Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

sábado, 19 de outubro de 2019

MEMÓRIAS DO MESTRE DE CAMPO

Militar luso-brasileiro atuante em Rio Grande no século XVIII. Autor: José Carlos Espíndola. 


          André Ribeiro Coutinho foi o segundo comandante militar do Rio Grande de São Pedro que tinha jurisdição sobre todo o Rio Grande do Sul português daquela época. O primeiro comandante militar e governador foi José da Silva Paes que desembarcou em Rio Grande em 19 de fevereiro de 1737. Ainda no ano de 1737, por indicação do governador do Rio de Janeiro Gomes Freire de Andrade, assume André Ribeiro Coutinho perdurando no cargo até 1740. Em Portugal no ano de 1751, Coutinho publicou os dois volumes do livro O Capitão de Infantaria Portuguesa, demonstrando a sua capacidade intelectual e o estilo barroco na narrativa. Um de seus escritos referente a sua administração em Rio Grande é a Memória dos serviços prestados pelo Mestre-de-campo André Ribeiro Coutinho, no Governo do Rio Grande de São Pedro, dirigida a Gomes Freire de Andrade (1740). Este escrito traz informações sobre os primeiros e difíceis anos da ocupação luso-brasileira na Barra do Rio Grande. Faz referência à chegada de famílias para o povoamento civil e também a criação dos Dragões do Rio Grande. A preocupação da defesa era fundamental sendo relatada a fortificação do Estreito (atual proximidade da Hidráulica) e a fortificação do Porto (Forte Jesus-Maria-José). O comandante também faz uma defesa ética de seu governo (probidade administrativa) afirmando que enfrentou as noites tempestuosas e as horas incertas, esperando o dia nascer na muralha do forte.
 MEMÓRIA
“No ano de 1738, mandou Vossa Excelência para o Rio Grande muitos casais, que tinham evacuado a Praça da Colônia [do Sacramento]: alguns desta cidade e outros da Vila da Laguna; além de muita outra gente de ambos os sexos, para com todos se criar uma Povoação; para o qual fim levantei casas à maior parte dos Povoadores; dei aos lavradores terras, sementes e instrumentos de agriculturas. A alguns ajudei com gado proporcionado às suas famílias; a todos sustentei com mantimentos de farinha e carne e dei materiais para casas. Assisti com justiça natural a seus muitos litígios; ajustei muitas diferenças, para não chegarem a ser contenciosas: tratei os Povoadores com benevolência protegi os mais pobres e cuidei na conservação de todos; e para pôr na ordem e sossego das povoações antigas 2, que formei no porto e Estreito daquele Domínio, que em breve tempo se fizeram consideráveis; expedi muitas ordens e publiquei vários bandos, pela observância dos quais fui inflexível, o que pareceria duro só àqueles, que pela dissolução de seus costumes, não couberam nas diferentes terras, donde saíram.
Com as levas, que Vossa Excelência ao mesmo tempo mandou das Minas, Rio de Janeiro, S. Paulo e Santos com alguns presos da Bahia, e com um destacamento da Colônia e todos os que se achavam das Praças do Brasi1 naquele Domínio, formei o casco do Regimento de Dragões, a que a 5 de janeiro de 1739 vieram guarnecer os oficiais com o seu Coronel Diogo Osório Cardoso. Para a economia, disciplina e conservação deste corpo e para a pronta defesa de toda a surpresa na Fortificação do Estreito, fiz seus quartéis de 120 palmos cada um, em linha paralela ao parapeito e em frente das golas dos baluartes, meios baluartes e redutos, desde as águas do Rio Grande até as da Mangueira; 3 quartéis para os oficiais de Infantaria e 2 para os de Artilharia; uma pequena casa de pólvora e para cômodo da mais gente, arrecadação da Fazenda Real e expediente de tudo o que era preciso a um estabelecimento novo, fiz uma vedoria e Casa para o comissário de mostras, de 70 palmos; casa para o Governo; outra para o Coronel de dragões, outra para o Sargento-mor; fiz um corpo da guarda de 100 palmos, um armazém, um Hospital e uma casa para o Tesoureiro e oficiais de carpinteiros, cada