*Capítulo do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma
europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995.
O
médico alemão Robert Christian Berthold Avé-Lallemant (1812-1884), quando
recém-formado, em 1837, veio para o Rio de Janeiro, atuando como diretor do
hospital de febre amarela, retornando para Lübeck, sua cidade natal, em 1855.
Voltaria ao Brasil, numa expedição científica de Humboldt, chegando novamente
ao Rio de Janeiro, em 1857, permanecendo aí como médico do Hospital de
Estrangeiros. Nos dois anos seguintes, empreendeu suas viagens aos sul e ao
norte do país, de que resultaram os magníficos volumes que logo a seguir
publicou. Regressou para Lübeck, em 1859, onde se radicou definitivamente,
salvo para uma excursão ao Egito, pelo Nilo, quando da abertura do Canal de
Suez[1].
Sobre
o Rio Grande do Sul, Ave-Lallemant publicou, em 1859, o livro Reise durch Süd-Brasilien im Jahre 1858,
no qual tratou das localidades que visitou como Rio Grande, Porto Alegre, São
Leopoldo, Rio Pardo, Santa Cruz, Cruz Alta, Cachoeira, Santo Ângelo, Santa
Maria, a região das Missões, São Borja, Itaqui, Uruguaiana, Alegrete e
Caçapava. Dedicou ainda um capítulo para fazer um retrospecto sobre a viagem na
Província, contendo observações sobre a sua aparência, algumas de suas
condições e a colonização; e outro, acerca da mina de carvão de pedra de São
Jerônimo no Arroio dos Ratos e relatando sua partida da Província. Realizou
ainda outras publicações como uma tratando especificamente da colonização alemã
para o sul do Brasil.
No
Prefácio de sua obra sobre a viagem ao Rio Grande do Sul, o autor explicava
seus objetivos, os limites e as condições nas quais realizou seus escritos.
Explicava que, como médico, exercendo a clínica por vários anos no Brasil, não
pretendia a posição e o mérito de um naturalista profissional, motivo pelo qual
carecia seu relato de louçanias encontradas em outros livros de viagem.
Relatava que escrevera aquelas páginas debaixo de árvores, em choças, entre
europeus, negros, índios e mestiços, às vezes em cômoda situação de vida, em
outras, constrangido às mais duras privações, sem teto, sem cama, sem comida e
sem bebida. Destacava ainda que, numa penosíssima expedição às selvas, tivera
de vadear rios e pântanos, de pés descalços, guiado apenas pela bússola. E
arrematava, pedindo perdão ao leitor por se ufanar de ter viajado sozinho, com
suas próprias energias, guiado por uma vontade tenaz, embora talvez não fossem
lá muito invejáveis seus esforços e renúncias[2].
O
viajante e naturalista alemão esteve no Rio Grande do Sul durante 1858 e, mais
especificamente na cidade do Rio Grande, fez ligeira passagem em fevereiro
desse ano. Sua primeira impressão foi em relação à costa da localidade,
destacando que, apesar do sistema de sinalização, a entrada à Barra continuava
a ser grande obstáculo. Nesse sentido, narrava ele que o mar estava
inteiramente cinza e se achava à altura da costa do Rio Grande, avistando
tristes e calvas dunas, cuja cadeia parecia infindável, de modo que, em pouco,
surgiram dentre o mar de areia e a areia do mar dois faróis, um redondo,
vermelho e outro quadrado, azul. Seu navio começou a trocar sinais com o farol
e o comandante queria 13 palmos de profundidade na Barra, ao que o farol acenou
que não. E complementava, afirmando que a entrada media apenas 12 palmos de
profundidade, vindo sua embarcação a ancorar contra violentíssima ressaca.
Os
empecilhos para ultrapassar a Barra quase levaram o comando do navio a desistir
de ai desembarcar, indo para Montevidéu, o que acabou por não ocorrer. Mesmo
assim, a Barra rio-grandina causou extrema má impressão ao médico, que a
considerou como uma das mais desagradáveis e mais perigosas que existia,
destacando também o grande número de naufrágios, dos quais observava-se
infelizmente restos e destroços de navios naufragados que se elevavam sobre os
baixios. Para ele, os problemas da Barra eram intransponíveis, afirmando que
não podia imaginar um meio de melhorar as condições de navegabilidade da mesma,
devido às enormes massas de areia que facilmente eram movidas para cá e para lá
pelas ondas e mesmo pelo vento, ficando inviável aprofundar as águas
navegáveis. Referia-se ainda aos diversos projetos para o melhoramento da Barra
do Rio Grande, ironizando-os, ao considerar todos viáveis apenas pra quem não
viu o mar tumultuoso e o caos das ressacas por entre as quais ficava a entrada
do Porto do Rio Grande.
