Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

VISÕES DO RIO GRANDE - LUCCOCK II

Capa da edição da Livraria Martins do ano de 1942. 

*Capítulo do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995. 


Luccock 

       Conforme descrição de John Luccok[1] a cidade, situada a poucas polegadas do nível das águas, “contém cerca de quinhentas habitações, e o total de habitantes fixos talvez ascenda a dois mil, dos quais se calcula que dois terços são brancos ou muito levemente tisnados”. Muitas casas, porém, raramente eram ocupadas por seus moradores “salvo por ocasião de festas”. 

     A fileira principal de casas corre em direção leste-oeste, gozando de suas janelas de rótula a perspectiva de uma ilha extensa, chata e despida, do outro lado de um canal de cerca de seiscentas jardas de largura. Por trás dessa fileira de casas, que é realmente bonita e graciosa, fica uma rua de cabanas pequeninas e baixas, feitas de barro e cobertas de palha, habitações das classes mais baixas. Nesse lugar, aquelas acumulações de areia de que já falamos, freqüentemente se dão, e, durante a minha estada em São Pedro, muitas dessas casas foram quase soterradas e muito danificadas. Se não fosse essa barreira, as casas melhores estariam expostas ao mesmo destino. 

        Ao descrever os edifícios públicos e as residências das personalidades mais eminentes da comunidade, o comerciante descreve a “Catedral, cuja singeleza, tanto por fora como por dentro, não impede que seja um belo edifício”. A igreja, erguida na metade do século XVIII, apresenta em seu interior “espaços gradeados reservados aos fiéis homens, enquanto que no centro se acha a localidade das mulheres”. A igreja apresenta uma altura de quinze pés e a frente dela a areia se acumula a igual altura; o vento soprando constantemente, “fez com que a areia se afastasse das paredes formando uma espécie de desfiladeiro profundo e sombrio que conduz à porta”. A igreja não despertou maior interesse assim como as edificações bélicas como o Forte Jesus-Maria-José “obra essa mais própria para combater uma insurreição do que a repelir inimigos”, pois a mesma “consta de um monte artificial de areia, com os lados recobertos de céspedes e, por cima, uma plataforma circundada por um parapeito de terra”. Os canhões deste Forte “são peças de bronze para projéteis de dezoito libras, de excelente fabricação e enfeitados com as armas de Espanha”, esses canhões são montados sobre carretas “que se desmantelariam ao primeiro disparo e colocadas num círculo suficientemente distante do canal para não causar o mínimo aborrecimento a um inimigo que se aproxime”. Até o paiol, não passava de “uma mísera cabana de taipa, ao pé do morro, com umas poucas balas espalhadas ao redor” o que indica o precário estado da defesa militar do Rio Grande. 

       A Alfândega chama a atenção de Luccock que a define como digna de lástima. “É uma construção de cantaria, com paredes de cerca de dez pés de alto, coberto de um telhado muito íngreme que lhe dá o aspecto de uma velha cocheira inglesa”. A precariedade do estabelecimento alfandegário era ainda maior no trapiche público, o único lugar em que todas as mercadorias deveriam ser desembarcadas e que não possuía infraestrutura para tal função. A cadeia, situava-se a pequena distância da Alfândega consistindo num “calabouço miserável que apenas recebe luz através de um gradeado aberto na frontaria” e que também deixa os prisioneiros à vista numa exibição gratuita de desgraça. Se os prédios públicos apresentavam péssimas condições de ocupação, as residências não fugiam a essa situação. A casa do Governador, situada na rua principal, “tem um andar só, como a maioria dos seus vizinhos, mas distingue-se quase que de todas as outras habitações do lugar, pelo fato de dispor de uma escadaria de uns poucos degraus, e por suas janelas munidas de vidraças”. Já o vigário morava numa casa de dois pisos onde “as paredes são caiadas, as janelas muito parecidas com as dos nossos depósitos de feno”. 

        A presença do Governador nas ruas era anunciada com tambores, ao som dos quais o povo surgia à frente das casas a fim de prestar sua homenagem. O Governador usava uniforme de general, conversando e cumprimentando as pessoas, transmitindo segurança e conforto que o autor não encontrara por parte de soldados na banda norte do Prata. Em Rio Grande “os homens de armas, devidamente apetrechados para o serviço, achavam-se postados na casa do governo, no cais e em todos os edifícios públicos”, numa demonstração de ordem e disciplina. O tratamento que poderia receber por parte da soldadesca ou de marinheiros de outras nacionalidades era fator de apreensão para Luccock, apesar da orientação oficial ser a de tratar com distinção todos os súditos ingleses que tinham direitos de extraterritorialidade a serem respeitados. Os crimes eram comuns devido à facilidade de fuga, pois a região era vasta e aberta enquanto a população era pequena. “O assassinato é comum e, é fácil a um assassino transpor a fronteira; ali permanece ele, até que seus amigos tenham conseguido arranjar as coisas”, posteriormente, retorna confiante “sendo que a recepção que a sociedade lhe faz não demonstra lembrança alguma de que suas mãos se tenham manchado no sangue”. As vítimas de ferimentos a faca ou bala, não poderia esperar um bom atendimento, pois o único médico da cidade, um alemão, utilizava instrumentos cirúrgicos sem condições de uso, como uma serra enferrujada para amputar um membro: “bem grandes devem ser os padecimentos dos doentes destas paragens”. 

