Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

VISÕES DO RIO GRANDE - LUCCOCK III

Planta do Rio Grande do Sul e Uruguai integrante do livro de Luccock em sua edição de 1820. http://purl.pt/103/1/catalogo-digital/registo/253/253_ds_xix_252_f138.jpg

*Capítulo do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995. 



Luccock

      Poucos ingleses moravam no Rio Grande e somente uma casa comercial britânica foi citada por John Luccock (Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p.XIII). Esses ingleses “procuravam e encontravam seu máximo prazer na companhia mútua deles próprios”. Na falta de restaurantes e cafés, e onde os bilhares eram locais de “freqüência bastante mesclada onde freqüentemente se verificavam cenas de bulhentas disputas”, o autor participou da fundação de um clube inglês para passar o tempo, pois o ritmo do capitalismo deixava longos períodos para o exercício da sociabilidade: “Aqueles dentre nós que mais negócios possuíam, não nos tinham ainda bastante para que preenchessem metade do tempo de que dispunham, enquanto que alguns pareciam realmente nada ter que fazer”. 

      A falta de conforto das residências, chamou a atenção do comerciante o qual ressaltou que a vida doméstica “é pouco alegrada aqui, por tudo aquilo que nós outros temos por acrescentar ao conforto dos aposentos”. Ao descrever a casa que alugara, registrou que era igual a maior parte das residências do local, constando de um pavimento térreo, com uma sala que dava para a rua e que era iluminada por apenas uma janela sem vidros e venezianas permitindo que quem passasse em frente tivesse uma visão do interior.Considerando o valor do aluguel elevado, ele complementa a descrição dizendo que por detrás desta sala ficava uma alcova de dormir e uma cozinha de chão num puxado. “Por esse solar, pagava eu um aluguel de doze patacas, ou seja, cerca de vinte xelins por mês”.

    O mobiliário resumia-se ao mínimo de elementos constituintes, havendo na sala, segundo sua descrição, umas poucas cadeiras de assentos e espaldares de couro estufado e uma excelente mesa de madeira escura, repousando sobre quatro pernas recurvadas. A casa alugada “não dispunha do pequeno espelho vulgar que, na maioria das casas, enfeita uma das paredes do cômodo, nem tão pouco do oratório flanqueado de dois castiçais, que em geral se coloca junto à outra”. O mobiliário da alcova, continha “uma cama, por vezes ricamente entalhada, com estrado de ripado em vez de sarapilheira”; o colchão é um saco de algodão grosso recheado de lã e os lençóis são de algodão, “esplendidamente alvejado e lindamente enfeitados”. A cama dos criados é uma “espécie de divã feito de pranchões e erguido há cerca de seis polegadas acima do chão de terra”, onde o criado se embrulha “nuns pares de jardas de baeta azul, a fim de se proteger contra os mosquitos”. Com o propósito de defesa contra os insetos, “acendem-se fogueiras de lenha à noite na cozinha e queimam-se ervas odoríferas nas alcovas”. Os homens, no dia-a-dia, usavam camisas de algodão com bordados abertos e rendados ao peito e a gola atada com uma fita preta. “Seus casacos parecem-se com os nossos sobretudos e usam-nos, às vezes, enfeitados com alamares e borlas” e também vestem coletes de chita, “geralmente em padrões vistosos, e as calças de algodão branco”.

     Nas viagens pelo interior, usavam grandes chapéus desabados “feitos de palha trançada ou de folha de coqueiro, e de um poncho de lã ou de algodão”. Esse poncho quando feito de algodão era enfeitado com franjas de cores variegadas sendo manufatura sul-americana. “As classes obreiras comuns, tais como marinheiros, barqueiros, peões, campônios e pequenos sitiantes, usam jalecos de lã, com moedas de dois reais feito botões”. As mulheres aparecem em público de mantilha, “peça quadrada de seda orlada com largas rendas, que se ata à cabeça e cai pelas costas e ombros”. Usam meias e sapatos de cores vistosas, “o penteado é à moda portuguesa, enfeitado com flores e, por vezes, à noite com vagalumes”. As mulheres de condição social modesta usam um casacão chamado de capote, feito de casimira e adornos de pelúcia, enquanto as escravas usam apenas da baeta “peça de roupa quadrada, por vezes enfeitada de franjas; atam os cabelos com um pedaço de fita vermelha ou um lenço de Bandana, andando invariavelmente descalças”. Luccock encontrou no Rio Grande uma proporção de moças e meninas bonitas superior ao do Continente, constatando que “nenhuma delas viaja muito para fora, embora vivam menos presas que na capital e suas vizinhanças, e sejam consideradas um pouco mais como amigas e companheiras e mais livremente admitidas na sociedade”.

      John Luccock narra uma festa popular que futuramente se confundiria com o carnaval, o entrudo.Durante o entrudo, populares fazem bolas ocas de cera de “cores variegadas, mais ou menos do tamanho de uma laranja, enchem-nas d'água e bombardeiam-se mutuamente, até que os combatentes fiquem completamente molhados”. Comentava-se na época que esse foi um dos primitivos modos singulares pelo qual os “padres impunham a água batismal às pessoas pouco dispostas a recebê-la, assim forçando-as para dentro do Reino dos Céus”. Além do arremesso de bolas com água, também embrulhava-se farinha de trigo em cartuchos de papel, de surpresa, quando “um pobre negro se encontra distraído, fazem-no de branco. De tal maneira o povo gosta desses e de outros divertimentos, que dizem todos abertamente: no entrudo ficamos todos bobos”.

