Porto do Rio Grande em 1908

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sábado, 19 de outubro de 2019

O INCÊNDIO DO LAZARETO DE SÃO JOSÉ DO NORTE


Centro de São José do Norte em 1920. 


         No dia 26 de março de 2010 foi ar o episódio O Abrigo das Almas Perdidas da série Histórias Extraordinárias da RBSTV. O tema foi uma possível epidemia de peste bubônica na cidade de São José do Norte no ano de 1900 e a reação popular que levou ao incêndio do Lazareto do Cocuruto. Como participei do episódio, várias pessoas fizeram questionamentos evidenciando a existência de dúvidas sobre a realidade dos fatos. A seguir será feito um relato breve daqueles acontecimentos.
        O Lazareto ficava situado na margem norte da barra do Rio Grande, distante três quilômetros da Vila de São José do Norte e tinha de extensão 833 metros ao longo do litoral e 300 metros de fundo. O terreno que constituía o lazareto do Cocuruto foi adquirido por compra pelo Governo Federal em 14 de dezembro de 1893. Lazareto era um estabelecimento de controle sanitário onde pessoas doentes eram colocadas de quarentena ou aquelas que eram suspeitas de estar com alguma doença infectocontagiosa, sua origem está ligada a São Lazaro que ajudava os leprosos na Idade Média. No relatório do intendente de São José do Norte de 1896, o assunto já mobiliza a atenção, pois a perspectiva do governo federal era ampliar a utilização do lazareto enquanto a população reclama de sua excessiva proximidade do centro urbano. Portanto o assunto não era novo, quando o lazareto do Cocuruto em São José do Norte foi incendiado por populares em 11 de junho de 1900. Centenas de pessoas aglomeraram-se em frente à Intendência Municipal na tarde deste dia e partiram para o Lazareto promovendo o seu incêndio. Os três quilômetros de distância entre a vila e o lazareto foi transposta por mais de trezentas pessoas que assistiram ao incêndio.
Na época havia o medo de que a febre amarela chegasse a São José do Norte com o desembarque de passageiros e tripulantes que fossem levados a este hospital de isolamento, oriundos de Santos e do Rio de Janeiro. Relatório da Intendência Municipal de São José do Norte já destacavam a apreensão da população em 1895, com a presença do Lazareto do Cocuruto. Neste período era também muito temida a chegada da peste bubônica (peste negra) que se fazia presente na Índia dizimando populações inteiras e que ainda não tinha formas eficientes de tratamento. Casos de peste começavam a surgir no Rio de Janeiro e Santos, podendo ser trazida nos navios que aportavam na Barra do Rio Grande. Uma área de quarenta e isolamento poderia significar a rápida chegada de um mórbus epidêmico até o núcleo urbano em São José do Norte, sendo a peste bubônica o fator imediato para a reação da população. Em Rio Grande, no ano de 1902, os casos de peste bubônica começaram a proliferar. Após o incêndio o Lazareto foi transferido para a localidade da Barra (jornal O Rio-grandense 17/6/1900), mais distante do centro urbano nortense.
O jornal São José do Norte de 30 de maio de 1926, uma matéria escrita por Sérgio Júnior, traz a tona os acontecimentos do dia 11 de junho de 1900: “Bem antes da benemérita cruzada que levou a imortalidade Oswaldo Cruz, muitas e preciosas vidas foram ceifadas e incalculável prejuízo acarretou materialmente ao nosso país, surgindo de vez em vez, terrífica, apavorante, a febre amarela, de preferência em Santos e no Rio de Janeiro. Era comum darem fundo ao aportamento, navios com doentes, cujo mal insidioso, traiçoeiro, irrompera, de inóspito a bordo, sujeitos como indispensável medida de precaução, as exigências de quarentena. Desejando remediar de alguma forma, as delongas que eram, por efeito, compelidas, por períodos mais ou menos dilatados as embarcações suspeitas, sujeitas a demorada observação sanitária, o que tanto vem prejudicar o intercâmbio comercial, resolveu o governo fazer construir um lazareto e, com esse fim adquiriu no Cocuruto a precisa área do terreno, que foi logo levado a termo. Não recebeu bem a população desta vila este propósito do governo federal. Comentava-se então que nos altos poderes públicos, jamais se lembravam deste município (...). E o nosso povo sempre ordeiro naturalmente pacato e bom de índole, cedo se conformou com a sorte e ao que haviam deliberado em sua alta sabedoria os supremos dirigentes desse departamento que é saúde pública. Meia dúzia de anos adiante quando no país notificado foi os primeiros casos do mal indiano, a peste bubônica, emergiram medidas de prevenção e repressão foi dito com insistência impressionante, que o lazareto do Cocuruto seria também o ponto de internação dos pestosos. Foi um choque. Alarmou-se com razão o povo, galvanizado, depois de concorrido comício frente do paço municipal na tarde de 11 de junho de 1900, pelas duas da tarde, aproximadamente, ausente em luto doloroso, o governador da comuna, a velar a irmã a quem a morte tomara, resolveu-se a destruição do lazareto, que a todo mundo se afigurava já, semeador de desgraças. Então numa rapidez surpreendente, foram palmilhados os 3 quilômetros que medeia dos casarões que formavam a vila e quando ainda tínhamos em ontiva o vozerio da turba, já enormes, densas, alterosas, fumaradas, faziam certo que alastrava incêndio. E releva notar, que antes do fato consumado foi permitido ao encarregado deste próprio federal, de retirar e acautelar quanto lhe era de propriedade particular, garantindo destarte e a famílias em suas pessoas e bens, amparados, coadjudados, todos pelos que lá foram e que assim se mostravam animados de elevadas intenções. Compunha-se a massa popular de cerca de 300 pessoas, quase todas as camadas sociais, coeficiente assaz avultado em proporção ao número global da população da vila. Iniciou-se como de mister, o respectivo processo e como derivante de confortante e inquebrantável solidariedade, apenas 22 foram colhidos em suas malhas. Daí forçada viagem a capital, alguns dias de incomoda reclusão na penitenciária e aguardar o veredictum, e logo após a plena e merecida absolvição. Satisfeita interminis, a exigência da lei, algum tempo após vieram à reintegração de família e amigos, os nossos patrícios recebidos com ruidosas manifestações e grande regozijo de toda a gente. E sentam-se bem com a sua consciência e para esta tranqüilidade lhes sobejavam razões por isso que nobres foram os seus instintos. Do lazareto restam hoje apenas meia dúzia de eucaliptos testemunhas mudas do relato que fizemos, e uma ou outra cova, sepultura de alguns infelizes anônimos ali mesmo inumados longo dos seus, sem uma lágrima, sem os carinhos da família, que talvez lhe ignore o paradeiro”.

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