*Capítulo do livro de Francisco das Neves Alves e Luiz Henrique Torres, "Visões do Rio Grande: a cidade sob o prisma europeu no século XIX". Rio Grande: FURG, 1995.
Baguet
O belga Alexandre Baguet (1817-1897) chegou ao Brasil em 1840. Entre 1845-1846 excursionou pelo Rio Grande do Sul e Paraguai. Fora contratado pelo aventureiro americano Edward Hopkins, que se passava por um diplomata representante do governo dos Estados Unidos frente ao governo paraguaio. Os constrangimentos causados pela má reputação de Hopkins levaram Baguet a não se referir às motivações da viagem ao lado do aventureiro. Ao regressar para a Bélgica em 1874, assumiu o cargo de cônsul honorário na Antuérpia.
Baguet deixou registrado seu deslocamento pela então Província em seu livro "Viagem ao Rio Grande do Sul"[1] onde narra sua passagem por Rio Grande e a navegação pela Lagoa dos Patos até Porto Alegre. Percorreu o centro e noroeste do Rio Grande do Sul, com destaque para a região missioneira além do Paraguai. Suas observações, mesmo que ligadas à condenação do movimento farroupilha, voltaram-se a desmistificação de uma Província associada ao banditismo dos gaúchos, palavra que ele utiliza no sentido de malfeitores que atuam com caudilhos platinos.
O viajante buscou difundir na Bélgica uma imagem positiva do Rio Grande do Sul enquanto um território que havia superado a fragmentação da guerra civil, dotado de amplas possibilidades econômicas para colonização e de viável intercâmbio comercial.
Ele partiu do Rio de Janeiro no final do mês de agosto de 1845, a bordo da escuna Sea Bird e, algumas horas depois, “ela deslizava sobre as ondas, deixando para trás, como para justificar melhor seu nome de Pássaro do Mar, todos os navios que encontrávamos.”
A Revolução Farroupilha recém encerrara um período de dez anos de guerra civil e o imaginário no centro do país, era o de um território ligado a insurreição contra o governo central brasileiro. Compreende-se a preocupação do autor em afastar-se dos amigos no Rio de Janeiro os quais, segundo ele, tinham descrito os campos do Rio Grande, erroneamente, porém, como um refúgio de bandidos dos quais raramente se escapava. A desorganização da economia com a guerra, difundiu a idéia de que muitos salteadores e desertores percorriam a campanha, para roubar os viajantes; porém Baguet desmistifica a visão de uma terra sem lei ou civilidade acreditando que se poderia viajar pela Província do Rio Grande de São Pedro do Sul com relativa segurança.
A viagem marítima transcorreu sem sobressaltos até a proximidade da Barra do Rio Grande quando o capitão da escuna, “temendo um pampeiro, fez-se ao largo e ventos contrários não nos permitiram entrar nas águas desejadas. Por infelicidade, ergueu-se o pampeiro previsto pelo capitão e a escuna, quase sem velame, pulando sobre as ondas que se elevavam a uma altura assustadora, foi durante dois dias o joguete da tempestade!...”
A tempestade dramatizou a chegada a Rio Grande com o risco eminente de naufrágio. Conforme ele, o vento era de uma impetuosidade tal que as ondas se sucediam com vertiginosa rapidez, a ponto de o mar não oferecer mais que uma vasta extensão de espuma. “Uma inquietude mortal tomou conta de nós, quando vimos à escuna tombar para o lado, não obedecendo mais ao leme, e o capitão ordenar ao imediato que levasse os machados ao tombadilho. O perigo era iminente, tínhamos a morte diante dos olhos, quando felizmente a escuna endireitou-se. A tempestade cessou enfim; mas o mar estava tão agitado, as ondas cavavam sulcos tão profundos, que imprimiam ao navio um terrível balanço contínuo, já não nos permitindo ficar de pé no tombadilho.”
A documentação registra desde as primeiras décadas do século XVIII, as dificuldades para a navegação pela barra do Rio Grande. Ainda assustado pela tempestade, Baguet descreveu a entrada da barra como “muito perigosa, por causa de seus bancos de areia que se deslocam freqüentemente sob a ação das correntes. As borrascas chegam a carregar montículos que turbilhonam no ar e às vezes cobrem o tombadilho do navio com uma leve camada de areia.”
Os naufrágios faziam parte do imaginário dos viajantes que percorriam a barra para desembarcar na cidade: “Passamos perto de um veleiro encalhado nas dunas. O capitão do navio, menos previdente que o nosso, ziguezagueara diante da barra e durante a noite o pampeiro jogara-o para a costa. Quando voltei, alguns meses depois, não se via mais do que a ponta de seus mastros. Algumas horas após ter alcançado o farol, subimos o canal e lançamos âncora diante da cidade de São Pedro do Sul.”
Ao percorrer Rio Grande, o ficou impressionado com o flagelo das areias e das águas estagnada. A ausência de arborização, já destacada por Saint-Hilaire em 1820, persiste como um problema local: “nada de verde, nada de sombra, nenhum passeio, a vista se perde nas areias que as rajadas de vento erguem e encrespam, como a brisa suave encrespa a superfície da água.” Realizou algumas observações sobre a cidade que segundo ele, “tem um aspecto muito triste: suas ruas são mal iluminadas, algumas nem pavimentadas, e não possui nenhum edifício realmente digno de nota.”[2]
Conforme Baguet, “a areia e a água são os dois flagelos de Rio Grande: do lado do mar a água invade as casas e a areia sem cessar ameaça sepultá-las.” Entretanto, uma projeção de futuro é feita pelo belga que acreditava que “graças a seu comércio e seu porto, que é o único desta rica província, a cidade sofrerá, pela força das circunstâncias, uma transformação completa. Já possui um teatro, uma espaçosa alfândega e outros edifícios estão em construção.” Na cidade, realiza-se um comércio muito ativo: “pavilhões de todas as nações flutuam no porto. O movimento consiste principalmente em couros secos e salgados, lãs, sebos, crinas e carne seca, de que se faz enorme consumo em todo o Brasil e em Havana.” Durante sua estadia também teve contato com retirantes de Montevidéu, que fugiam da guerra civil, constatando que em Rio Grande estavam faltando habitações para receber os refugiados.
Os viajantes estrangeiros como Baguet trazem ideias preconcebidas que constituíam o imaginário das dificuldades e perspectivas de quem chegava a Rio Grande no século XIX. Porém, informações espontâneas também surgem nestes escritos, relacionadas ao vento, a areia, as águas e a perspectiva de dinamização e crescimento urbano com as atividades comerciais do porto.
Nestes viajantes, a memória constituída pelos fragmentos informativos sobre a vida social, econômica e urbana da cidade, são valiosos subsídios para a construção da história local. São memórias com as quais as histórias são escritas.
[2] BAGUET, p. 29. O autor
também se refere a São José do Norte onde a invasão da areia produzia grandes
prejuízos: “Visitamos a pequena cidade de São José do Norte, situada na margem
esquerda, em frente a Rio Grande. Seu porto era outrora muito freqüentado, mas
hoje em dia não é mais que uma vila miserável, de aspecto muito triste, na
qual, para o lado da campanha, muitas casas foram invadidas pela areia, a ponte
de delas não se avistar mais o teto”. p. 30.
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