Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

CONTRABANDO E COMÉRCIO LÍCITO

 
Planta da Província do Rio Grande em 1841. Acervo: Biblioteca digital hispânica.


          Não é nenhuma novidade afirmar que o Rio Grande do Sul teve, historicamente, uma fronteira com países platinos afeita às práticas de contrabando. Entre a coerção e conivência, desde o século 18 foram registradas inúmeras práticas deste delito, alguns dos quais estão registrados em documentos policiais e judiciais.
         A historiadora Mariana Thompson Flores (Por Baixo dos Panos. In: Revista de História da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, n.68, 2011), pesquisou uma rede de contrabando ligando a fronteira oeste do Rio Grande do Sul até os maiores centros urbanos da Província na segunda metade do século XIX, provocando prejuízos para os comerciantes de cidades como Rio Grande e Porto Alegre.
A autora analisou a atuação de um bando de vinte homens, brasileiros, argentinos e uruguaios, que faziam o contrabando de mercadorias das margens argentinas do Rio Uruguai para a cidade de Uruguaiana e dali para outras localidades rio-grandenses. O carregamento ilegal atravessou o rio Uruguai de bote para ser entregue na casa comercial dos irmãos Juan e José Comas, comerciantes argentinos radicados em Uruguaiana. Porém, os guardas da fronteira fazem uma abordagem e conseguem prender alguns dos contrabandistas, inclusive os irmãos Comas, que são indiciados como réus. Este fato ocorrido numa madrugada do mês de novembro de 1864 evidenciou formalmente a prática do comércio ilegal. Eram ações do cotidiano nas fronteiras do sul do Brasil e que raramente eram interceptados pelas autoridades.
Grandes contrabandos como este, envolvendo um grande bando e volumes consideráveis de mercadorias, preocupavam as autoridades alfandegárias, pois comprometiam a arrecadação de impostos e os lucros dos grupos mercantis da região mais desenvolvida da província: Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas. Para a historiadora, essas operações eram feitas por mercadores que queriam abastecer suas casas de comércio com produtos importados, que eram, obviamente, adquiridos por um custo muito menor do que os que passavam legalmente pela fronteira. O tráfico dispunha de um aparato complexo que envolvia transporte, bandos de homens armados para descarregar as mercadorias e escoltá-las até seu destino e informantes que estavam sempre dando a posição dos guardas de fronteira, além de cúmplices na própria Alfândega. Estima-se que, pela via oficial, um comerciante tinha que desembolsar cerca de 30% a 40% do valor de sua mercadoria para satisfazer o fisco. Já por meios ilícitos, ele pagava apenas de 15% a 20%. O que mais deixava as autoridades em polvorosa era saber que as mercadorias ilegais chegavam a casas de comércio muito distantes da fronteira e, às vezes, bem próximas do porto do Rio Grande. Mas por que os comerciantes do oeste do Rio Grande do Sul preferiam se aventurar nos mercados argentinos e uruguaios e não no nacional? A resposta está na facilidade de acesso a esses lugares. Navegar pelo Rio Uruguai até os portos internacionais de Buenos Aires e Montevidéu, localizados no Rio da Prata, era bem mais fácil do que percorrer as tortuosas estradas que ligavam as fronteiras da província à região portuária.
Conforme Mariana Thompson Flores outro fator que contribuiu muito para essa atividade foi à corrupção de funcionários. Boa parte desses produtos contrabandeados entrava no Brasil pela Alfândega. Alguns deles passavam escondidos no meio de outras cargas por conta das boas relações que eram mantidas entre os comerciantes e alguns empregados da repartição, que faziam vista grossa ou declaravam a mercadoria como bagagem pessoal. Esses procedimentos também eram facilitados pelo fato de que não costumava haver alterações no quadro de funcionários da Alfândega de Uruguaiana e estes, sem exceção, estavam atrelados às redes de poder locais.
A autora conclui que os governantes do Rio Grande do Sul admitiam em seus relatórios não haver controle sobre o contrabando praticado nas fronteiras. Dessa forma, a Assembléia Provincial reivindicava ao poder imperial soluções para a contenção do comércio ilícito. Os comerciantes das principais praças de negócio lícito da província se mobilizavam por intermédio de suas associações comerciais e jornais de comércio para tentar combater essa situação. Nesse contexto, os contrabandistas da fronteira iam adaptando suas práticas a fim de sustentá-las e conservá-las, impondo assim ao governo e ao comércio lícito uma verdadeira queda de braço que ainda se estenderia pelas primeiras décadas do século XX.
Às repetidas queixas de comerciantes radicados no Porto do Rio Grande em relação à dificuldade de venda de suas mercadorias no mercado provincial, advém, muitas vezes, desta concorrência com o comércio ilícito: as altas taxas alfandegárias pagas por alguns tinham a contrapartida da sonegação por outros. 

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