Folha de rosto do livro original de Bulkeley e Cummins. Londres, 1743. |
Conforme Francisco das
Neves Alves (Os náufragos do Wager no
Rio Grande In: Náufragos e naufrágios no litoral do Rio Grande. Rio Grande:
FURG, 2001) a expedição da qual o Wager fazia
parte, numa frota composta por mais oito navios, inseriu-se no contexto das
disputas entre os países europeus em busca da expansão colonial e da exploração
das riquezas do Novo Mundo, neste quadro, o comboio britânico tinha por
objetivo combater os espanhóis nos “Mares do Sul”. Para os tripulantes ficava a
esperança de uma ascensão social a partir da expedição, esperando os mesmos
retornar à Inglaterra ricos graças aos despojos arrancados aos inimigos. As
esperanças de riqueza, no entanto, não se confirmaram graças às intempéries e
ao constante perigo do ataque do inimigo hispânico. O Wager acabaria por perder-se do restante da frota e entre as
doenças e as contínuas possibilidade de motins, acabaria por ocorrer o
naufrágio da embarcação, em maio de 1741. Os náufragos sobreviveram da caça, da
pesca, das incursões aos escombros do navio e do contato com os indígenas, numa
remota ilha na costa da Patagônia, persistindo os riscos da deserção e dos
complôs, agravados pela falta de definição quanto aos objetivos futuros e aos
rigores climáticos.
A alternativa encontrada
foi a construção de uma escuna que permitisse a retirada dos tripulantes
remanescentes da ilha, surgindo dúvidas ainda quanto à rota a ser seguida –
pelo norte, em direção à Ilha de Juan Fernandez, ou pelo sul, passando Estreito
de Magalhães, até chegar o Brasil e, daí, partir para a Inglaterra. Vencedora a
segunda proposta, os náufragos iniciaram os preparativos de ordem material para
a viagem, bem como estabeleceram uma série de regras que visavam garantir a
sobrevivência e a disciplina na nova empreitada, estabelecendo a divisão das
provisões, a distribuição das rações, a obediência às ordens superiores e a
proibição de mal-entendidos ou brigas a bordo; impondo-se as respectivas penas
aos infratores, normalmente ligadas ao abandono dos mesmos à sua sorte ao longo
da costa pela qual se desenvolveria o périplo.
A escuna construída
pelos náufragos, a Speedwell, zarpou
em outubro de 1741, enfrentando uma série de dificuldades durante o percurso,
ligadas aos obstáculos em ultrapassar o Estreito de Magalhães, às avarias
provocadas pelas constantes tempestades, ao pouco espaço para a quantidade de
homens, à insalubridade e à promiscuidade na embarcação, além da falta de
motivação e à crônica carência de alimentos, pois as rações logo terminariam e
a dieta passou a compor-se do que estivesse disponível, como focas, cães,
ratos, couro seco ou carne estragada. Este quadro caótico levou a um grande
número de mortos entre os náufragos, cujos corpos eram abandonados ao longo do
caminho.
Foi nesta calamitosa e
exasperadora contingência que ocorreu à chegada dos náufragos do Wager
à costa do Rio Grande do Sul, na recém-fundada povoação que, em 1737, dera início à
ocupação lusitana no território sul-rio-grandense. Nesta época, a população do
recente povoado vivia com grandes dificuldades, mormente voltadas às
intempéries climáticas e aos graves problemas de abastecimento; a falta de
rações, soldos e uniformes, bem como os maus tratos sofridos pelos militares
completava o quadro de insatisfação, levando à deflagração da Revolta dos
Dragões um movimento de cunho social ocorrido nos primórdios da colonização
lusa no Rio Grande e que chegou a ameaçar a já instável legitimação da posse
daquelas terras, tendo em vista os
constantes litígios luso-hispânicos. No entanto, o comportamento até
certo ponto ordeiro e a manutenção dos militares na execução de suas obrigações
fizeram com que, num primeiro momento, os náufragos não chegassem a perceber o
contexto de revolta que dominava a situação no Rio Grande. A chegada dos
náufragos na povoação lusa se daria em janeiro de 1742 (no mesmo mês em que
espocara a revolta), após conseguirem vencer os naturais obstáculos que
representavam a passagem pela barra do Rio Grande. Recebidos por “um sargento
do exército e um soldado”, os náufragos descrevem a hospitalidade recebida de
parte dos portugueses, afirmando que “o comandante, os oficiais e o povo do
lugar receberam-nos de uma maneira muito carinhosa e afável”, enviando “aos
homens a bordo quatro quartos de carne e dois sacos de pão de farinha”, provisões
formidáveis, ainda mais para uma comunidade que sofria com a constante falta de
mantimentos. Revelando o caráter litigioso na disputa do território, o
administrador da povoação buscou esclarecer o real objetivo dos navegadores,
bem como questionou sobre o modo como eles ali haviam chegado e a respeito do
conhecimento dos mesmos acerca da costa meridional da América do Sul.
O bom tratamento
recebido no primeiro contanto com os lusos foi amplamente abordado no diário de
viagem, destacando que o “Governador” oferecera “tudo de que o país dispunha
para aliviar os nossos males”, sendo os doentes enviados para o hospital e
arranjada guarida para os náufragos e tomados cuidados para que os “tripulantes
não sentissem falta de nada”, além de terem sido informados a respeito de parte
da frota original que se encontrava no Rio de Janeiro. O alívio era a
característica essencial do relato de Bulkeley e Cummins naquele primeiro
momento de permanência no Rio Grande, que surgira como verdadeiro “paraíso”,
diante da situação de agruras até então vivenciada. Neste sentido, afirmaram a
respeito de sua chegada ao Rio Grande: “faz agora cerca de nove meses que
naufragamos no Wager, tempo esse,
durante o qual não acreditamos que mortal algum tenha sofrido as misérias e
dificuldades que encontramos”; no entanto “o dia de hoje pode, com justiça, ser
chamado o Dia da nossa Salvação, e
sua lembrança deve ser guardada com a máxima gratidão”.
Encerrada a revolta e
após alguns desacertos e discussões sobre a forma pela qual se procederia o
pagamento do deslocamento dos britânicos em direção ao Rio de Janeiro, os
náufragos conseguiram finalmente atingir seu objetivo, saindo do Rio Grande a
31 de março de 1742. Depois da chegada ao Rio de Janeiro, eles conseguiram
embarcar para Lisboa, via Salvador, tendo ainda enfrentado dificuldades de
relacionamento com autoridades locais, e, da capital lusitana, partiram para a
Inglaterra.
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