Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

VISÕES DO RIO GRANDE - AVÉ-LALLEMANT


*Capítulo do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995.  
 Ave-Lallemant
         O médico alemão Robert Christian Berthold Avé-Lallemant (1812-1884), quando recém-formado, em 1837, veio para o Rio de Janeiro, atuando como diretor do hospital de febre amarela, retornando para Lübeck, sua cidade natal, em 1855. Voltaria ao Brasil, numa expedição científica de Humboldt, chegando novamente ao Rio de Janeiro, em 1857, permanecendo aí como médico do Hospital de Estrangeiros. Nos dois anos seguintes, empreendeu suas viagens aos sul e ao norte do país, de que resultaram os magníficos volumes que logo a seguir publicou. Regressou para Lübeck, em 1859, onde se radicou definitivamente, salvo para uma excursão ao Egito, pelo Nilo, quando da abertura do Canal de Suez[1].
         Sobre o Rio Grande do Sul, Ave-Lallemant publicou, em 1859, o livro Reise durch Süd-Brasilien im Jahre 1858, no qual tratou das localidades que visitou como Rio Grande, Porto Alegre, São Leopoldo, Rio Pardo, Santa Cruz, Cruz Alta, Cachoeira, Santo Ângelo, Santa Maria, a região das Missões, São Borja, Itaqui, Uruguaiana, Alegrete e Caçapava. Dedicou ainda um capítulo para fazer um retrospecto sobre a viagem na Província, contendo observações sobre a sua aparência, algumas de suas condições e a colonização; e outro, acerca da mina de carvão de pedra de São Jerônimo no Arroio dos Ratos e relatando sua partida da Província. Realizou ainda outras publicações como uma tratando especificamente da colonização alemã para o sul do Brasil.
         No Prefácio de sua obra sobre a viagem ao Rio Grande do Sul, o autor explicava seus objetivos, os limites e as condições nas quais realizou seus escritos. Explicava que, como médico, exercendo a clínica por vários anos no Brasil, não pretendia a posição e o mérito de um naturalista profissional, motivo pelo qual carecia seu relato de louçanias encontradas em outros livros de viagem. Relatava que escrevera aquelas páginas debaixo de árvores, em choças, entre europeus, negros, índios e mestiços, às vezes em cômoda situação de vida, em outras, constrangido às mais duras privações, sem teto, sem cama, sem comida e sem bebida. Destacava ainda que, numa penosíssima expedição às selvas, tivera de vadear rios e pântanos, de pés descalços, guiado apenas pela bússola. E arrematava, pedindo perdão ao leitor por se ufanar de ter viajado sozinho, com suas próprias energias, guiado por uma vontade tenaz, embora talvez não fossem lá muito invejáveis seus esforços e renúncias[2].
         O viajante e naturalista alemão esteve no Rio Grande do Sul durante 1858 e, mais especificamente na cidade do Rio Grande, fez ligeira passagem em fevereiro desse ano. Sua primeira impressão foi em relação à costa da localidade, destacando que, apesar do sistema de sinalização, a entrada à Barra continuava a ser grande obstáculo. Nesse sentido, narrava ele que o mar estava inteiramente cinza e se achava à altura da costa do Rio Grande, avistando tristes e calvas dunas, cuja cadeia parecia infindável, de modo que, em pouco, surgiram dentre o mar de areia e a areia do mar dois faróis, um redondo, vermelho e outro quadrado, azul. Seu navio começou a trocar sinais com o farol e o comandante queria 13 palmos de profundidade na Barra, ao que o farol acenou que não. E complementava, afirmando que a entrada media apenas 12 palmos de profundidade, vindo sua embarcação a ancorar contra violentíssima ressaca.
         Os empecilhos para ultrapassar a Barra quase levaram o comando do navio a desistir de ai desembarcar, indo para Montevidéu, o que acabou por não ocorrer. Mesmo assim, a Barra rio-grandina causou extrema má impressão ao médico, que a considerou como uma das mais desagradáveis e mais perigosas que existia, destacando também o grande número de naufrágios, dos quais observava-se infelizmente restos e destroços de navios naufragados que se elevavam sobre os baixios. Para ele, os problemas da Barra eram intransponíveis, afirmando que não podia imaginar um meio de melhorar as condições de navegabilidade da mesma, devido às enormes massas de areia que facilmente eram movidas para cá e para lá pelas ondas e mesmo pelo vento, ficando inviável aprofundar as águas navegáveis. Referia-se ainda aos diversos projetos para o melhoramento da Barra do Rio Grande, ironizando-os, ao considerar todos viáveis apenas pra quem não viu o mar tumultuoso e o caos das ressacas por entre as quais ficava a entrada do Porto do Rio Grande.
         Diante disso, o autor apontou como alternativa para o estado crítico da Barra, que constituía uma preocupação para a Província e uma questão vital para a cidade do Rio Grande, a construção de uma boa estrada de rodagem, uma estrada de ferro, um canal de Porto Alegre para Laguna, embora reconhecesse que com qualquer uma dessas soluções muito perderia a cidade portuária.
