Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

DO ALBARDÃO AO CHUÍ

Arroio Chuí. Fonte: Wikipédia.
  

         O registro deixado em 1820 pelo naturalista Auguste de Saint-Hilaire (livro Viagem ao Rio Grande do Sul), quando de sua viagem a Rio Grande e arredores, é uma das mais preciosas descrições do século 19 para o extremo sul do Brasil. Um trecho de seu diário refere-se ao percurso de um viajante entre o Taim e o Chuí. A paisagem e os personagens humanos que compunham esta região a quase duzentos anos no passado, são descritos de forma espontânea pelo botânico francês. No percurso pelos Campos Neutrais até o Chuí, Saint-Hilaire descreve a monotonia da paisagem num período de agricultura rudimentar e de criação extensiva de gado. Paisagem que mesmo com o processo de produção do arroz em grandes extensões (ocorrido nos últimos 80 anos), ainda mantém muitos aspectos descritos nestes parágrafos. Lugares como o Albardão, a Lagoa Mangueira, a área da atual Reserva do Taim, o Arroio Chuí etc, são referenciados com denominações usadas na época.  

“ESTÂNCIA DA TAPERA, 23 de setembro de 1820. Entre a região que percorri e o mar encontra-se um belo lago, muito estreito, de doze léguas de comprimento, e que, começando à altura de Tapera, se estende, paralelamente, à lagoa Mirim e ao mar, até ao Capão do Franco, a uma légua e meia da Estância do Curral Grande. Nos mapas dá-se-lhe o nome de lagoa da Mangueira, mas na região é conhecida por lagoa do Albardão. É a lagoa Comprida, para o Sr. Chaves. Da extremidade setentrional desse mesmo lago, dê-se um imenso banhado, que se dirige para as bandas do Rio Grande, e que, ao aproximar-se dessa cidade, disseram-me, divide-se em vários braços, cujo conjunto se parece com dedos da mão; outro banhado termina o lago na ponta sul, e se prolonga até Jerebatuba. Chama-se banhado, como indica o nome, aos terrenos banhados por uma pequena quantidade d’água que, às vezes, se escoa. Neles crescem, ordinariamente, grandes ervas; são menos lamacentos que os pântanos propriamente ditos, e podem ser considerados como espécie de transição entre os pântanos e os lagos. Entre a lagoa da Mangueira e o mar, à altura da Estiva, junto à Estância do Velho Terras, o solo se eleva e forma uma espécie de corcova, que se estende à altura da estância de João Gomes. Essa elevação recebeu, devido à sua forma, o nome de Albardão, que significa albarda grande e, daí, a denominação de lagoa do Albardão. Tais pormenores obtive dos habitantes da região que me pareceram bastante instruídos. Para completar essa pequena topografia, devo acrescentar que, ao chegar à Guarda de Taim, vadeei um regato, chamado arroio Taim, cujas nascentes se encontram na parte sul do banhado setentrional do lago do Albardão, e que estabelece comunicação entre esse lago e a lagoa Mirim. (...) Da casa em que pernoitei até aqui não vi nenhuma estância, além do Curral Alto. (...) A estância em que fiquei não passa de uma desprezível choupana, sem mobiliário, cercada de algumas senzalas. Logo que entrei, a dona da casa se ocupava em coser, acocorada sobre tábuas, colocadas em cima de pedras e cobertas por uma pele de carneiro. Estava bem apresentável e, ainda que tímida, respondeu às perguntas que lhe formulei. Todas as mulheres que tenho visto do Rio Grande a esta parte são bonitas. De olhos e cabelos negros e, ao mesmo tempo, muito brancas. Superam, certamente, as francesas pela beleza da tez corada. Manifestei ao meu hospedeiro o desejo de adquirir carne. Imediatamente, saiu à procura de uma vaca nos campos e abateu-a; deixou meu soldado escolher os pedaços melhores, sem olhar quais eram, recusando-se a falar em pagamento; contudo asseguraram-me que esse homem não é rico, o que, aliás, se comprova pela sua moradia e seu traje. ESTÂNCIA DE JOSÉ BERNARDES, 24 de se tembro –A estância de José Bernardes compõe-se, como todas as outras, da casa do dono e algumas casas de negros e de uma cozinha que forma uma choupana à parte, segundo o costume de quase todo o Brasil. A casa do estancieiro é coberta de palhas como as que vi de pois da estância do Silvério: baixa como todas as outras, e construída também de pau-a-pique, construção esta usada em toda a região. Constituem o interior da casa duas peças: a sala e o quarto do proprietário, sendo este separado daquela apenas por uma cor tina. A sala muito limpa, mas sem janelas, é apenas mobiliada com fundo guarnecido de couro, como é uso geral, e, finalmente, um estrado sobre o qual a dona da casa trabalha acocorada, formado por tábuas pregadas sobre dois tocos de madeira. Perguntei a José Bernardes onde ele se abastecia de lenha e madeira, tendo respondido que acabara de comprar os destroços de um iate, há pouco tempo, naufragado em Capilha, mas que, ordinariamente, ele e seus vizinhos iam procurar lenha à margem do arroio d’El-Rei, a dois dias daqui, por viagem de carroça (...) [Em outra estância uma] senhora estava ocupada em fiar lã, para fazer esses ponches grosseiros, destinados aos negros, e que se empregam, também, à guisa de chiripá. Mostrou-me, também, um pano de linho, feito com perfeição. O linho foi produzido em seu terreno, fiado e tecido em sua casa; (...) ESTÂNCIA DO XUÍ, 30 de setembro. – Região completamente plana e coberta de pastagens onde a erva está seca. Nenhuma árvore sequer. À direita, ao longe, a serra de São Miguel; à esquerda o mar, cerca de meia légua do caminho, mas que se avista, de tempo em tempo, ao longe. O Sr. Delmont quis, a todo o custo, acompanhar-me até aqui. A três léguas de sua estância, entramos numa casa, a única que encontramos em todo o percurso. Senhoras, cercadas das mais lindas crianças do mundo, trabalhavam com agulhas, agachadas sobre um estrado, elevado do chão cerca de um pé, e sobre o qual estavam estendidas peles de carneiro. Esses estrados são de uso geral. Constituem móvel essencial numa sala. Vêem-se, além disso, uma mesa, duas cadeiras e algumas vezes uma cama de madeira, destinada aos hóspedes. Os donos da casa dormem num pequeno quarto separado. As casas aqui nunca têm soalho nem forro. Um pouco antes de chegar ao arroio Xuí, entramos numa outra choupana, muito mal arranjada. Em seguida tornamos a montar a cavalo e chegamos ao arroio Xuí. Este se comunica, numa de suas extremidades, com o lago do Albardão e, na outra, com o mar. Serve como que de esgoto dos banhados vizinhos. Quando suas águas aumentam, formam torrentes e lançam-se no mar; mas, logo que diminui de volume, as areias entopem sua embocadura, tornando-o estagnado durante meses. Paramos em uma estância situada do outro lado do arroio, pertencente ao cunhado do Sr. Delmont. A dona da casa convidou-me a cear e, pela primeira vez de pois que estou nesta capitania, vi rezar após a refeição, e as crianças pedirem a bênção à sua mãe. Do Rio Grande até aqui esta casa e a de Silvério são as únicas em que há pequenos oratórios, encontrados por toda a parte da Capitania de Minas. São colocados, entretanto, no quarto de dormir dos proprietários, onde o estranho nunca entra. Aqui se passa o arado sobre a terra tantas vezes quantas forem necessárias para torná-la fofa".

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