Diante
disso, o autor apontou como alternativa para o estado crítico da Barra, que
constituía uma preocupação para a Província e uma questão vital para a cidade
do Rio Grande, a construção de uma boa estrada de rodagem, uma estrada de
ferro, um canal de Porto Alegre para Laguna, embora reconhecesse que com
qualquer uma dessas soluções muito perderia a cidade portuária.
Como
naturalista, preocupou-se em discorrer rapidamente sobre alguns aspectos da
flora e da fauna da região, causando-lhe admiração a enorme quantidade de aves
que ali encontrara. A primeira imagem que teve da cidade foi o cais, onde
viam-se numerosas embarcações, de diferentes tamanhos, especialmente brigues e
escunas. Relatou que à direita, em direção ao mar, estendia-se um caos de areia
e água, enquanto à esquerda, elevavam-se em toda parte montes de areia de grão
fino e de maior calibre num grande arco de plantações verdejantes, até matas e
quintas, naturalmente sobrepujadas, sempre, pelos colossais montes de areia.
Quanto
à cidade, apesar apontar para o fato dela possuir ruas regulares, sem
calçamento, largas, com passeios, com casas muito bonitas, Ave-Lallemant
escreveu que outras coisas belas não viu e considerou que quem não se
interessasse apaixonadamente por peles e couros, chifres e carne-seca, ou não
fosse um caçador fanático, não viveria dias felizes no Rio Grande. Apesar
disso, pareceu-lhe que ali se comia e bebia muito bem, havendo certo bem-estar
ou antes luxo em toda parte e onde quer que se fosse não ocorria falta de
conforto. Apontou ainda a existência de algumas damas de aparência
anglo-saxônica, que andavam rugindo sedas nas ruas, trajando vestidos muito
compridos.
A
passagem de Lallemant por Rio Grande foi extremamente rápida, de modo que
relatava que as poucas horas passadas ali não lhe permitiram ver mais
pormenores. Ele retornaria à cidade no mês de maio, quando já se retirava da
Província, reconhecendo a pouca atenção que dedicara àquela praça. Destacava
que na sua primeira visita à cidade, sua impaciência em ver o interior da
Província lhe tinha cegado um pouco quanto à amenidade da estada numa cidade
rio-grandense e, desejava que em seu regresso para ali, ao reconhecer tudo o
que experimentara, lhe faltassem sentidos e olhos abertos para os encantos
daquela rainha das areias do mar. E, finalmente, confessava que nunca passara
por uma cidade com tanta indiferença como pelo Rio Grande, embora ela tivesse
muitos lados interessantes.
Apesar
de falar em “lados interessantes”, o autor não os abordou e, ao contrário,
destacou as dificuldades geográficas e econômicas pelas quais passava a
localidade. Relatava assim que a cidade ficava entre areias e pântanos, além do
que, durante sua curta demora, achava-se a gente em desesperadora crise
comercial, que parecia ter tirado o ânimo a todos para se preocuparem com outra
coisa que não fossem prejuízos em couros de boi e letras protestadas. Diante
disso, ele justificava seu pouco interesse pelo Rio Grande, afirmando que,
como, com sua viagem, não poderia levar melhoramento algum à cidade e não tinha
absolutamente ninguém a quem dirigir consignações, não poderia ter interesse
por pessoa alguma e a ninguém conhecera ali, embora gostasse de ter convivido
com alguma família alemã, precisamente para levar consigo, no mar, a sua última
saudação e poder descrevê-la, no relato de sua viagem ao Rio Grande, como
último e amável quadro da vida alemã em família, da vida em comum.
Essa
“procura” da família alemã vem ao encontro de uma das características de
Avé-Lallemant, atuando como provocador intelectual e ferindo dois pontos
delicados que têm dado margem a muita discussão exaltada, quer seja, a
contribuição de Portugal e da imigração alemã na formação e desenvolvimento do
Brasil[3].
Assim, a obra de Robert Ave-Lallemant apesar de ser considerada como um livro
deveras atraente, metodicamente escrito e de particular importância para a mais
sulina província brasileira[4],
ou ainda, como um verdadeiro hino ao Rio Grande do Sul[5], o
mesmo não se dá quanto às suas asserções sobre a cidade do Rio Grande, dando
bem mais relevo a alguns aspectos negativos da localidade, apesar de ter
permanecido tempo bastante reduzido na mesma.
[1] BARRETO, Abeillard. Bibliografia
sul-rio-grandense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento
e a integração do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal de
Cultura, 1973. v. 1. p. 82.
[2] AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pela Província do Rio Grande do Sul (1858). Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980.
[3] CABRAL, Teodoro. Prefácio do tradutor. In:
AVÉ-LALLEMANT. p. 10.
[4] BARRETO, Abeillard. Viajantes estrangeiros no Rio Grande
do Sul até 1900. In: Fundamentos da
cultura rio-grandense. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade
do Rio Grande do Sul, 1962. 5ª série. p. 44.
Nenhum comentário:
Postar um comentário