um de 150 palmos. No Porto comecei uma Igreja, em que já se tinham celebrado os ofícios divinos, de 92 palmos de comprido, incluído Cruzeiro e Capela-mor e 40 de largo; um corpo de guarda de 34 palmos; 4 quartéis pequenos para os soldados; um armazém para a courama de 105 palmos; uma Ferraria, uma casa para o Armeiro e um armazém da parte do norte. No Forte de S. Miguel, em Taim, Albardão e Mangueira, quartéis para os oficiais e soldados de suas guarnições. Nas estâncias reais de Tororitama [Torotama] e Bogerú [Bojuru], casas para os Maiorais, peões e Domadores, que tratam das cavalhadas e vacaria; e todos os sobreditos quartéis, armazéns e mais obras de pau a pique e barro; e as dos oficiais assoalhadas e forradas.
Para os Fortes, Redutos, e Passos, passei ordens, segundo os novos casos, que com o curso do tempo sucedido; e para o de S. Miguel, além das ordens, que achei do Brigadeiro acrescentei as que pareceram precisas e fiz uma instrução para a forma da sua defesa e comunicação com o Governo, em caso de sítio e ataque. E porque previ, que da desordenada e bárbara extração da courama que naqueles campos se fazia, devia naturalmente resultar a total extinção do gado; e por conseqüência infalível sobrevinha a falta daquele mantimento, para manutenção do Povo, e gente militar, tirei informações das pessoas mais práticas naquela matéria; e sabendo que já não haveria mais que de 10 a 14.000 cabeças, porque vão se comendo no dito campo a carne de touros, de que se fazia a courama, se matavam as vacas, só para se comer a melhor parte e as vezes não mais, que para lhe tirar o leite e fazer outras atrocidades, chamei a Conselho e com o parecer uniforme de todos os oficiais proibi, a 22 de dezembro de 1738 as corredorias de toda a campanha e passei ordem para que se postassem 3 guardas de Dragões, encomendados a um cabo, que as visitasse continuamente na distancia de 22 léguas, nas quais não havia entrada, pela costa da grande Lagoa de Mery [Mirim] e que se desse mantimento a todos os que cursassem as ditas campanhas, para irem e virem às guardas de Chuí e Forte de S. Miguel; o que se executou enquanto não larguei interinamente aquele governo.
Igual cuidado pus na condução que os homens de negócio queriam fazer de cavalhadas, para a Capitania das Minas, pela Serra dos Tapes, em direitura á vila da Curitiba, da jurisdição da Cidade e Capitania de S. Paulo, do que dando a V. Ex.a conta, me ordenou tirasse de direitos de cada cabeça, exceto vacas e éguas, 10 tostões; mas porque ao tempo, em que chegou esta resolução, se achavam os Tropeiros prontos a subir a serra, e sem dinheiro algum, ajustei em conselho, que V. Exa aprovou, pagarem-se os ditos direitos na Curitiba aos oficiais da Fazenda Real da Praça de Santos (...) Fui tão assíduo, que nem doente e sangrado faltei mais que um dia e por nenhuma de minhas enfermidades, ainda com o notório perigo de vida, tomei cama (..) Na minha casa não entrou presente, nem cousa alguma, que não fosse comprada, nem fiz ou entrei em negócio, por mim ou por interposta pessoa e se contra esta integridade V. Ex.a tiver dúvida, mas que seja por testemunho falso, que se me impusesse, estou pela voz pública, porque não tenho outro documento por ora. (...) Sem descompor o nascimento ou estado de cada um, ensinando o serviço de Praça fechada e trabalho de fortificações, dando-lhes exemplo com a minha contínua assistência a tudo, fazendo por tempestuosas noites a minha ronda efetiva e ainda que por horas incertas, esperando o dia na muralha e sobretudo dando a V Ex.a individuais contas, do que se passou e havia naquele Domínio e executando pontualissimamente as ordens de V. Ex.a me deu a felicidade de conservar o dito Domínio sem alteração, até o entregar a 22 de dezembro de 1740 ao Coronel de Dragões Diogo Osório Cardoso, com as ordens, que havia recebido de Vossa Excelência”. 

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