Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

terça-feira, 22 de outubro de 2019

RETRATOS DO COTIDIANO


Fotografia do centro da cidade do Rio Grande por volta de 1890. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense. 


         A imprensa ajuda a contar à história que não aparecem na documentação oficial, especialmente nas lacunas do cotidiano, das sociabilidades e urbanidade. A nota informativa descrevendo um local ou a necessidade de obras; ou então a matéria irônica, que através da irreverência evidencia sem citar nomes a corrupção, os desmandos, a falta de ética, a falta de higiene, iluminação, educação etc. Os jornais eram muitas vezes utilizados como veículo para levantar estas questões em aspectos que faziam parte direta do cotidiano da população numa cidade portuária como Rio Grande. Daí serem fontes preciosas para o entendimento de uma sociedade afastada no tempo. O jornal A Imprensa no distante ano de 1855, realizou um pouco deste exercício de denunciar através da ironia ou recorrendo a afirmar aquilo que era preciso ter mais que os anos passavam e as administrações não conseguiam realizar.
Um exemplo é o de um articulista anônimo que cria um personagem que num navio fictício chega a Rio Grande adentrando a Barra se chocando 17 vezes nos baixios e ancorando no Porto Velho carregado de objetos em seu interior. Aquilo que o navio traz eram as reivindicações não realizadas como a deficiência na iluminação pública, um novo cais, calçamento da rua da Boa Vista (Riachuelo), obras na praça municipal (atual Xavier Ferreira), gás de qualidade etc: “Assim que a galera deu fundo, o capitão fez a sua competente entrada na Alfândega, onde foi recebido com especial agrado por todos os empregados e deu ao manifesto os seguintes gêneros: -A Câmara Municipal 75 lampiões para o complemento da iluminação da cidade; -A Associação Comercial 12.000 toneladas de carvão de pedra para concluir a escavação do ancoradouro em todo o litoral; -Aos proprietários da rua da Boa Vista 20.000 quintais de pedras, para o calçamento da mesma; -Aos fiscais da cidade 4 caixões com 400.000 bolas de estricnina para matar a cachorrada que vagueia pelas ruas e mesmo a de lenço no pescoço; -Ao arrematante da estacada da praça municipal 500 linhotes de tramanduba  para o começo da obra; -Ao arrematante da iluminação 10 pipas de gás de primeira qualidade para substituir o gás que não o é; -Ao comandante da guarnição 50 praças para o destacamento da fronteira e de um quartel-mestre para renderem a Guarda Nacional; -Ao empresário da companhia dramática 1 caixote com o seguinte repertório de dramas e comédias: O Teatro Ratoeira ou o Velhado do Dono, Os Faniquitos de uma Atriz ou Recordação da Ilha das Cobras...” (08/06/1855). 
         Obras no Teatro Sete de Setembro valorizaram a saída pela atual Praça Júlio de Castilhos a qual era chamada de Praça de S. Pedro e era utilizada para venda de produtos por quitandeiros (chegou a ser chamada de praça das Carretas) e despejo de dejetos: “A obra do Teatro. O Teatro vai sofrer alteração que, dando maiores dimensões e comodidades à caixa, serve ao mesmo tempo para aformosear a praça de S. Pedro. Vimos o elegante e singelo desenho dessa obra oferecido pelo hábil artista o sr. Lopes de Barros, e a nosso ver, uma vez levada a efeito ficará o edifício do teatro com melhores fundos do que de frente (...) Oxalá para o completo aformoseamento da praça de S. Pedro, aos srs fiscais se lembrarem de que não é ela lugar próprio para o despejo de imundícies, nem para paragem de ambulantes quitandas de nauseabundo peixe-frito” (25/05/1855).
Jogatina e cooptação de menores por ratoneiros: “Consta que em uma das tabernas da praça S. Pedro ou suas imediações, costumam reunir-se, mormente de noite, alguns jovens de bens verdes anos, aí atraídos por ratoneiros que infelizmente abundam na sociedade, com o dúplice fim de industriá-los no jogo, e nas devassas torpezas que germinam na mente de tais indivíduos. Compete a polícia examinar o grau de veracidade desta notícia e de suas pesquisas resultará pelo menos afugentar os vadios, e evitar a muitas famílias pobres, mas honestas, o desgosto de verem seus filhos prostituídos e quiçá encerrados nos muros de uma prisão”. (16/06/1855)
Baile à fantasia que muitas vezes acabava em excessos por parte de alguns participantes afugentando as famílias. “Teatro Sete de Setembro. Nos dias 23 e 24 do corrente mês, vésperas do dia de São João, terão lugar os bailes masqués com grande orquestra, não faltando os timbales, humbalo, pratos e guizos. Em frente ao portão do teatro grandes fogueiras aquecerão aos amáveis máscaras”. (18/06/1855).
Crise na pecuária e em toda economia provincial era fortemente sentida em 1855 reduzindo as atividades no porto: “Era o gado vacum a matéria-prima de que sortiam os diversos ramos, que constituíram sempre o grosso trato comercial na nossa província, e do qual resultava a boa receita, com que ela contribuía para o Estado. Consumidos em larga escala esses gados, não havendo já como dantes, a concorrência deles, somos como que unicamente fornecidos pelo Estado Oriental, circunstância esta que de per si, seria bastante para elevar os preços a uma sensível altura, mas ainda aí não está tudo. A longitude, em que eles nos fica, as dificuldades e riscos das conduções e a concorrência das charqueadas, daquele estado, contribuem hoje poderosamente para a escassez que se sente, para o preço despropositado porque vem a ficar os gados nas nossas charqueadas, e finalmente para o consumo do pouco que nos resta” (25/05/1855).
Ironia e irreverência evidenciam que os malandros e desonestos já estavam bem radicados no tempo dos nossos bisavós ou tataravós:
Mixórdia (Cantiga dos Gaiatos da Ilha dos Paios)
O taverneiro que vende,
Por café, milho torrado,
Enganando assim o povo
Sem medo de ser multado
Sova nele!

O ourives que de liga
Na prata põe a metade
E diz ao pobre freguês
Ser de boa qualidade
Sova nele!

O açougueiro que usa
Da balança aladroada;
Vendendo carne mui magra
E essa mesmo cansada
Sova nele!

O mentiroso alfaiate,
Que ao freguês traz enganado,
Dizendo estar pronto o fato,
Não estando ainda cortado,
Sova nele!

O armador que arruma igrejas,
E também fúnebres caixões,
Vendendo por ouro-fino,
Falsificando galões,
Sova nele!

O festeiro que recebe
Do povo maquia grossa,
Pra fazer festa pomposa,
E faz festinha da roça,
Sova nele!

A mulher dona de casa
Que o dia passa a janela
Sem se lembrar da costura
E menos do arranjo dela,
Sova nela!

O jornal fanfarrão,
Que quer o povo entreter,
Com mau tipo e maus artigos,
Que a custo se podem ler,
Sova nele!

Os vendelhões em geral,
Toda mestrança de ofício;
Toda a casta de vivente
Que de velhaco da indício,
Sova neles!
Sova neles! (08/06/1855) 

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