Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

terça-feira, 12 de novembro de 2019

NAUFRÁGOS NOS MARES DO SUL


Folha de rosto do livro original de Bulkeley e Cummins. Londres, 1743.

            O artilheiro John Bulkeley e o carpinteiro John Cummins escreveram um diário de viagem em que retratam os acontecimentos envolvendo o naufrágio do navio inglês Wager. O livro Uma viagem aos Mares do Sul (1740-1741) relata as desventuras que passaram desde a partida da Inglaterra, passando pelo naufrágio no extremo sul da América do Sul, a luta pela sobrevivência e viagem num pequeno barco, em direção ao litoral sul do Rio Grande do Sul.
           Conforme Francisco das Neves Alves (Os náufragos do Wager no Rio Grande In: Náufragos e naufrágios no litoral do Rio Grande. Rio Grande: FURG, 2001) a expedição da qual o Wager fazia parte, numa frota composta por mais oito navios, inseriu-se no contexto das disputas entre os países europeus em busca da expansão colonial e da exploração das riquezas do Novo Mundo, neste quadro, o comboio britânico tinha por objetivo combater os espanhóis nos “Mares do Sul”. Para os tripulantes ficava a esperança de uma ascensão social a partir da expedição, esperando os mesmos retornar à Inglaterra ricos graças aos despojos arrancados aos inimigos. As esperanças de riqueza, no entanto, não se confirmaram graças às intempéries e ao constante perigo do ataque do inimigo hispânico. O Wager acabaria por perder-se do restante da frota e entre as doenças e as contínuas possibilidade de motins, acabaria por ocorrer o naufrágio da embarcação, em maio de 1741. Os náufragos sobreviveram da caça, da pesca, das incursões aos escombros do navio e do contato com os indígenas, numa remota ilha na costa da Patagônia, persistindo os riscos da deserção e dos complôs, agravados pela falta de definição quanto aos objetivos futuros e aos rigores climáticos.
           A alternativa encontrada foi a construção de uma escuna que permitisse a retirada dos tripulantes remanescentes da ilha, surgindo dúvidas ainda quanto à rota a ser seguida – pelo norte, em direção à Ilha de Juan Fernandez, ou pelo sul, passando Estreito de Magalhães, até chegar o Brasil e, daí, partir para a Inglaterra. Vencedora a segunda proposta, os náufragos iniciaram os preparativos de ordem material para a viagem, bem como estabeleceram uma série de regras que visavam garantir a sobrevivência e a disciplina na nova empreitada, estabelecendo a divisão das provisões, a distribuição das rações, a obediência às ordens superiores e a proibição de mal-entendidos ou brigas a bordo; impondo-se as respectivas penas aos infratores, normalmente ligadas ao abandono dos mesmos à sua sorte ao longo da costa pela qual se desenvolveria o périplo.
           A escuna construída pelos náufragos, a Speedwell, zarpou em outubro de 1741, enfrentando uma série de dificuldades durante o percurso, ligadas aos obstáculos em ultrapassar o Estreito de Magalhães, às avarias provocadas pelas constantes tempestades, ao pouco espaço para a quantidade de homens, à insalubridade e à promiscuidade na embarcação, além da falta de motivação e à crônica carência de alimentos, pois as rações logo terminariam e a dieta passou a compor-se do que estivesse disponível, como focas, cães, ratos, couro seco ou carne estragada. Este quadro caótico levou a um grande número de mortos entre os náufragos, cujos corpos eram abandonados ao longo do caminho.
           Foi nesta calamitosa e exasperadora contingência que ocorreu à chegada dos náufragos do Wager à costa do Rio Grande do Sul, na recém-fundada povoação que, em 1737, dera início à ocupação lusitana no território sul-rio-grandense. Nesta época, a população do recente povoado vivia com grandes dificuldades, mormente voltadas às intempéries climáticas e aos graves problemas de abastecimento; a falta de rações, soldos e uniformes, bem como os maus tratos sofridos pelos militares completava o quadro de insatisfação, levando à deflagração da Revolta dos Dragões um movimento de cunho social ocorrido nos primórdios da colonização lusa no Rio Grande e que chegou a ameaçar a já instável legitimação da posse daquelas terras, tendo em vista os constantes litígios luso-hispânicos. No entanto, o comportamento até certo ponto ordeiro e a manutenção dos militares na execução de suas obrigações fizeram com que, num primeiro momento, os náufragos não chegassem a perceber o contexto de revolta que dominava a situação no Rio Grande. A chegada dos náufragos na povoação lusa se daria em janeiro de 1742 (no mesmo mês em que espocara a revolta), após conseguirem vencer os naturais obstáculos que representavam a passagem pela barra do Rio Grande. Recebidos por “um sargento do exército e um soldado”, os náufragos descrevem a hospitalidade recebida de parte dos portugueses, afirmando que “o comandante, os oficiais e o povo do lugar receberam-nos de uma maneira muito carinhosa e afável”, enviando “aos homens a bordo quatro quartos de carne e dois sacos de pão de farinha”, provisões formidáveis, ainda mais para uma comunidade que sofria com a constante falta de mantimentos. Revelando o caráter litigioso na disputa do território, o administrador da povoação buscou esclarecer o real objetivo dos navegadores, bem como questionou sobre o modo como eles ali haviam chegado e a respeito do conhecimento dos mesmos acerca da costa meridional da América do Sul.
           O bom tratamento recebido no primeiro contanto com os lusos foi amplamente abordado no diário de viagem, destacando que o “Governador” oferecera “tudo de que o país dispunha para aliviar os nossos males”, sendo os doentes enviados para o hospital e arranjada guarida para os náufragos e tomados cuidados para que os “tripulantes não sentissem falta de nada”, além de terem sido informados a respeito de parte da frota original que se encontrava no Rio de Janeiro. O alívio era a característica essencial do relato de Bulkeley e Cummins naquele primeiro momento de permanência no Rio Grande, que surgira como verdadeiro “paraíso”, diante da situação de agruras até então vivenciada. Neste sentido, afirmaram a respeito de sua chegada ao Rio Grande: “faz agora cerca de nove meses que naufragamos no Wager, tempo esse, durante o qual não acreditamos que mortal algum tenha sofrido as misérias e dificuldades que encontramos”; no entanto “o dia de hoje pode, com justiça, ser chamado o Dia da nossa Salvação, e sua lembrança deve ser guardada com a máxima gratidão”.
           Encerrada a revolta e após alguns desacertos e discussões sobre a forma pela qual se procederia o pagamento do deslocamento dos britânicos em direção ao Rio de Janeiro, os náufragos conseguiram finalmente atingir seu objetivo, saindo do Rio Grande a 31 de março de 1742. Depois da chegada ao Rio de Janeiro, eles conseguiram embarcar para Lisboa, via Salvador, tendo ainda enfrentado dificuldades de relacionamento com autoridades locais, e, da capital lusitana, partiram para a Inglaterra.

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