Porto do Rio Grande em 1908

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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

O HOMEM DO BURACO

 
Tabacaria Lages na Praça Xavier Ferreira, por volta de 1905. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense.  


          Personagens que compõem as lendas urbanas da cidade podem ser imateriais ou materiais. A imaterialidade do fantasma da Moron que alimentou o imaginário urbano é um aspecto destas temáticas. Outro é a materialidade através de um personagem que realmente existiu e que virou manchete de jornal. É o caso do Homem do Buraco, como é chamado um morador da região da Macega antes daquela área ser integrada ao complexo portuário da cidade com as obras da Companhia Francesa.
Inúmeros destes personagens anônimos não deixaram registro, mas neste caso, a imprensa fez a cobertura dos acontecimentos ocorridos há um século. Numa visão atual, esta história constitui uma variação de “bullying”, onde a cena supostamente “cômica” de morar num buraco, acaba numa situação trágica e com desfecho amargo para mais de um dos envolvidos. Especialmente amargo, para o Homem do Buraco...
Eis a matéria do jornal Echo do Sul do dia 20 de janeiro de 1912:
 “De mentecapto a delinqüente. Tentativa de morte. O homem do buraco. Revelação sanguinária.
          Quem não conhece o Homem do Buraco, tido como inofensivo e que, de vez, em quando, saia da sua toca, no terreno baldio da Macega, defronte do Plano Inclinado Rio-Grandense e nos aparecia a esmolar, casacalmente vestido, com um balde no braço? É muito conhecida a história deste infeliz, cujo verdadeiro nome é João Ventura dos Santos. Há anos apareceu pela Macega, cavou no solo um buraco e ali meteu-se filosoficamente, o herói do silêncio e do isolamento, contente da vida, dentro do seu palácio, sem que bastante o inquietassem o ruído das obras da Barra, pois Ventura via que, mais dia menos dia, a sua oca gemeria ao peso de algum grande armazém. Além dessa inquietação, vive Ventura com a mania de que a área por ele conquistada é propriedade sua, jurisprudência que ele baseia no espírito da lei de antiguidade de posse. Presa dessa mania, João Ventura deliberou entrar em negociações com a Companhia Francesa. Algumas pessoas entendiam divertir-se com o desgraçado, mais e mais convenciam o homem de coisas deveras fantásticas, pedindo–lhe que lhes levasse os papéis competentes a fim de efetuarem a compra. Santos costumava demorar-se quando vinha a cidade no Chalet Lages, estabelecido a praça General Telles, na esquadria dessa praça, formada pelas ruas Marechal Floriano e Andradas e de propriedade do sr. Luciano Ramos Varella Lages. Alguns senhores, freqüentadores, como Ventura, do Chalet gracejavam com o mentecapto, convencendo-o de que o sr. Luciano Lages possuía os papéis legais do terreno de propriedade do infeliz. Este passou a exigir do sr. Lages os papéis  fantasiosos. O sr. Luciano, como é natural, levava o fato a conta de brincadeira, sempre porém, alegando não ter os papéis. O infeliz mentecapto, o infeliz e dócil homem, o infeliz homem do buraco, embora irresponsabilizado pelas precárias condições mentais, enchia-se de um desejo violento de se apossar dos papéis a força. Pouco depois do meio dia, ontem, Ventura apareceu no Chalet Lages, cabeleira desgrenhada, em cujas melenas enterrava os dedos, em movimentos nervosos, olhar duro, penetrante, inquieto. E ali esteve o inofensivo Ventura, até as 4 e meia horas da tarde, quanto talvez procurando um pretexto, começou a proferir obscenidades, em algo a um filho do sr. Lages. Este cidadão chamou a ordem varias vezes, ordenando que se retirasse, no que não foi atendido. Pediu então o Homem do Buraco um copo d’água ao que o sr. Lages responde não ter esse líquido em casa. Ventura disse então que o sr. Luciano lhe desse água por bem ou por mal e investiu, inopinadamente, contra aquele cidadão, que reagindo, botou-o aos empurrões fora do Chalet. Voltou então Ventura de machadinha em punho contra a sua vítima em quem vibrou um golpe. Felizmente, o instrumento pegou levemente o sr. Lages produzindo-lhe um pequeno ferimento no nariz. Redobrando de fúria, o mentecapto investiu outra vez. Ao defender-se, recuando, o sr. Luciano tropeçou numas mercadorias caindo atrás da armação. A vítima fez o possível para livrar-se do novo golpe que lhe preparava o feroz delinqüente, segurando-lhe fortemente no pulso, quando correu em seu socorro o sr. Nicola Cecere, que se agarrou a Ventura, por trás, tolhendo lhe os movimentos, no que foi ainda ajudado pelos srs. Francisco Arrieche, fiscal dos bondes e Antonio Rocha, carneador empregado no Matadouro Municipal, que trouxeram o agressor para a rua, depois de muitos esforços. Antonio Rocha precisou fazer uso de uma faca, levando ao pescoço de Ventura, para obrigá-lo a entregar a machadinha, sob pena de matá-lo. Só assim conseguiu que o Homem do Buraco fizesse entrega da arma. Então era já numerosa a aglomeração de populares. Houve os indefectíveis – lincha! lincha! Ao local compareceu o sr. major João Theodosio Gonçalves, sub-intendente do 1° Distrito. O sr. Nicola Cecere, no momento em que defendia o sr. Lager recebeu um largo ferimento na mão direita. Ambos os feridos foram receber curativos na Assistência Pública. A noite foi Ventura transportado para o 2° posto. Ao Chalet Lages acorreu muita gente a indagar do sucedido, isto até as 9 horas da noite. Pode-se dizer, aproveitando a gíria popular, que o sr. Luciano Lages nasceu ontem! Como se vê, o autor do delito é um irresponsável, cumprindo as autoridades encaminhá-lo para o hospício de alienados”.

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