Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

UMA PASSAGEIRA DESCONTRAÇÃO


 
Oficial da Cavalaria Ligeira do Rio Grande. Livro do Engenheiro Militar José Correia RANGEL (1786). 
 Há mais de 240 anos no passado o momento era de grande tensão para aqueles que estavam na então Vila do Rio Grande de São Pedro. Enfrentamentos eminentes possibilitavam a perda da vida no contexto das lutas entre luso-brasileiros e espanhol-platinos. Porém, não é a possível morte, ferimento ou aprisionamento que vou enfatizar e sim o relato documental de algumas horas de relaxamento dos soldados portugueses e brasileiros que muito longe de seus lares viviam dias difíceis.  
Desde a fundação do Rio Grande em 1737, raros são os relatos voltados a momentos de entretenimento. A tensão do conflito com os espanhóis pelo controle da Barra do Rio Grande marcou os 40 primeiros anos de ocupação militar e civil. Em 1776, no dia 1 de abril ocorre a retomada da Vila do Rio Grande após 13 anos de ocupação espanhola. Os anos de 1776-1777 foram dos mais tensos com a guerra contra os espanhóis e o temor de uma nova invasão da Vila. O cirurgião-mor Francisco Ferreira de Souza foi destacado do Rio de Janeiro para fazer parte da retomada da Vila e deixou uma descrição destes eventos. Uma passagem de sua Descrição evidenciou um raríssimo momento de descontração frente a dura e tensa vida militar. Era o dia 5 de novembro de 1776 e o Regimento de Moura (Portugal) e o Primeiro Regimento do Rio de Janeiro se encontraram para uma confraternização improvisada no Arroio do Pau, em algum lugar entre a atual Vila da Quinta e o Povo Novo.
 “Seriam duas horas do dia quando lá chegamos, bem cansados uns e bem suados outros, pois o sol desse dia tinha produzido um bem intenso calor.
Em um bem excelente campo se abarracou não só o Regimento de Moura, como também o Primeiro Regimento do Rio, pois a este circulava dois arroios, donde no mais intenso calor, sombra de desfolhados e antigos troncos carcomidos entre copados e desconhecidos arbustos, lográvamos a mais fresca e a mais bela sombra, onde cada um divertia suas considerações, seus sentimentos e seus pesares.
Dava pasto ao espírito à diversa natureza dos gênios, que neste retiro se achavam, por cujo princípio se fazia agradável este acampamento, porque uns inclinando-se ao jogo das cartas se divertiam no reverzine; e porque muitas vezes se sacava o valete, repunha o bolo, o que tinha o cavalo de copas, que com estes pinotes dava suas quedas à algibeira; outros, que se inclinavam ao jogo da manilha caiam muitas vezes na burrada e a força dos seus coices pagava dez; muito se divertiam no campo da glória e passavam todo o tempo em riso, pela felicidade do dado uns saltavam a ponte, outro logo voavam e os mais infelizes se metiam na cadeia, que para sair dela pagavam duas vezes, uns porque passavam o pássaro la se introduziam na estalagem, outros porque chegavam ao caranguejo, tornavam para trás; aqui o riso era incessante, alguns caíram no poço e ficaram qual caçamba sem corda, outros passando o pássaro, se adiantaram tanto que ficaram na barca e caído qual outro Ícaro nas águas, acharam-se na morte, onde por fim aí ficaram; alguns tiveram sua pena no purgatório, outros que escaparam dele, subiram a Glória, onde logrando o bolo se concluía o jogo; nada se oferecia nestes mesmos trabalhos, que não convertessem em divertimento, ainda quando se nos representavam diversos ranchos, uns com o saltério lá toavam o mais peregrino e saudoso minueto, outros com a viola a modinha nova, o curioso com o seu livro francês nos dava notícias, o moderno com o livro italiano recitava a boa ópera, pois até o tolo com as suas asneiras tinha lugar as suas parvoíces, porque uma eram jocosas, outras engraçadas e outras discretas”.
Um mês depois desta passagem descontraída o mundo real dos soldados da época retorna e é relatado por Francisco Ferreira de Souza: “No dia cinco de dezembro saiu o Primeiro Regimento do arroio do Pau (menos as duas Companhias que já se tinham antecipado) por uns desertos campos, sem barracas, para a Barra do Rio Grande e sem mais mantimentos, que dois pratos de farinha e se pondo a tropa em marcha nos fomos prolongando por um tão cruel campo, tão áspero, tão desabrido e tão inundado, que a tropa que ia de pé passava os charcos com água até os peitos, com as armas e com as patronas a cabeça; e com uma tolerância risonha tomaram esta jornada como por divertimento de seus males, sem sentimentos e dureza do espírito, além do pouco carretame que se deu para condução da tropa, que obrigou a muitos soldados, que unidos alugassem carretas para conduzir a palamenta, pois se fazia duro, impraticável e penoso, com tão intenso calor (como do meio dia para a tarde) caminha um soldado, com um machado, uma machadinha, uma pá, uma picareta e uma marmita, por uns campos incultos, silvestres e espinhosos, descalços, e viemos a pernoitar na Estância da Mangueira, onde passaram a noite, não só os oficiais, com também os soldados deitados no campo sem mais outro colchão que a terra, sem mais outra cobertura que o céu e sem mais mantimentos que a farinha, a qual já estava toda ensopada pela lama (sem dúvida desnecessária) que só comeu quem trouxe alforje, e foi esta a primeira vez em que os vi de lã preta.
Ao amanhecer do dia seguinte em jejum não só os oficiais, como igualmente os soldados, nos pusemos em jornada e seguindo viagem pelo campo com a natureza do dia antecedente, chegamos a Barra do Rio Grande pelas duas horas da tarde (na quadra mais quente do ano) onde nos aquartelamos dentro de duas cabanas em toda a sua construção, neste retiro que tem de distância da Vila e léguas, estamos como incomunicáveis, porque, os mesmo que nos vemos hoje, são os mesmos que nos visitamos amanhã; aqui estamos sofrendo os rigorosos calores da estação mais quente e os mais insuportáveis ventos da sua quadra, que quando são furiosos, até nos priva do sustento, porque, pondo-se o mar levantado, as soberbas ondas encapeladas, tanto embaraça vir à carne, como se fazer a pescaria”.

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