a dar os primeiros passos em direção a tornar-se uma potência hegemônica, ocupou o espaço diplomático, estratégico e econômico aberto junto à nação lusa, formando-se os primeiros laços de aliança, os quais, transformar-se-iam em predomínio econômico-político que teria por marco a assinatura do Tratado de Methuen, em 1703.
Os interesses britânicos acabariam por também voltar-se para a colônia portuguesa na América e, progressivamente, a Inglaterra tentaria eliminar aquele incômodo sócio na exploração do formidável mercado que representava o Brasil. A ruptura do pacto colonial acelero-se com o deslocamento da Corte Portuguesa para o Brasil, sob a “proteção”/pressão inglesa, a qual viria a ser retribuída com uma nova leva de concessões, através da Abertura dos Portos às Nações Amigas (1808) e os Tratados de Aliança, Comércio e Navegação (1810), atitudes que abriram em grande parte o mercado brasileiro à Inglaterra.
O predomínio britânico no Brasil viria a completar-se com o processo emancipatório, uma vez que a necessidade de respaldo internacional tendo em vista o reconhecimento da independência brasileira, mais uma vez se daria a partir da busca do apoio inglês, nascendo o Estado Nacional já sob a égide do predomínio dessa potência, a qual intermediou as negociações com Portugal e foi decisiva para aquele reconhecimento, ocorrendo, inclusive, a renovação dos acordos anteriormente assinados e que davam amplas vantagens para a Grã-Bretanha. Essa hegemonia dos ingleses, mormente no campo econômico, permaneceria incontestável durante o período imperial, porém, no que tange às relações diplomáticas, esse fenômeno não se repetiria de forma absolutamente completa.
Os embates acontecidos entre os dois países teriam normalmente por pano de fundo o interesse britânico em coibir o tráfico e as práticas escravistas, elementos fundamentais às estruturas econômicas brasileiras de então. A tradição inglesa de fazer prevalecer seus intentos utilizando-se de todos os meios possíveis já era histórica. Para isso, não poupava esforços e, além de seu potencial econômico, marítimo e bélico, contou com representantes que sempre buscaram fazer valer seus interesses, utilizando-se dos princípios diplomáticos ou de artifícios menos nobres, como o suborno ou a pressão/retaliação político-militar, configurando-se aquilo que passou a ser reconhecido com a diplomacia da canhoneira. Nesse quadro, destacaram-se nomes como John Methuen, Percy Clinton Smith (Visconde de Strangford), Charles Stuart e William Dougall Christie, levando este último ao desencadear de um dos mais críticos momentos nas relações entre Brasil e Inglaterra, culminando com a ruptura diplomática.
O interesse britânico em coibir a escravatura em busca da ampliação de mercados constituiu uma manifestação histórica nas inter-relações para com o Brasil. Já nos Tratados Strangford (1810), encontrava-se uma cláusula que previa que Portugal extinguiria, gradualmente, o tráfico de escravos. Na renovação daqueles acordos (1826-1827), ficava novamente prevista a abolição do comércio negreiro. A situação agravar-se-ia a partir de 1845, quando, com o Bill Aberdeen, a Inglaterra, unilateralmente, auto-concedia-se o direito de fiscalização de embarcações, em qualquer lugar, para averiguar se ocorria ou não o transporte de escravos. Essa lei levou a atitudes arbitrárias que variavam das “visitas” até o afundamento de navios, não respeitando nem mesmo as águas territoriais de outros países, como no caso brasileiro, promovendo uma série de desentendimentos.
Diante das pressões inglesas pela extinção do tráfico negreiro, a postura brasileira foi variável, ocorrendo duas grande fases no que tange às relações entre os governos brasileiro e inglês, envolvendo o tema do comércio de escravos. A primeira vai da independência a 1845, a qual constituiu uma etapa de cooperação difícil, de pressões e decisões entre 1826 e 1831 e de fracasso posterior. Já a segunda, a partir de 1845, representou uma fase de ruptura e conflito, marcado pela ação inglesa unilateral e eficiente em 1850, e pelas seqüelas do conflito bilateral nos anos seguintes[3].
À medida que recrudescia a pressão britânica, o Brasil buscava tomar atitudes conciliadoras, que agradassem os ingleses, mas não prejudicassem as estruturas escravocratas, negociante com medidas paliativas, ou, quando mais decisivas, protelava-as na sua ação prática ou criava mecanismos de continuidade, ainda que parcial. Assim, o Império conduziu suas relações diplomáticas com uma grande potência que, de modo contínuo, fazia exigências exorbitantes, sendo que, em geral, sua resposta consistia em concordar verbalmente e satisfazer publicamente. Desse modo, o Brasil, na aparência e para uso externo, fazia concessões com prazenteira boa vontade, porém, por outro lado, adiava, procrastinava e tornava insignificante grande parte da substância objetivada pelos britânicos[4].
As atitudes coercitivas britânicas intensificaram-se, culminando com a medida unilateral do Bill Aberdeen, diante da qual o Governo Brasileiro elaborou veementes protestos, chegando os dois países a aproximar-se de um enfrentamento mais contundente, porém, pelas próprias relações de dependência econômica, o Brasil acabou por recuar, decretando, em 1850, a Lei Eusébio de Queirós, que extinguia o tráfico negreiro no país. Apesar disso, a Inglaterra continuou exercendo sua ação “fiscalizadora” com relação ao comércio de escravos, além de manter as pressões para a extinção da escravatura como um todo.
