Naufrágio do galeão São João ou Sepúlveda. Acervo: História Trágico-Marítima, tomo 1, 1735. |
"Procurai bem nos olhos dum português:
todos no fundo têm a Morte. É que durante muitos séculos convivemos com ela e
vimo-la na sua mais triste e trágica figura – a dos naufrágios" (Jaime
Cortesão, Náufragos Portugueses, Revista
Águia, 1913).
Uma das
obras mais importantes sobre a História da cultura portuguesa é a História Trágico-Marítima, publicada em
1735-1736 por Bernardo Gomes de Brito. O autor coletou relatos de naufrágios de
embarcações portuguesas na rota da Índia. A tradição marítima de Portugal que
forjou no mar a própria alma lusitana teve nesta obra um dos seus estudos mais
contundentes para entender a expansão ultramarina e os descobrimentos,
inclusive do Brasil. A História Trágico-Marítima aborda o lado trágico
dos descobrimentos enquanto Os Lusíadas, de Camões, se debruça sobre o
sentido heróico e glorioso das Descobertas.
A História
Trágico-Marítima é uma coleção de narrativas sobre naufrágios de navios
portugueses ocorridos entre 1552 e 1602. O livro se debruça sobre as “relações”
de naufrágios. No século XVI e XVII, essas “relações” eram publicadas em
folhetos de autoria de sobreviventes ou narradores que tinham informações sobre
os acontecimentos. No século XVIII, Bernardo Gomes de Brito compilou estas “relações” em dois tomos publicados, respectivamente, o
primeiro em 1735 e o segundo em 1736. Gomes de Brito pretendia publicar mais
três tomos, o que nunca ocorreu. Entre os vários relatos de naufrágio, o de
maior divulgação foi a Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João, uma
fonte de inspiração para Camões escrever o Canto IV de Os Lusíadas.
Com a viagem
de Vasco da Gama, entre Lisboa e a Índia, por via do Cabo da Boa Esperança
(1498), teve início a história de conquistas e expansão comercial, mas também a
história de grandes naufrágios num período em que não havia previsão
meteorológica sobre tempestades. O perigo era real: entre os séculos XVI e
XVII, um de cada cinco navios portugueses naufragava tentando chegar à Índia.
Quando havia sobreviventes que conseguiam chegar novamente a terra, ficava
preservada a história do naufrágio e os
motivos da ocorrência. Poderia ser um temporal, o ataque por piratas ou
corsários, a má construção de embarcações, o excesso de carga, a incapacidade
de pilotos e outros fatores. Cerca de 40% dos naufrágios não deixaram qualquer
registro de suas motivações pois não restaram sobreviventes ou vestígios. As
suas histórias repousam no fundo dos oceanos.
A
popularidade destes relatos ligados a uma história do medo (dos perigos do mar),
teve no naufrágio do galeão São João ou Sepúlveda (1552) o seu ponto máximo de
divulgação. Neste relato, chega ao ápice o pavor do naufrágio e do abandono
numa ilha desabitada, quando o próprio capitão da embarcação e seus familiares
morreram de fome junto a uma praia deserta.
A
cultura portuguesa criou a sua identidade voltada para o desbravamento do mar,
sendo pioneira e referência no desenvolvimento de técnicas de navegação no
Oceano Atlântico. Na costa africana, Oriente ou na América Portuguesa até o Rio
da Prata, os portugueses estiveram envolvidos num projeto histórico de longa
duração temporal e ampla dispersão espacial.
O poema de
Fernando Pessoa, “Mar Português” sintetizou a dialética entre o épico e o
trágico das navegações ao relacionar o salgado do mar com as lágrimas dos
portugueses e ao enfatizar que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”:
"Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem querer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu".
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