     O papel militar do Rio Grande, definido em seus primórdios, ainda era um fator fundamental na primeira década do século XIX, “na realidade a cidade é uma guarnição, sendo o Governador seu comandante em chefe”. Dois regimentos de linha, um corpo de cavalaria e um regimento de milícia, compõe a força militar na qual “todo homem livre da região se acha alistado numa ou noutra dessas unidades”. Era possível reunir uma força considerável em pouco tempo no caso de uma emergência. “A tropa camponesa e a milícia eram falhas em tudo, exceto em número; apareciam em campo munidas de laços e eram de fato capazes de apanhar o inimigo com maior perícia do que a que podiam desenvolver no uso do mosquete”. 

      A vinda de Luccock está ligada há expansão do comércio e as possibilidades de enriquecimento, dedicando o comerciante inglês, vários parágrafos a esse tema: “Por essa época, o comércio do Rio Grande estava passando por grandes alterações, de cuja natureza e extensão os habitantes não se mostravam a par”. As importações, baseadas em produtos portugueses como lãs, “começavam a ser desbancados pelos produtos ingleses, que se forneciam a preço mais barato e eram melhor adaptados ao crescente gosto pela exibição”. O aumento da população, decorrente do progresso no comércio concorreu para aumentar o consumo e o custo dos mantimentos. “A procura de couros e de sebo encontrava oferta principalmente aqui e em Buenos Aires, e a admissão da navegação britânica no último destes lugares produzira efeitos imediatos e notáveis nestes artigos”. Na avaliação do autor, “o comércio interior, de além das fronteiras, o mais lucrativo de que São Pedro gozava, achava-se em progresso”. As importações tinham mercado nas vizinhanças da cidade enquanto “uma parte maior seguia pela Lagoa dos Patos acima de Porto Alegre e os rios que ali deságua; pela Lagoa Mirim e através do Ygaroon para a linda região que fica por detrás de Montevidéu e Maldonado”. As exportações recolhidas dessa região baseava-se no couro, sebo, trigo, cebola, queijo e charque, artigos que eram remetidos ao Rio de Janeiro e Bahia. 

       Antes de iniciar a comercialização dos artigos trazidos da Inglaterra, o navio foi vistoriado por ingleses que agiram com rapidez liberando a carga. Já a vistoria portuguesa foi lenta, apesar dos negócios a bordo terem sido “grandemente facilitados pelo cuidado que tivéramos de munir a mesa com queijo inglês e cerveja forte, dois artigos pelos quais os brasileiros mostram forte predileção”. Porém, a boa mesa não foi suficiente para a liberação da carga “tendo um dos membros da expedição fiscal sugerido que, nessas ocasiões, umas tantas propinas eram sempre convenientes e bem recebidas”. A sugestão é acatada e o “resultado foi que nos concederam licença, no dia seguinte, para que dispuséssemos de tudo que quiséssemos do carregamento e da maneira que melhor nos parecesse”. A expectativa de boas vendas foi frustrada pelo desinteresse dos consumidores. As mercadorias “tinham vindo parar em mau mercado”, pois chocou ao comerciante “quão poucas são as necessidades que seu povo demonstra ter e quão generalizado é seu pouco caso pelo luxo”. O mercado consumidor estava em formação e as dificuldades não estavam somente no desinteresse pelo luxo, mas no próprio meio circulante, pois “havia ainda grande deficiência de moeda, sendo desconhecidas as cambiais”. O volume de mercadorias foi superior ao que o mercado poderia assimilar e frente a uma grande perda, alternativas foram implementadas: “Foi necessário desembarcar muitos dos nossos gêneros, e resolvemos exportar a grande maioria deles, a custa apenas da taxa de trânsito, em tal caso devida”. Em relação a esta primeira parte,buscou-se uma série de alternativas como a abertura de um armazém “tão grande e bem fornido, como jamais antes São Pedro vira”. Além disso “enchemos várias das lojas varejistas, cujos proprietários empregamos em vender por nossa conta; despachamos vendedores ambulantes pelas vizinhanças, e até certa distância, aceitando uma hasta pública, a ser realizada na Alfândega e debaixo da superintendência dos funcionários do estado”. Até o leilão foi fator de frustração, pois nenhum lote foi vendido, apesar de Luccock ter infiltrado uma pessoa de confiança encarregado de elevar os lances. O resultado é que, frente aos baixos lances, essa pessoa acabou comprando todos os lotes. “Se em vez de negócios, fosse nosso fim os prazeres e os divertimentos sociais, pouco teríamos que nos queixar de São Pedro”. Suas cercanias propiciavam oportunidades para os passeios a pé, esportes de campo e equitação. “As pessoas, em geral, pareciam propensas ao bom-humor, vivendo em boa paz umas com as outras e amáveis para com os estrangeiros”. 


[1] LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1975, p.XIII. 

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