Nesse contexto, desenvolveu-se a chamada Questão Christie, momento no qual a Inglaterra utilizou-se de acontecimentos não muito significantes, transformando-os em verdadeira querela diplomática. Esses elementos serviram como pretextos, pois, ao que parece, a Grã-Bretanha procurava uma ocasião para exibir o predomínio do seu poder[5] e fazer valer seus propósitos anti-escravocratas no Brasil. Tanto as atitudes, quanto os pronunciamentos de William Christie, quando representante britânico no Império, revelavam a identidade de objetivos entre a situação diplomática por ele criada e as intenções inglesas no que tange à escravidão brasileira.
Neste quadro, durante a permanência de Christie a serviço no Brasil (1861-1863), houve diversos pedidos de sua parte para o fornecimento de informações sobre os emancipados no país, com seus endereços, mas nenhuma resposta lhe foi repassada. Segundo o representante britânico, estas informações tinham por meta a promoção da completa emancipação de todos os escravos libertos. Na concepção inglesa, a legitimação de suas reivindicações estaria no fato de que a libertação dos cativos havia sido promovida através da intervenção britânica. Entretanto, o real objetivo era o fim da escravidão do negro de uma só vez, de modo que foi Christie quem novamente atacou as instituições vitais do país, afirmando que sugerira em várias ocasiões a importância de tentar persuadir o governo brasileiro a adotar medidas que conduzissem à extinção da escravidão e, enquanto se processasse esta medida, mitigar ao máximo os males que causava. O diplomata inglês, mais tarde, chegaria a proclamar-se como credor especial pelas medidas tomadas para a libertação definitiva dos emancipados[6].
Dessa maneira, William Dougal Christie era francamente favorável às medidas de força para resolver as questões com o Brasil. Ele chegou a afirmar que o governo brasileiro faria justiça apenas pelo medo, e que todos os pedidos “razoáveis”, na realidade as exigências inglesas, encontravam desculpas e delongas evasivas, subterfúgios e afirmações sem base. Na concepção do representante inglês, enquanto a Corte do Rio fosse justa e convenientemente modesta e respeitosa, não precisaria temer violência e falta de moderação dos britânicos, para com uma nação “mais fraca”, entretanto, qualquer desvio do campo da justiça, modéstia e respeito faria o Brasil sentir o poder da marinha inglesa[7]. Essas afirmações bem caracterizam o estilo diplomático de Christie que converteria dois incidentes em uma grave crise diplomática[8].
No quadro regional, um dos episódios que deu origem à Questão Christie foi o naufrágio da embarcação Prince of Wales, e foi nesse contexto que esteve inserido Henry Prendergast Vereker. Como cônsul britânico, ele envolveu-se diretamente com os acontecimentos em torno do sinistro. Seria mais um episódio de um desastre marítimo na costa gaúcha, não fosse a relevância dada pelos representantes ingleses, visando aumentar a pressão sobre o governo brasileiro. Vereker seria incansável em suas acusações, buscando demonstrar que houvera roubo das peças salvadas do naufrágio, apontando para a negligência e até conivência das autoridades locais e chegando a sugerir a possibilidade do assassinato de sobreviventes da embarcação afundada. As manifestações do cônsul britânico estavam totalmente a contento com a diplomacia da canhoneira empregada pela Inglaterra, uma vez que, ficava evidenciado em suas construções discursivas o desprezo para com a palavra e as ações dos brasileiros, considerados como indivíduos de segunda categoria em relação aos súditos britânicos. Comungava, assim, com as idéias de Christie que, só à força, a Inglaterra conseguiria “convencer” o Brasil da “justeza” de suas reivindicações[9].



[1] VEREKER, Henry Prendergast. The British shipmaster’s hand book to Rio Grande do Sul. London: Effingham Wilson, Royal Exchange, 1860.
[2] BARRETO, Abeillard. Bibliografia sul-rio-grandense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento e a integração do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1976. v. 2, p. 1388-1389.
[3] CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992. p. 72.
[4] GRAHAM, Richard. Brasil – Inglaterra. In: HOLANDA, S. B. de (org.). História geral da civilização brasileira – Brasil Monárquico. 2.ed. São Paulo: DIFEL, 1974. v. 4. t. 2. p. 145.
[5] GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 80.
[6] GRAHAM, Richard. Grã-Bretanha e o início da modernização no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973. p. 176-177.
[7] MANCHESTER, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973. p. 236.
[8] Contexto elaborado a partir de: ALVES, Francisco das Neves. A Questão Christie: o caso do Prince of Wales no Rio Grande. In: ALVES, F. N. & TORRES, L. H. (orgs.). A cidade do Rio Grande: estudos históricos. Rio Grande: FURG/SMEC, 1995. p. 107-109.
[9] A esse respeito, ver: ALVES, Francisco das Neves. A diplomacia da canhoneira: a construção discursiva de um representante britânico no Rio Grande do século XIX. In: Anais da Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. Curitiba: SBPH, 2001. p. 257-263.

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