Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

CAMINHO PARA O TAIM

 
Antiga planta de Bartolomeu Paes de Abreu datada de 1719, mostrando a região que vai da Barra do Rio Grande ao Arroio Chuí. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 



No diário do naturalista Auguste de Saint-Hilaire ficaram registradas as impressões que teve em sua viagem pelo Rio Grande do Sul entre 1820-21. Preciosos registros da então Vila do Rio Grande e de seu entorno, permitem caracterizar os cenários que existiam há quase duzentos anos atrás. A viagem de Saint-Hilaire de Rio Grande ao Taim, registra o Arroio das Cabeças (na atual Quinta), os cães ovelheiros, a lagoa Caiubá, a Capilha, o Taim, os campos neutrais... As viagens pela paisagem dentre da viagem de Saint-Hilaire, tornam este, um dos autores mais destacados na arte da escrita dos espaços antigos no Rio Grande do Sul.

        “Arroio das Cabeças, 19 de setembro de 1820 – Ao cair do sol, o termômetro registrava 12 graus. Deixei hoje, o Rio Grande, onde passei um mês muito agradável, em boa companhia, alimentando-me bem e tratado por todos, com a maior consideração. Era tempo, entretanto, de partir, pois o repouso das cidades me torna indolente; trabalho, mas com extrema lentidão e, podendo dispor de todo o meu tempo, aproveitei-o menos. Ao contrário, o movimento das viagens me anima e, como tenho raros momentos de folga, procurei desfrutá-los bem. (...) Deixamos a carroça seguir o caminho direto e tomamos à dianteira, por outro rumo, contornando quase sempre a Mangueira; caminhamos durante muito tempo sobre um gramado muito fino, mas tínhamos, à direita, montões de areia pura, no meio dos quais só crescia o senecio n.1853 bis, chamado mal-me-queres, no Rio Grande. Ao cabo de duas léguas, chegamos à casa do Tenente Vieira, situada junto à extremidade do istmo que separa a Mangueira da Lagoa dos Patos. (...) O Tenente Vieira possui um rebanho de ovelhas que, como os demais da região, permanece sempre nos campos, mas é guardado por um desses cães, chamado ovelheiro, de que fala o abade Casal. Eis o que me contou o tenente sobre esses animais. Toma-se um cachorrinho, antes que tenha aberto os olhos, separa-se da mãe, obriga-se uma ovelha a amamentá-lo, e constrói-se lhe um pequeno abrigo no meio do rebanho. Os primeiros seres vivos que se oferecem à sua vista são os carneiros; o cachorro acostuma-se a eles, toma-lhes afeição e erige-se em seu defensor, repelindo com valentia os cães selvagens e outros animais que os vem atacar. Habitua-se a vir comer pela manhã e à tarde na estância; além disso, nunca mais abandona o rebanho e, quando as ovelhas se afastam da casa, priva-se até de alimento para acompanhá-las. (...) Estância do Velho Terras, 21 de setembro – O bom Silvério quis fazer-me almoçar esta manhã, e esta refeição, como a de ontem à tarde, era composta de carnes. Nesta região ninguém como outra coisa. Carne assada, carne cozida, carne em guisado ou cortada em pequenos pedaços; sempre carne e, quase sempre, de vaca ou de boi. A região hoje percorrida é absolutamente semelhante à que ontem atravessei; igualmente plana, só oferecendo pastagens extremamente rasas, onde pastam numerosos animais. As casas são muito menos freqüentes. Cerca de duas léguas da Estância do Silveiro, comecei a avistar, à minha direita, um grande lago que se estende paralelamente ao caminho. A quase uma légua daqui parei alguns instantes numa estância situada às margens do lago, e que se compõe de algumas choupanas muito baixas, e construídas, ainda, de pau-a-pique. Fui recebido por uma senhora idosa, alegre, honesta, muito conversadora. Trajava-se como todas as mulheres da região. Apenas entrei na casa, fez-me servir dois mates e, segundo o uso, numa pequena cuia de ponta recurvada, onde estava enfiada uma bomba de prata. A casa fica defronte ao lago; está um pouco afastada e o terreno que a separa dele é declivoso, coberto de grossas árvores pouco altas, mas muito frondosas, separadas umas das outras. A seus pés crescem grandes cipós que, depois de se apoiarem contra seus troncos, enleiam-se em seus ramos, formando uma cobertura impenetrável aos raios solares. Um pequeno trecho do lago, que se percebe debaixo dessa ramagem, serve para atenuar o demasiado aspecto sombrio. Disse-me a dona da estância que o lago podia ter três léguas de comprimento, chamava-se Lagoa de Caiová, e que dá o nome à estância”. 
