Comércio de carne seca (charque) na Vila do Rio Grande em 1824. Aquarela de Jean Debret. |
A estadia do comerciante inglês John
Luccock em Rio Grande ,
no ano de 1809, foi registrada em seu livro Notas
sobre o Rio de Janeiro e partes Meridionais do Brasil. Estas notas de
viagem constituem um documento que permite visitar cenários da então Vila do
Rio Grande de São Pedro há duzentos anos.
A olhar de um viajante estrangeiro
A Alfândega chama a
atenção de Luccock que a define como digna de lástima. “É uma construção de
cantaria, com paredes de cerca de dez pés de alto, coberto de um telhado muito
íngreme que lhe dá o aspecto de uma velha cocheira inglesa”. A precariedade do
estabelecimento alfandegário era ainda maior no trapiche público, o
único lugar em que todas as mercadorias deveriam ser desembarcadas e que não possuía
infra-estrutura para tal função. A cadeia, situava-se a pequena distância da
Alfândega consistindo num “calabouço miserável que apenas recebe luz através de
um gradeado aberto na frontaria” e que também deixa os prisioneiros a vista
numa exibição gratuita de desgraça. Se os prédios públicos apresentavam
péssimas condições de ocupação, as residências não fugiam a essa situação. A
casa do Governador, situada na rua principal, “tem um andar só, como a maioria
dos seus vizinhos, mas distingue-se quase que de todas as outras habitações do
lugar, pelo fato de dispor de uma escadaria de uns poucos degraus, e por suas
janelas munidas de vidraças”. Já o vigário morava numa casa de dois pisos onde
“as paredes são caiadas, as janelas muito parecidas com as dos nossos
depósitos de feno”.
Os crimes eram comuns
devido a facilidade de fuga, pois a
região era vasta e aberta enquanto a população era pequena. “O assassinato é
comum e, é fácil a um assassino transpor a fronteira; ali permanece ele, até
que seus amigos tenham conseguido arranjar as coisas”, posteriormente, retorna
confiante “sendo que a recepção que a sociedade lhe faz não demonstra lembrança
alguma de que suas mãos se tenham manchado no sangue”. As vítimas de ferimentos
a faca ou bala, não poderia esperar um bom atendimento, pois o único médico da
cidade, um alemão, utilizava instrumentos cirúrgicos sem condições de uso, como
uma serra enferrujada para amputar um membro: “bem grandes devem ser os
padecimentos dos doentes destas paragens”.
O papel militar do
Rio Grande, definido em seus primórdios, ainda era um fator fundamental na
primeira década do século XIX, “na realidade a cidade é uma guarnição, sendo o
Governador seu comandante em chefe”.
A vinda de Luccock
está ligada há expansão do comércio e as possibilidades de enriquecimento,
dedicando o comerciante inglês, vários parágrafos a esse tema: “Por essa época,
o comércio do Rio Grande estava passando por grandes alterações, de cuja
natureza e extensão os habitantes não se mostravam a par”. As importações,
baseadas em produtos portugueses como lãs, “começavam a ser desbancados pelos
produtos ingleses, que se forneciam a preço mais barato e eram melhor adaptados
ao crescente gosto pela exibição”. O aumento da população, decorrente do
progresso no comércio concorreu para aumentar o consumo e o custo dos
mantimentos. “A procura de couros e de sebo encontrava oferta principalmente
aqui e em Buenos Aires ,
e a admissão da navegação britânica no último destes lugares produzira efeitos
imediatos e notáveis nestes artigos”. Na avaliação do autor, “o comércio
interior, de além das fronteiras, o mais lucrativo de que São Pedro gozava,
achava-se em progresso”. As exportações recolhidas dessa região baseava-se no
couro, sebo, trigo, cebola, queijo e charque, artigos que eram remetidos ao Rio
de Janeiro e Bahia.
Poucos ingleses
moravam no Rio Grande e somente uma casa comercial britânica foi citada por
Luccock. Esses ingleses “procuravam e encontravam seu máximo prazer na
companhia mútua deles próprios”. Na
falta de restaurantes e cafés, e onde os bilhares eram locais de “freqüência
bastante mesclada onde freqüentemente se verificavam cenas de bulhentas
disputas”, o autor participou da fundação de um clube inglês para passar o
tempo, pois o ritmo do capitalismo deixava longos períodos para o exercício da
sociabilidade.
