Porto do Rio Grande em 1908

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quarta-feira, 30 de outubro de 2019

HISTÓRIA TRÁGICO-MARÍTIMA

Naufrágio do galeão São João ou Sepúlveda. Acervo: História Trágico-Marítima, tomo 1, 1735.


"Procurai bem nos olhos dum português: todos no fundo têm a Morte. É que durante muitos séculos convivemos com ela e vimo-la na sua mais triste e trágica figura – a dos naufrágios" (Jaime Cortesão, Náufragos Portugueses, Revista Águia, 1913).

Uma das obras mais importantes sobre a História da cultura portuguesa é a  História Trágico-Marítima, publicada em 1735-1736 por Bernardo Gomes de Brito. O autor coletou relatos de naufrágios de embarcações portuguesas na rota da Índia. A tradição marítima de Portugal que forjou no mar a própria alma lusitana teve nesta obra um dos seus estudos mais contundentes para entender a expansão ultramarina e os descobrimentos, inclusive do Brasil. A História Trágico-Marítima aborda o lado trágico dos descobrimentos enquanto Os Lusíadas, de Camões, se debruça sobre o sentido heróico e glorioso das Descobertas.
A História Trágico-Marítima é uma coleção de narrativas sobre naufrágios de navios portugueses ocorridos entre 1552 e 1602. O livro se debruça sobre as “relações” de naufrágios. No século XVI e XVII, essas “relações” eram publicadas em folhetos de autoria de sobreviventes ou narradores que tinham informações sobre os acontecimentos. No século XVIII, Bernardo Gomes de Brito compilou estas “relações”  em dois tomos publicados, respectivamente, o primeiro em 1735 e o segundo em 1736. Gomes de Brito pretendia publicar mais três tomos, o que nunca ocorreu. Entre os vários relatos de naufrágio, o de maior divulgação foi a Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João, uma fonte de inspiração para Camões escrever o Canto IV de Os Lusíadas.
Com a viagem de Vasco da Gama, entre Lisboa e a Índia, por via do Cabo da Boa Esperança (1498), teve início a história de conquistas e expansão comercial, mas também a história de grandes naufrágios num período em que não havia previsão meteorológica sobre tempestades. O perigo era real: entre os séculos XVI e XVII, um de cada cinco navios portugueses naufragava tentando chegar à Índia. Quando havia sobreviventes que conseguiam chegar novamente a terra, ficava preservada a história do naufrágio e  os motivos da ocorrência. Poderia ser um temporal, o ataque por piratas ou corsários, a má construção de embarcações, o excesso de carga, a incapacidade de pilotos e outros fatores. Cerca de 40% dos naufrágios não deixaram qualquer registro de suas motivações pois não restaram sobreviventes ou vestígios. As suas histórias repousam no fundo dos oceanos.
A popularidade destes relatos ligados a uma história do medo (dos perigos do mar), teve no naufrágio do galeão São João ou Sepúlveda (1552) o seu ponto máximo de divulgação. Neste relato, chega ao ápice o pavor do naufrágio e do abandono numa ilha desabitada, quando o próprio capitão da embarcação e seus familiares morreram de fome junto a uma praia deserta.
         A cultura portuguesa criou a sua identidade voltada para o desbravamento do mar, sendo pioneira e referência no desenvolvimento de técnicas de navegação no Oceano Atlântico. Na costa africana, Oriente ou na América Portuguesa até o Rio da Prata, os portugueses estiveram envolvidos num projeto histórico de longa duração temporal e ampla dispersão espacial.
O poema de Fernando Pessoa, “Mar Português” sintetizou a dialética entre o épico e o trágico das navegações ao relacionar o salgado do mar com as lágrimas dos portugueses e ao enfatizar que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”:
"Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem querer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu".

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