         Como naturalista, preocupou-se em discorrer rapidamente sobre alguns aspectos da flora e da fauna da região, causando-lhe admiração a enorme quantidade de aves que ali encontrara. A primeira imagem que teve da cidade foi o cais, onde viam-se numerosas embarcações, de diferentes tamanhos, especialmente brigues e escunas. Relatou que à direita, em direção ao mar, estendia-se um caos de areia e água, enquanto à esquerda, elevavam-se em toda parte montes de areia de grão fino e de maior calibre num grande arco de plantações verdejantes, até matas e quintas, naturalmente sobrepujadas, sempre, pelos colossais montes de areia.
         Quanto à cidade, apesar apontar para o fato dela possuir ruas regulares, sem calçamento, largas, com passeios, com casas muito bonitas, Ave-Lallemant escreveu que outras coisas belas não viu e considerou que quem não se interessasse apaixonadamente por peles e couros, chifres e carne-seca, ou não fosse um caçador fanático, não viveria dias felizes no Rio Grande. Apesar disso, pareceu-lhe que ali se comia e bebia muito bem, havendo certo bem-estar ou antes luxo em toda parte e onde quer que se fosse não ocorria falta de conforto. Apontou ainda a existência de algumas damas de aparência anglo-saxônica, que andavam rugindo sedas nas ruas, trajando vestidos muito compridos.
         A passagem de Lallemant por Rio Grande foi extremamente rápida, de modo que relatava que as poucas horas passadas ali não lhe permitiram ver mais pormenores. Ele retornaria à cidade no mês de maio, quando já se retirava da Província, reconhecendo a pouca atenção que dedicara àquela praça. Destacava que na sua primeira visita à cidade, sua impaciência em ver o interior da Província lhe tinha cegado um pouco quanto à amenidade da estada numa cidade rio-grandense e, desejava que em seu regresso para ali, ao reconhecer tudo o que experimentara, lhe faltassem sentidos e olhos abertos para os encantos daquela rainha das areias do mar. E, finalmente, confessava que nunca passara por uma cidade com tanta indiferença como pelo Rio Grande, embora ela tivesse muitos lados interessantes.
         Apesar de falar em “lados interessantes”, o autor não os abordou e, ao contrário, destacou as dificuldades geográficas e econômicas pelas quais passava a localidade. Relatava assim que a cidade ficava entre areias e pântanos, além do que, durante sua curta demora, achava-se a gente em desesperadora crise comercial, que parecia ter tirado o ânimo a todos para se preocuparem com outra coisa que não fossem prejuízos em couros de boi e letras protestadas. Diante disso, ele justificava seu pouco interesse pelo Rio Grande, afirmando que, como, com sua viagem, não poderia levar melhoramento algum à cidade e não tinha absolutamente ninguém a quem dirigir consignações, não poderia ter interesse por pessoa alguma e a ninguém conhecera ali, embora gostasse de ter convivido com alguma família alemã, precisamente para levar consigo, no mar, a sua última saudação e poder descrevê-la, no relato de sua viagem ao Rio Grande, como último e amável quadro da vida alemã em família, da vida em comum.
         Essa “procura” da família alemã vem ao encontro de uma das características de Avé-Lallemant, atuando como provocador intelectual e ferindo dois pontos delicados que têm dado margem a muita discussão exaltada, quer seja, a contribuição de Portugal e da imigração alemã na formação e desenvolvimento do Brasil[3]. Assim, a obra de Robert Ave-Lallemant apesar de ser considerada como um livro deveras atraente, metodicamente escrito e de particular importância para a mais sulina província brasileira[4], ou ainda, como um verdadeiro hino ao Rio Grande do Sul[5], o mesmo não se dá quanto às suas asserções sobre a cidade do Rio Grande, dando bem mais relevo a alguns aspectos negativos da localidade, apesar de ter permanecido tempo bastante reduzido na mesma.



[1] BARRETO, Abeillard. Bibliografia sul-rio-grandense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento e a integração do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973. v. 1. p. 82.
[2] AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pela Província do Rio Grande do Sul (1858). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980.
[3] CABRAL, Teodoro. Prefácio do tradutor. In: AVÉ-LALLEMANT. p. 10.
[4] BARRETO, Abeillard. Viajantes estrangeiros no Rio Grande do Sul até 1900. In: Fundamentos da cultura rio-grandense. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul, 1962. 5ª série. p. 44.
[5] BARRETO. v. 1. p. 83.

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