Antiga planta de Bartolomeu Paes de Abreu datada de 1719, mostrando a região que vai da Barra do Rio Grande ao Arroio Chuí. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. |
No diário do
naturalista Auguste de Saint-Hilaire ficaram registradas as impressões que teve
em sua viagem pelo Rio Grande do Sul entre 1820-21. Preciosos registros da
então Vila do Rio Grande e de seu entorno, permitem caracterizar os cenários
que existiam há quase duzentos anos atrás. A viagem de Saint-Hilaire de Rio
Grande ao Taim, registra o Arroio das Cabeças (na atual Quinta), os cães
ovelheiros, a lagoa Caiubá, a Capilha, o Taim, os campos neutrais... As viagens
pela paisagem dentre da viagem de Saint-Hilaire, tornam este, um dos autores
mais destacados na arte da escrita dos espaços antigos no Rio Grande do Sul.
“Arroio das Cabeças, 19 de setembro de 1820 –
Ao cair do sol, o termômetro registrava 12 graus. Deixei hoje, o Rio Grande,
onde passei um mês muito agradável, em boa companhia, alimentando-me bem e
tratado por todos, com a maior consideração. Era tempo, entretanto, de partir,
pois o repouso das cidades me torna indolente; trabalho, mas com extrema
lentidão e, podendo dispor de todo o meu tempo, aproveitei-o menos. Ao
contrário, o movimento das viagens me anima e, como tenho raros momentos de
folga, procurei desfrutá-los bem. (...) Deixamos a carroça seguir o caminho
direto e tomamos à dianteira, por outro rumo, contornando quase sempre a
Mangueira; caminhamos durante muito tempo sobre um gramado muito fino, mas
tínhamos, à direita, montões de areia pura, no meio dos quais só crescia o
senecio n.1853 bis, chamado mal-me-queres, no Rio Grande. Ao cabo de duas
léguas, chegamos à casa do Tenente Vieira, situada junto à extremidade do istmo
que separa a Mangueira da Lagoa dos Patos. (...) O Tenente Vieira possui um
rebanho de ovelhas que, como os demais da região, permanece sempre nos campos,
mas é guardado por um desses cães, chamado ovelheiro, de que fala o abade
Casal. Eis o que me contou o tenente sobre esses animais. Toma-se um
cachorrinho, antes que tenha aberto os olhos, separa-se da mãe, obriga-se uma
ovelha a amamentá-lo, e constrói-se lhe um pequeno abrigo no meio do rebanho.
Os primeiros seres vivos que se oferecem à sua vista são os carneiros; o
cachorro acostuma-se a eles, toma-lhes afeição e erige-se em seu defensor,
repelindo com valentia os cães selvagens e outros animais que os vem atacar.
Habitua-se a vir comer pela manhã e à tarde na estância; além disso, nunca mais
abandona o rebanho e, quando as ovelhas se afastam da casa, priva-se até de
alimento para acompanhá-las. (...) Estância do Velho Terras, 21 de setembro – O
bom Silvério quis fazer-me almoçar esta manhã, e esta refeição, como a de ontem
à tarde, era composta de carnes. Nesta região ninguém como outra coisa. Carne
assada, carne cozida, carne em guisado ou cortada em pequenos pedaços; sempre
carne e, quase sempre, de vaca ou de boi. A região hoje percorrida é
absolutamente semelhante à que ontem atravessei; igualmente plana, só
oferecendo pastagens extremamente rasas, onde pastam numerosos animais. As
casas são muito menos freqüentes. Cerca de duas léguas da Estância do Silveiro,
comecei a avistar, à minha direita, um grande lago que se estende paralelamente
ao caminho. A quase uma légua daqui parei alguns instantes numa estância
situada às margens do lago, e que se compõe de algumas choupanas muito baixas,
e construídas, ainda, de pau-a-pique. Fui recebido por uma senhora idosa,
alegre, honesta, muito conversadora. Trajava-se como todas as mulheres da
região. Apenas entrei na casa, fez-me servir dois mates e, segundo o uso, numa
pequena cuia de ponta recurvada, onde estava enfiada uma bomba de prata. A casa
fica defronte ao lago; está um pouco afastada e o terreno que a separa dele é
declivoso, coberto de grossas árvores pouco altas, mas muito frondosas,
separadas umas das outras. A seus pés crescem grandes cipós que, depois de se
apoiarem contra seus troncos, enleiam-se em seus ramos, formando uma cobertura
impenetrável aos raios solares. Um pequeno trecho do lago, que se percebe
debaixo dessa ramagem, serve para atenuar o demasiado aspecto sombrio. Disse-me
a dona da estância que o lago podia ter três léguas de comprimento, chamava-se
Lagoa de Caiová, e que dá o nome à estância”.