       Luccock descreve a habitação de um estancieiro de condição inferior nas cercanias do Rio Grande que serve, segundo ele, como um retrato dessas estâncias “não só dessa província como de toda a região que se estende desde o rio Paraná até o oceano”. A habitação era feita de um arcabouço de madeira a que se prendiam “barrotes por meio de cavilhas ou vergonteas de uma planta aqui chamada de Cipó”. Entre as cavilhas “entretecem-se outros cipós, sendo os vazios tomados com argamassa de bom traço, posta de sopapo e alisada só com a mão”. O teto é feito de um capim longo e grosso e o piso de terra batida, não possuindo lareira nos aposentos. “A cozinha, de qualidade inferior à do restante do edifício, era ali pegada a casa; por vezes colocam-na a certa distância”. A peça principal dos aposentos é a mesa comprida e tosca, feita de madeira resistente para durar várias gerações, “há também armários e canastras feitas de madeira ou de couro e, por vezes, de palha”. Em cima de uma cômoda com gavetas colocava-se o oratório com portas de abrir “contendo um crucifixo, enfeitado de prata e flores artificiais e protegido por uma lâmina de vidro”. As mulheres acocoravam-se com os joelhos rente ao queixo, sentando-se sobre cadeiras “fundas no meio de modo que a pessoa ficava apenas a uma polegada do chão, como se estivesse metida dentro de uma tina”. O fogão consistia numa fogueira rodeada de três pedras que sustentavam as panelas de barro, enquanto nos dormitórios “as camas não passavam de quatro esteios fincados direto no chão, reunidos por traves e com um couro esticado por cima”. Essa fazenda visitada, ficava próxima da cidade contendo “quatrocentos a quinhentos acres de ricas terras de plantio”, onde o gado era numeroso e próspero. Queijo, manteiga e porcos eram vendidos na cidade, utilizando-se para o transporte, carroças com oito bois. “Tivemos uma excelente refeição de carne de vaca, aves e vegetais variados, tanto da Europa como da terra” acompanhado de vinho e de rosca, uma espécie de pão que amassada com leite, conservava-se por um longo período para consumo. “Embora tais habitações com seu mobiliário e acomodações, possam, na Inglaterra, ser consideradas como grandemente falhas, não resta dúvida de que os brasileiros nelas gozam de uma profunda sensação de conforto”.

     A população de escravos chamou a atenção do comerciante ao afirmar que uma porção considerável da população da América do Sul consistia de escravos. “Era de uso remeter para São Pedro, provindo de outras partes do Brasil, os escravos considerados incorrigíveis, e é certo que por aqui encontrei não só maus escravos como maus senhores”. A dificuldade em conseguir escravos e os altos preços “pode justificar o bom trato que lhes davam”, parecendo estarem “melhores e mais felizes” do que em outras províncias. Na cidade, “pareceu-me que a situação deles era tão boa quanto lhes podia permitir sua mentalidade e costumes”. A mão-de-obra negra também estaria ligada aos ofícios de carpinteiro e outras ocupações, sendo alugados para desenvolver essas atividades e, devido à carência de especialização profissional, são “bastante estimados pelas suas prendas para que os protejam de fadigas excessivas e maus tratos”. Muitos são ocupados no ofício de lavar roupa num tanque situado no sul da cidade, “ali existe um tanque com aberturas, encravado no chão, para dentro do qual as águas da baía destilam através da areia, perdendo assim o sal”. Um negro podia ganhar “numa hora dois vinténs, ou seja, cerca de quatro dinheiros, quantia suficiente para lhes prover o alimento por todo um dia”. Quando um negro é encontrado vadiando “e se lhe aconselha a tomar qualquer serviço, a resposta mais comum é: já ganhei meu dia. Pode-se aliás afirmar que talvez não exista uma só pessoa indigente na cidade...”. Entretanto, basta que uma pessoa “tenha a tez de um preto para que se o designe como objeto sobre o qual a tirania se pode exercer”. 

       A permanência de dois meses no Rio Grande pode não ter sido um sucesso financeiro, mas em termos de registro da economia e sociedade nos primórdios do século XIX, os escritos preservaram importantes detalhes do modo-de-vida. O desenvolvimento capitalista e a expansão de um mercado consumidor na Capitania, não correspondeu às expectativas de Luccock. “Não tendo encontrado, nem em São Pedro, nem em suas adjacências, campo suficiente para aquela porção de nossas mercadorias que tínhamos resolvido vender imediatamente, empreendemos várias expedições pelo interior da província”. O autor viaja até Porto Alegre retornando pela Lagoa dos Patos: “Como os negócios me obrigassem a seguir de São Pedro para a Capital Brasileira com a máxima urgência, resolvi ir via Laguna e, caso ali não encontrasse meio conveniente de transporte, continuar através das montanhas até Santa Catarina”. Ficou do Rio Grande, uma forte expectativa de crescimento econômico e populacional. Conforme Luccock, a proximidade do oceano, garante a Rio Grande uma preeminência permanente pois é “aqui que todos os navios tem que entregar seus papéis, sendo que a maior parte deles raramente segue adiante. É aqui também que os principais negociantes residem ou tem seus agentes estabelecidos; de tal maneira que ela pode ser considerada como o maior mercado do Brasil Meridional”. 

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