SEIDLER, Carl. DEZ ANOS NO BRASIL. Tradução e notas do General Bertoldo Klinger. Prefácio e notas do Coronel F. de Paula Cidade. Doação de ambos à Biblioteca Riograndense, da cidade do Rio Grande. Livraria Martins, São Paulo. Biblioteca Historica Brasileira. Direção de Rubens Borba de Moraes VIII. 1941 .https://www.veranunesleiloes.com.br/peca.asp?ID=3051373 |
*Capítulo do livro de Francisco das
Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o
prisma europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995.
Seidler
O suíço-alemão Carl
Seidler foi contratado pelo Império Brasileiro para lutar no Exército Imperial
na Campanha Cisplatina, elaborando depoimentos dos acontecimentos militares e
sociais vivenciados no Brasil . “Dado às aventuras amorosas, que às vezes
relata como de terceiros, traça páginas verdadeiramente interessantes, tais a
agudeza da observação e a propriedade no confronto”.[1]
Os costumes sociais
rio-grandenses das primeiras décadas do século XIX foram observados durante sua
permanência em Rio Grande, Pelotas, Taquari, Porto Alegre, São Leopoldo,
Jaguarão e Piratini. Para o historiador Paula Cidade, o livro encerra “aspectos
pitorescos de nossa vida civil e militar” sendo escrito entre 1833 e 1834,
registrando “impressões de um observador de condições modestas, que escreve o
que sente e o que sentem os que o cercam, que diz exatamente o que anda na boca
do povo, embora venha muitas vezes, por esse modo, a se afastar da verdade”.[2]
Seidler foi um dos
europeus que vieram para o Brasil fazer fortuna, a partir do agenciador de
emigrantes de má reputação Jorge Antônio Schäffer, durante o I Reinado.
Foi um dos desiludidos pelas falsas promessas de enriquecimento fácil. Para
Rubens Borba de Moraes, “o aventureiro alemão, vindo ao Brasil com intuito de
fazer fortuna rápida, aqui chegando viu seus sonhos desfeitos. De volta à terra
natal escreveu um livro cheio de animosidades sobre o país que não o tornara
milionário”.[3]
O aventureiro partiu
do Rio de Janeiro em 1827 vindo para a cidade do Rio Grande com um comboio de
dezesseis navios mercantes escoltados por uma fragata e um bergantim. Realizou
uma série de observações sobre as atividades sociais e econômicas nas estâncias
do sul da Província. Segundo ele, nessas estâncias às vezes matavam em um dia
400 a 500 bois, cujos couros e chifres eram escoados para Rio Grande, de onde
eram vendidos para a América do Norte, que em geral os recolocava no Brasil em
artigos manufaturados. A carne era separada dos ossos em pedaços de 30 a 40
libras, sendo salgada e exposta ao sol para secar; o sebo e o tutano eram
amassados em tinas de madeira e expedidos em bexigas para o Rio de Janeiro.
Ao aproximar-se para
desembarque no Rio Grande, Seidler afirmou que “a primeira vista desta costa
está longe de ser tão bonita como a do Rio de Janeiro” pois em lugar dos
penhascos e serras “que envolvem a capital e seu porto como uma cintura
encantadora, aqui se acha areia e grama”. A sensação é de ter chegado a outro
país e outro povo. Chamou sua atenção que a “areia que envolve Rio Grande como
um grande manto de pó, triste e sombrio, estende-se quatro léguas para o
interior, onde então repentinamente a província quase toda se transmuda numa
única enorme pastagem. A superfície toda parece uma grande serpente, sem
grandes montes mas também sem planícies”.
Seidler ressalta o
papel das atividades campeiras e a hospitalidade oferecida aos viajantes pelos
proprietários das estâncias. Essa hospitalidade “é a maior de suas virtudes;
sem ela seriam certamente bárbaros”. Ao contrário da cor amarelo pálida
dos habitantes do Rio de Janeiro, na Província de São Pedro do Sul
“encontram-se em geral tipos altos, bonitos e fortes, e notadamente as senhoras
têm às vezes a tez tão branca que muitas européias”. Até a fisionomia “não tem
a malícia e malignidade como é comum nas regiões setentrionais do Brasil; é
franca, aberta, sem falsidade nem reserva”. O caráter dessa população é “em
geral fleumático, com ligeiro toque sangüíneo”. Porém, não devem ser irritados
sem motivo porque “nunca perdoam e às vezes se vingam terrivelmente”. O militar
alemão observou que a carne do boi é quase o alimento exclusivo destes homens,
os quais “quase não conhecem legumes, salvo certamente o feijão preto, que
aliás é bem barato”. O pão só é encontrado nas grandes cidades como Porto
Alegre, Rio Grande e Rio Pardo, “no campo só é conhecido, a bem dizer, de
nome”.[4]
As dificuldades do
calado do porto do Rio Grande foram destacadas:
Nas cidades,
sobretudo no Rio Grande, onde aportamos e que é o único porto marítimo da
província, encontra-se melhor modo de vida, conhecem-se regularmente as comidas
européias e sua preparação. Sem contar os muitos navios norte-americanos sempre
aqui ancorados principalmente holandeses, ingleses e franceses vêm ao Rio
Grande e abastecem a cidade, e, através dela, a província, em produtos
europeus; hamburgueses, e de um modo geral, alemães, são raros, pois que tão
longa viagem só costuma ser feita em grandes navios de três mastros e estes não
podem entrar no porto, por causa das areias tocadas pelo vento, que vão cada
vez mais reduzindo a profundidade de água.[5]
O porto referido é o
do Rio Grande do Norte (São José do Norte) pois na cidade do Rio
