Tabacaria Lages na Praça Xavier Ferreira, por volta de 1905. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense. |
Inúmeros
destes personagens anônimos não deixaram registro, mas neste caso, a imprensa
fez a cobertura dos acontecimentos ocorridos há um século. Numa visão atual, esta
história constitui uma variação de “bullying”, onde a cena supostamente
“cômica” de morar num buraco, acaba numa situação trágica e com desfecho amargo
para mais de um dos envolvidos. Especialmente amargo, para o Homem do Buraco...
Eis a
matéria do jornal Echo do Sul do dia 20 de janeiro de 1912:
Quem não conhece o Homem do Buraco, tido como
inofensivo e que, de vez, em quando, saia da sua toca, no terreno baldio da
Macega, defronte do Plano Inclinado Rio-Grandense e nos aparecia a esmolar,
casacalmente vestido, com um balde no braço? É muito conhecida a história deste
infeliz, cujo verdadeiro nome é João Ventura dos Santos. Há anos apareceu pela
Macega, cavou no solo um buraco e ali meteu-se filosoficamente, o herói do silêncio
e do isolamento, contente da vida, dentro do seu palácio, sem que bastante o
inquietassem o ruído das obras da Barra, pois Ventura via que, mais dia menos
dia, a sua oca gemeria ao peso de algum grande armazém. Além dessa inquietação,
vive Ventura com a mania de que a área por ele conquistada é propriedade sua,
jurisprudência que ele baseia no espírito da lei de antiguidade de posse. Presa
dessa mania, João Ventura deliberou entrar em negociações com a Companhia
Francesa. Algumas pessoas entendiam divertir-se com o desgraçado, mais e mais
convenciam o homem de coisas deveras fantásticas, pedindo–lhe que lhes levasse
os papéis competentes a fim de efetuarem a compra. Santos costumava demorar-se
quando vinha a cidade no Chalet Lages, estabelecido a praça General Telles, na
esquadria dessa praça, formada pelas ruas Marechal Floriano e Andradas e de
propriedade do sr. Luciano Ramos Varella Lages. Alguns senhores,
freqüentadores, como Ventura, do Chalet gracejavam com o mentecapto,
convencendo-o de que o sr. Luciano Lages possuía os papéis legais do terreno de
propriedade do infeliz. Este passou a exigir do sr. Lages os papéis fantasiosos. O sr. Luciano, como é natural,
levava o fato a conta de brincadeira, sempre porém, alegando não ter os papéis.
O infeliz mentecapto, o infeliz e dócil homem, o infeliz homem do buraco, embora
irresponsabilizado pelas precárias condições mentais, enchia-se de um desejo
violento de se apossar dos papéis a força. Pouco depois do meio dia, ontem, Ventura
apareceu no Chalet Lages, cabeleira desgrenhada, em cujas melenas enterrava os
dedos, em movimentos nervosos, olhar duro, penetrante, inquieto. E ali esteve o
inofensivo Ventura, até as 4 e meia horas da tarde, quanto talvez procurando um
pretexto, começou a proferir obscenidades, em algo a um filho do sr. Lages.
Este cidadão chamou a ordem varias vezes, ordenando que se retirasse, no que
não foi atendido. Pediu então o Homem do Buraco um copo d’água ao que o sr.
Lages responde não ter esse líquido em casa. Ventura disse então que o sr. Luciano lhe
desse água por bem ou por mal e investiu, inopinadamente, contra aquele
cidadão, que reagindo, botou-o aos empurrões fora do Chalet. Voltou então
Ventura de machadinha em punho contra a sua vítima em quem vibrou um golpe.
Felizmente, o instrumento pegou levemente o sr. Lages produzindo-lhe um pequeno
ferimento no nariz. Redobrando de fúria, o mentecapto investiu outra vez. Ao
defender-se, recuando, o sr. Luciano tropeçou numas mercadorias caindo atrás da
armação. A vítima fez o possível para livrar-se do novo golpe que lhe preparava
o feroz delinqüente, segurando-lhe fortemente no pulso, quando correu em seu
socorro o sr. Nicola Cecere, que se agarrou a Ventura, por trás, tolhendo lhe
os movimentos, no que foi ainda ajudado pelos srs. Francisco Arrieche, fiscal
dos bondes e Antonio Rocha, carneador empregado no Matadouro Municipal, que
trouxeram o agressor para a rua, depois de muitos esforços. Antonio Rocha
precisou fazer uso de uma faca, levando ao pescoço de Ventura, para obrigá-lo a
entregar a machadinha, sob pena de matá-lo. Só assim conseguiu que o Homem do
Buraco fizesse entrega da arma. Então era já numerosa a aglomeração de
populares. Houve os indefectíveis – lincha! lincha! Ao local compareceu o sr.
major João Theodosio Gonçalves, sub-intendente do 1° Distrito. O sr. Nicola Cecere,
no momento em que defendia o sr. Lager recebeu um largo ferimento na mão
direita. Ambos os feridos foram receber curativos na Assistência Pública. A
noite foi Ventura transportado para o 2° posto. Ao Chalet Lages acorreu muita
gente a indagar do sucedido, isto até as 9 horas da noite. Pode-se dizer,
aproveitando a gíria popular, que o sr. Luciano Lages nasceu ontem! Como se vê,
o autor do delito é um irresponsável, cumprindo as autoridades encaminhá-lo
para o hospício de alienados”.
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