         Seguindo viagem para o Taim, Saint-Hilaire passa pelas estâncias de José Correia e Velho Terras. “No caminho, encontrei um homem que mora a trinta léguas daqui e que voltava para casa, em companhia da mulher. Todos, nesta região, são exímios cavaleiros, razão por que fazem longas viagens a cavalo. Conversando com o homem de que acabo de falar, soube que em São Miguel, em Santa Teresa e seus arredores, havia um grande número de estancieiros completamente jejunos em religião; que muita gente jamais se confessou, e até se encontra mesmo quem, na idade de quinze ou dezesseis anos, jamais assistiram missa; o que não é muito de admirar, pois que, entre a fronteira e Rio Grande, somente se reza missa em Capilha, onde passei hoje. Capilha é simplesmente uma aldeia, composta de algumas choupanas e de uma pequeníssima capela subordinada à paróquia do Rio Grande, mas sem capelão. Essa aldeia está situada numa posição muito agradável, às margens da Lagoa Mirim. Silveiro disse-me que sua casa ficava a cinco léguas do lago e a cinco do mar. Abaixo de Caiová, o istmo começa a se estreitar. Meus hospedeiros de ontem à tarde asseguraram-me que sua habitação ficava somente a duas léguas do lago, e a três do oceano; em Capilha, não há mais que duas léguas entre o lago e o mar. De Capilha até aqui, num espaço de três léguas, viemos sempre contornando o lago, caminhando por uma praia triste e monótona, coberta de areia fina e esbranquiçada. Para além da praia, as areias amontoadas pelos ventos formaram uma fileira ininterrupta de montículos, sobre os quais crescem algumas árvores raquíticas, tais como a mirsínea, a figueira, o coentro. Por trás dos montículos, o terreno continua plano e coberto de pastagens.
A uma légua da Capilha, encontra-se o lugar chamado Taim, onde estão acampados alguns soldados. Outrora, Taim era o limite das divisões portuguesas. Do outro lado, os campos neutros, que se estendiam numa extensão de trinta léguas, até a Estância do Chuí, onde começavam as possessões espanholas. Se é verdade o que me disseram, os campos neutrais foram, originariamente, povoados pelos portugueses, que, por força de um tratado, se viram obrigados a abandonar suas possessões. Homens pobres, vendo uma tão grande área de terras sem proprietário, sonharam aí se estabelecer, solicitando, para isso, a posse dela aos comandantes portugueses da fronteira. Esses, para não se comprometerem, recusaram-lhes autorização direta, mas se prontificaram a fechar os olhos a essa violação do tratado, e recomendaram aos agricultores procurarem entendimento com os comandantes espanhóis, que por dinheiro, consentiam tudo. Assim foram os campos neutrais povoados pela segunda vez, pelos portugueses. Mas hoje, que essas terras são consideradas como parte do domínio português, os primeiros donos se apresentam com títulos legítimos, concedidos pelo Rei, e pretendem reaver suas terras, pois os últimos ocupantes ali se estabeleceram fraudulentamente, burlando assim o tratado. Parece que as autoridades estão dispostas a decidir em favor dos mais antigos donos. Pernoitei numa estância, cujo proprietário estava ausente, e onde só encontrei um negro. Esse homem alimenta-se apenas de carne, sem farinha e sem pão, como sucede a todos os escravos nesta região”. 

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