Grande do Sul, (Rio Grande) muito maior, onde porém a água é tão rasa que
nem os menores navios podem ir ancorar. A maioria dos comerciantes
estabelecidos no Norte moram em Rio Grande devido a areia e a poeira. Da
estadia de Seidler no Norte ficou o registro da areia, pois “tudo o que
se come range nos dentes” e “tudo torna a moradia tão desagradável que todo
aquele que pode prefere residir na cidadezinha fronteira” apesar de “Rio Grande
do Norte como verdadeira praça comercial, seja muito mais importante”.[6]
Integrando o 27º
Batalhão de Caçadores, Seidler recebe ordens de marchar para São Francisco de
Paula (Pelotas) um lugar distante 7 léguas do Rio Grande. Pelotas mantém
intenso comércio com Rio Grande “de onde vem constantemente inúmeros artigos e
produtos de toda espécie”, geralmente trocados por couro de boi. Conforme
Seidler, em Pelotas e Rio Grande havia muitos europeus, que possuem importantes
estabelecimentos comerciais e que “certamente pela influência do seu dinheiro e
de sua cultura tem contribuído consideravelmente para que os habitantes tenham
mais civilização e mais gosto pela vida social e mais trato amigável, do que
nas outras regiões”.[7]
Participante, segundo
ele, da Batalha do Passo do Rosário, o militar alemão não poupa críticas às
ações e estratégias luso-brasileiras no confronto militar da Cisplatina. Nesse
conflito, “apesar da formidável desordem, que logo no começo da batalha se fez
notar no nosso exército, os soldados alemães se conservaram sempre calmos e,
não obstante todos os esforços do inimigo, não se deixaram abalar”.[8]
Ao longo do livro, a superioridade do soldado e do colono alemão que migrou
para o Brasil é amplamente destacada. Invencionices, exageros e informações não
verídicas a parte, muitas observações sobre a psico-sociabilidade dos habitantes
do Rio Grande e região da campanha, com ênfase na figura do
estancieiro-pecuarista, são interessantes para reconstituir as relações sociais
na Província. Suas aventuras amorosas permitem resgatar um pouco dos costumes
do século passado, como é o caso da narração sobre uma suposta
experiência contada por um amigo (mas possivelmente vivida por ele próprio) em
que são relacionados há hospitalidade do estancieiro e a preocupação em não
apresentar às mulheres àqueles que não tivessem intimidade com a família visitada.
É a história de um
jovem oficial que ficou três dias na casa de um fazendeiro “sem que lograsse
ver nenhuma das três filhas da casa, nem de longe, e tinham fama de bonitas e
amáveis”. As filhas tinham ordens de não aparecer sequer na janela para não
serem vistas, porém “nas mulheres a curiosidade é sempre mais forte que a
obediência”. As três moças reclusas souberam “por uma das suas negras que o
estrangeiro era muito jovem, muito bonito e muito amável e que usava brilhante
uniforme”. O efeito irresistível da
farda levou as moças a um encontro sorrateiro onde o galante oficial
ousou “beijar a mão das três e logo depois pedir-lhes um abraço, que certamente
não recusariam. Sem dúvida a brasileira não admite facilmente um beijo na boca,
a não ser que esteja disposta a concessões maiores” enquanto que um abraço lhe
parece “a coisa mais inocente e decente do mundo”. Os encontros repetiram-se
por mais uma semana, entre os abraços das filhas e a hospitalidade do pai, até
que o militar partiu em meio ao pranto das moças, que segundo o garboso
militar, era passageiro: “na mulher brasileira a fidelidade não dura mais
que o gozo; só a presença pode reclamar amor, só o momento dá felicidade”.[9]
Os comentários de Seidler são um tanto
genéricos pois relaciona a Província com o Brasil, dificultando depreender as
características e diferenciações dos locais onde esteve em suas marchas
militares e envolvimentos afetivos. A
passagem por Rio Grande não deve ter sido superior a dois meses, pois recebeu
ordens para embarcar do Rio de Janeiro para o Rio Grande do Sul em novembro de
1826 e em fevereiro de 1827, já participou da Batalha do Passo do Rosário,
rumando posteriormente para Porto Alegre. Importante, apesar dos breves
comentários feitos sobre a cidade, é a sua preocupação em relatar suas
vivências de maneira não oficiosa e tratando de temas ligados ao convívio
social lúdico e não formal da população.
[1] BARRETO, Abeillard. Bibliografia
Sul-Riograndense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento e
a integração do Rio Grande do Sul. Rio de janeiro, Conselho Federal de
Cultura, 1976, p. 1251. Abeillard Barreto não traz a data e local de nascimento
e morte de Carl Seidler.
[2] CIDADE, F. de Paula (prefácio e notas) In:
SEIDLER, Carl. Dez Anos no Brasil. 3ª ed., São Paulo - Martins; Brasília
- INL/MEC; 1976, p. 15. A primeira
edição alemã do livro foi publicado em Leipzig em 1835 com o título Zehn Jahre in Brasilien.
[4] SEIDLER. p.92.
[5] SEIDLER. p.93.
[6] SEIDLER. p.93
[7] SEIDLER. p. 94.
[8] SEIDLER. p.97.
A Batalha do Passo do Rosário ocorreu no dia 20 de fevereiro de 1827 e
foi o enfrentamento mais importante da Guerra Cisplatina que perdurou de 1825,
quando tropas uruguaias e argentinas iniciam a libertação da Banda Oriental
anexada por D. João VI ao Brasil (1820), até a independência do Uruguai em
1828.
[9] SEIDLER. p.91.
Nenhum comentário:
Postar um comentário