Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

terça-feira, 22 de outubro de 2019

JOHN LUCCOCK EM RIO GRANDE

Comércio de carne seca (charque) na Vila do Rio Grande em 1824. Aquarela de Jean Debret. 


            A estadia do comerciante inglês John Luccock em Rio Grande, no ano de 1809, foi registrada em seu livro Notas sobre o Rio de Janeiro e partes Meridionais do Brasil. Estas notas de viagem constituem um documento que permite visitar cenários da então Vila do Rio Grande de São Pedro há duzentos anos.

A olhar de um viajante estrangeiro
A Alfândega chama a atenção de Luccock que a define como digna de lástima. “É uma construção de cantaria, com paredes de cerca de dez pés de alto, coberto de um telhado muito íngreme que lhe dá o aspecto de uma velha cocheira inglesa”. A precariedade do estabelecimento alfandegário era ainda maior no trapiche público, o único lugar em que todas as mercadorias deveriam ser desembarcadas e que não possuía infra-estrutura para tal função. A cadeia, situava-se a pequena distância da Alfândega consistindo num “calabouço miserável que apenas recebe luz através de um gradeado aberto na frontaria” e que também deixa os prisioneiros a vista numa exibição gratuita de desgraça. Se os prédios públicos apresentavam péssimas condições de ocupação, as residências não fugiam a essa situação. A casa do Governador, situada na rua principal, “tem um andar só, como a maioria dos seus vizinhos, mas distingue-se quase que de todas as outras habitações do lugar, pelo fato de dispor de uma escadaria de uns poucos degraus, e por suas janelas munidas de vidraças”. Já o vigário morava numa casa de dois pisos onde “as paredes são caiadas, as janelas muito parecidas com  as  dos  nossos  depósitos  de feno”.
Os crimes eram comuns devido a facilidade de fuga, pois  a região era vasta e aberta enquanto a população era pequena. “O assassinato é comum e, é fácil a um assassino transpor a fronteira; ali permanece ele, até que seus amigos tenham conseguido arranjar as coisas”, posteriormente, retorna confiante “sendo que a recepção que a sociedade lhe faz não demonstra lembrança alguma de que suas mãos se tenham manchado no sangue”. As vítimas de ferimentos a faca ou bala, não poderia esperar um bom atendimento, pois o único médico da cidade, um alemão, utilizava instrumentos cirúrgicos sem condições de uso, como uma serra enferrujada para amputar um membro: “bem grandes devem ser os padecimentos dos doentes destas paragens”.
O papel militar do Rio Grande, definido em seus primórdios, ainda era um fator fundamental na primeira década do século XIX, “na realidade a cidade é uma guarnição, sendo o Governador seu comandante em chefe”.
A vinda de Luccock está ligada há expansão do comércio e as possibilidades de enriquecimento, dedicando o comerciante inglês, vários parágrafos a esse tema: “Por essa época, o comércio do Rio Grande estava passando por grandes alterações, de cuja natureza e extensão os habitantes não se mostravam a par”. As importações, baseadas em produtos portugueses como lãs, “começavam a ser desbancados pelos produtos ingleses, que se forneciam a preço mais barato e eram melhor adaptados ao crescente gosto pela exibição”. O aumento da população, decorrente do progresso no comércio concorreu para aumentar o consumo e o custo dos mantimentos. “A procura de couros e de sebo encontrava oferta principalmente aqui e em Buenos Aires, e a admissão da navegação britânica no último destes lugares produzira efeitos imediatos e notáveis nestes artigos”. Na avaliação do autor, “o comércio interior, de além das fronteiras, o mais lucrativo de que São Pedro gozava, achava-se em progresso”. As exportações recolhidas dessa região baseava-se no couro, sebo, trigo, cebola, queijo e charque, artigos que eram remetidos ao Rio de Janeiro e Bahia.
Poucos ingleses moravam no Rio Grande e somente uma casa comercial britânica foi citada por Luccock. Esses ingleses “procuravam e encontravam seu máximo prazer na companhia mútua deles próprios”.  Na falta de restaurantes e cafés, e onde os bilhares eram locais de “freqüência bastante mesclada onde freqüentemente se verificavam cenas de bulhentas disputas”, o autor participou da fundação de um clube inglês para passar o tempo, pois o ritmo do capitalismo deixava longos períodos para o exercício da sociabilidade.