A falta de conforto
das residências, chamou a atenção do comerciante o qual ressaltou que a vida
doméstica “é pouco alegrada aqui, por tudo aquilo que nós outros temos por
acrescentar ao conforto dos aposentos”. Ao descrever a casa que alugara,
registrou que era igual a maior parte das residências do local, constando de um
pavimento térreo, com uma sala que dava para a rua e que era iluminada por
apenas uma janela sem vidros e venezianas permitindo que quem passasse em
frente tivesse uma visão do interior. Considerando o valor do aluguel elevado,
ele complementa a descrição dizendo que por detrás desta sala ficava uma alcova
de dormir e uma cozinha de chão num puxado. “Por esse solar, pagava eu um aluguel
de doze patacas, ou seja, cerca de vinte xelins por mês”.
O mobiliário resumia-se ao mínimo de
elementos constituintes, havendo na sala, segundo sua descrição, umas poucas
cadeiras de assentos e espaldares de couro estufado e uma excelente mesa de madeira
escura, repousando sobre quatro pernas recurvadas. A casa alugada “não dispunha do pequeno
espelho vulgar que, na maioria das casas, enfeita uma das paredes do cômodo,
nem tão pouco do oratório flanqueado de dois castiçais, que em geral se coloca
junto à outra”. O mobiliário da alcova, continha “uma cama, por vezes
ricamente entalhada, com estrado de ripado em vez de serapilheira”; o colchão é
um saco de algodão grosso recheado de lã e os lençóis são de algodão,
“esplendidamente alvejado e lindamente enfeitados”. Com o propósito de defesa
contra os insetos, “acendem-se fogueiras de lenha à noite na cozinha e
queimam-se ervas odoríferas nas alcovas”. Os homens, no dia-a-dia, usavam
camisas de algodão com bordados abertos e rendados ao peito e a gola atada com
uma fita preta. “Seus casacos parecem-se com os nossos sobretudos e usam-nos,
às vezes, enfeitados com alamares e borlas” e também vestem coletes de chita,
“geralmente em padrões vistosos, e as calças de algodão branco”.
Nas viagens pelo
interior, usavam grandes chapéus desabados “feitos de palha trançada ou de
folha de coqueiro, e de um poncho de lã ou de algodão”. Esse poncho quando
feito de algodão era enfeitado com franjas de cores variegadas sendo
manufatura sul-americana. “As classes obreiras comuns, tais como marinheiros,
barqueiros, peões, campônios e pequenos sitiantes, usam jalecos de lã, com
moedas de dois reais feito botões”. As mulheres aparecem em público de
mantilha, “peça quadrada de seda orlada com largas rendas, que se ata à cabeça
e cai pelas costas e ombros”. Usam meias e sapatos de cores vistosas, “o
penteado é à moda portuguesa, enfeitado com flores e, por vezes, à noite com
vagalumes”. As mulheres de condição social modesta usam um casacão chamado de
capote, feito de casimira e adornos de pelúcia, enquanto as escravas usam
apenas da baeta “peça de roupa quadrada, por vezes enfeitada de franjas; atam
os cabelos com um pedaço de fita vermelha ou um lenço de Bandana, andando
invariavelmente descalças”. Luccock encontrou no Rio Grande uma proporção de moças
e meninas bonitas superior ao do Continente, constatando que “nenhuma delas
viaja muito para fora, embora vivam menos presas que na capital e suas
vizinhanças, e sejam consideradas um pouco mais como amigas e companheiras e
mais livremente admitidas na sociedade”.
Conforme Luccock, a
proximidade do oceano, garante a Rio Grande uma preeminência permanente pois é
“aqui que todos os navios tem que entregar seus papéis, sendo que a maior
parte deles raramente segue adiante. É aqui também que os principais
negociantes residem ou tem seus agentes estabelecidos; de tal maneira que ela
pode ser considerada como o maior mercado do Brasil Meridional”. Duzentos anos
depois, prédios e ruas tiveram radicais alterações. O único prédio que ainda existe
e que foi visitado por Luccock é a catedral de São Pedro.
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