Seguindo viagem para o Taim, Saint-Hilaire
passa pelas estâncias de José Correia e Velho Terras. “No caminho, encontrei um
homem que mora a trinta léguas daqui e que voltava para casa, em companhia da
mulher. Todos, nesta região, são exímios cavaleiros, razão por que fazem longas
viagens a cavalo. Conversando com o homem de que acabo de falar, soube que em São Miguel , em Santa Teresa e seus
arredores, havia um grande número de estancieiros completamente jejunos em
religião; que muita gente jamais se confessou, e até se encontra mesmo quem, na
idade de quinze ou dezesseis anos, jamais assistiram missa; o que não é muito
de admirar, pois que, entre a fronteira e Rio Grande, somente se reza missa em
Capilha, onde passei hoje. Capilha é simplesmente uma aldeia, composta de
algumas choupanas e de uma pequeníssima capela subordinada à paróquia do Rio
Grande, mas sem capelão. Essa aldeia está situada numa posição muito agradável,
às margens da Lagoa Mirim. Silveiro disse-me que sua casa ficava a cinco léguas
do lago e a cinco do mar. Abaixo de Caiová, o istmo começa a se estreitar. Meus
hospedeiros de ontem à tarde asseguraram-me que sua habitação ficava somente a
duas léguas do lago, e a três do oceano; em Capilha, não há mais que duas
léguas entre o lago e o mar. De Capilha até aqui, num espaço de três léguas,
viemos sempre contornando o lago, caminhando por uma praia triste e monótona,
coberta de areia fina e esbranquiçada. Para além da praia, as areias amontoadas
pelos ventos formaram uma fileira ininterrupta de montículos, sobre os quais
crescem algumas árvores raquíticas, tais como a mirsínea, a figueira, o
coentro. Por trás dos montículos, o terreno continua plano e coberto de
pastagens.
A uma légua da Capilha, encontra-se o lugar
chamado Taim, onde estão acampados alguns soldados. Outrora, Taim era o limite
das divisões portuguesas. Do outro lado, os campos neutros, que se estendiam
numa extensão de trinta léguas, até a Estância do Chuí, onde começavam as
possessões espanholas. Se é verdade o que me disseram, os campos neutrais
foram, originariamente, povoados pelos portugueses, que, por força de um
tratado, se viram obrigados a abandonar suas possessões. Homens pobres, vendo
uma tão grande área de terras sem proprietário, sonharam aí se estabelecer,
solicitando, para isso, a posse dela aos comandantes portugueses da fronteira.
Esses, para não se comprometerem, recusaram-lhes autorização direta, mas se
prontificaram a fechar os olhos a essa violação do tratado, e recomendaram aos
agricultores procurarem entendimento com os comandantes espanhóis, que por
dinheiro, consentiam tudo. Assim foram os campos neutrais povoados pela segunda
vez, pelos portugueses. Mas hoje, que essas terras são consideradas como parte
do domínio português, os primeiros donos se apresentam com títulos legítimos,
concedidos pelo Rei, e pretendem reaver suas terras, pois os últimos ocupantes
ali se estabeleceram fraudulentamente, burlando assim o tratado. Parece que as
autoridades estão dispostas a decidir em favor dos mais antigos donos.
Pernoitei numa estância, cujo proprietário estava ausente, e onde só encontrei
um negro. Esse homem alimenta-se apenas de carne, sem farinha e sem pão, como
sucede a todos os escravos nesta região”.
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