A falta de conforto das residências, chamou a atenção do comerciante o qual ressaltou que a vida doméstica “é pouco alegrada aqui, por tudo aquilo que nós outros temos por acrescentar ao conforto dos aposentos”. Ao descrever a casa que alugara, registrou que era igual a maior parte das residências do local, constando de um pavimento térreo, com uma sala que dava para a rua e que era iluminada por apenas uma janela sem vidros e venezianas permitindo que quem passasse em frente tivesse uma visão do interior. Considerando o valor do aluguel elevado, ele complementa a descrição dizendo que por detrás desta sala ficava uma alcova de dormir e uma cozinha de chão num puxado. “Por esse solar, pagava eu um aluguel de doze patacas, ou seja, cerca de vinte xelins por mês”.
           O mobiliário resumia-se ao mínimo de elementos constituintes, havendo na sala, segundo sua descrição, umas poucas cadeiras de assentos e espaldares de couro estufado e uma excelente mesa de madeira escura, repousando sobre quatro pernas recurvadas.  A casa alugada “não dispunha do pequeno espelho vulgar que, na maioria das casas, enfeita uma das paredes do cômodo, nem tão pouco do oratório flanqueado de dois castiçais, que em geral se coloca junto à outra”. O mobiliário da alcova, continha “uma cama, por vezes ricamente entalhada, com estrado de ripado em vez de serapilheira”; o colchão é um saco de algodão grosso recheado de lã e os lençóis são de algodão, “esplendidamente alvejado e lindamente enfeitados”. Com o propósito de defesa contra os insetos, “acendem-se fogueiras de lenha à noite na cozinha e queimam-se ervas odoríferas nas alcovas”. Os homens, no dia-a-dia, usavam camisas de algodão com bordados abertos e rendados ao peito e a gola atada com uma fita preta. “Seus casacos parecem-se com os nossos sobretudos e usam-nos, às vezes, enfeitados com alamares e borlas” e também vestem coletes de chita, “geralmente em padrões vistosos, e as calças de algodão branco”.
Nas viagens pelo interior, usavam grandes chapéus desabados “feitos de palha trançada ou de folha de coqueiro, e de um poncho de lã ou de algodão”. Esse poncho quando feito de algodão era enfeitado com franjas de cores variegadas sendo manufatura sul-americana. “As classes obreiras comuns, tais como marinheiros, barqueiros, peões, campônios e pequenos sitiantes, usam jalecos de lã, com moedas de dois reais feito botões”. As mulheres aparecem em público de mantilha, “peça quadrada de seda orlada com largas rendas, que se ata à cabeça e cai pelas costas e ombros”. Usam meias e sapatos de cores vistosas, “o penteado é à moda portuguesa, enfeitado com flores e, por vezes, à noite com vagalumes”. As mulheres de condição social modesta usam um casacão chamado de capote, feito de casimira e adornos de pelúcia, enquanto as escravas usam apenas da baeta “peça de roupa quadrada, por vezes enfeitada de franjas; atam os cabelos com um pedaço de fita vermelha ou um lenço de Bandana, andando invariavelmente descalças”. Luccock encontrou no Rio Grande uma proporção de moças e meninas bonitas superior ao do Continente, constatando que “nenhuma delas viaja muito para fora, embora vivam menos presas que na capital e suas vizinhanças, e sejam consideradas um pouco mais como amigas e companheiras e mais livremente admitidas na sociedade”.
Conforme Luccock, a proximidade do oceano, garante a Rio Grande uma preeminência permanente pois é “aqui que todos os navios tem que entregar seus papéis, sendo que a maior parte deles raramente segue adiante. É aqui também que os principais negociantes residem ou tem seus agentes estabelecidos; de tal maneira que ela pode ser considerada como o maior mercado do Brasil Meridional”. Duzentos anos depois, prédios e ruas tiveram radicais alterações. O único prédio que ainda existe e que foi visitado por Luccock é a catedral de São Pedro. 

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