Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

CIVILIDADE E HIGIENE


 
Extraindo um bicho-de-pé. Água-tinta do artista inglês Augustus Earle (Cenas Brasileiras, 1822).
Acervo: Biblioteca Nacional da Austrália.
          O historiador Capistrano de Abreu afirmou que no Brasil, ainda nas primeiras décadas do século 19, “da higiene pública incumbiam-se as águas da chuva, os raios de sol e os diligentes urubus”. Viajantes estrangeiros que estiveram no Brasil da primeira metade do século 1800, deixaram vários registros sobre as condições de higiene e os hábitos da sociedade brasileira.
         Assim como outros temas, o campo da higiene também é dinâmico e as práticas mudam conforme a sociedade. A historiadora Mary Del Priore (O Choque entre a civilidade e o despudor In: História Viva - O Olhar dos Viajantes 2. São Paulo: Duetto, 2010), analisou algumas fontes históricas que nos levam há dois séculos. Segundo a autora, comer com as mãos, arrotar, defecar ou urinar publicamente são hábitos banidos de nosso convívio atual. Porém, as práticas em torno das necessidades fisiológicas, assim como o uso da água e da indumentária, percorreram uma longa estrada antes de ser adestrados. E a educação do corpo teve de se dobrar as fórmulas de contenção, contrariando o desejo e os apelos da natureza.
         Conforme relatos de viajantes, as casas eram repugnantemente sujas e o chão não era lavado. Para expulsar o mau cheiro das casas, queimava-se plantas odoríferas. Os penicos estavam em toda parte e o conteúdo era jogado nas ruas e praias. O inglês John Luccock ao visitar o Rio de Janeiro em 1809, queixou-se que nas casas havia uma “tina destinada a receber todas as imundícies e refugos da casa, que, nalguns casos, é levada e esvaziada diariamente, noutros, somente uma vez por semana, de acordo com o número de escravos, seu asseio relativo e pontualidade, porém sempre carregado, já sobremodo insuportável”.
         A maioria dos habitantes livres andava pelas ruas vestido com “casacas pretas, velhas e coçadas”. Na cabeça “uma peruca empoada sobre que punham um enorme chapéu armado já sebento, geralmente ornado de um tope”. Para Luccock, o número de pessoas com aparência respeitável era pequeno. Nas refeições, as pessoas “comem muito e com grande avidez e, apesar de embebidos em sua tarefa, ainda acham tempo para fazer grande bulha. A altura da mesa faz com que o prato chegue ao nível do queixo; cada qual espalha seus cotovelos ao redor e, colocando o pulso junto à beirada do prato, faz com que por meio de um movimento hábil o conteúdo todo se lhe despeje pela boca. Por outros motivos além deste, não há grande limpeza nem boas maneiras, durante a refeição; os pratos não são trocados (...) por outro lado, os dedos são usados com tanta freqüência quanto o próprio garfo. Considera-se como prova incontestável de amizade alguém comer do prato do seu vizinho...”.
         O banho não era muito apreciado pelos homens. Os pés “são geralmente a parte mais limpa das pessoas. Os rostos, mãos, braços, peitos e pernas que, todos eles andam muito expostos em ambos os sexos, raramente recebem a bênção de uma lavada”. O homem com maior poder do Rio de Janeiro, o Vice-Rei Marques de Lavradio orgulhava-se de sua saúde afirmando conservar-se “bem sem sarnas nem perebas, moléstia que aqui padecem todos e só não tenho escapado aos bichinhos do pé, porque estes me têm perseguido barbaramente”.  
         O bicho-de-pé (Tunga penetrans) pertence à ordem das pulgas (Siphonaptera). Assim como outros insetos, a fêmea é que infecta o ser humano, penetrando na pele pelos pés e alimentando-se do sangue, podendo causar ulcerações graves e propiciando outras infecções. O inseto nativo da América do Sul, este ano também passou o veraneio no Cassino, pois casos de infectação foram registrados. O alemão Carl Seidler na década de 1820 retratou o pavor causado pelo bicho-de-pé: “Ainda me lembro bem que havia soldados que extraíam 30 a 40 saquinhos deste bicho, cheio de ovos, cada um dos quais saquinhos deixava um buraco do tamanho de uma ervilha, extração muito dolorosa e já no dia seguinte número igual se alojara, notadamente nas unhas e nos calcanhares. Para evitar isso, muitos de nós limitávamos a abrir o saquinho cheio daquela criatura do diabo e lhe deitávamos encima um pouco de mercúrio”. O desespero levava a colocação de mercúrio, uma substância extremamente tóxica para o organismo e que poderia levar a demência mental.
         A praga dos piolhos também infestava as cabeças! Após as refeições, para repugnância dos estrangeiros que relataram à cena, mulheres catavam avidamente os piolhos nas cabeças dos familiares... É preciso ressaltar que estas observações dos viajantes estrangeiros não devem ser tomadas de forma totalizadora, ou seja, que todos respeitavam rigorosamente os preceitos da “completa falta de higiene”. Possivelmente, havia exceções... Mas novos preceitos de higiene puxados pelo saber médico-higienista somente se disseminarão a partir da segunda metade do século 19. Porém, as práticas burguesas de cuidado e redescoberta com o corpo estarão em sintonia com a contramão deste processo de higienização: o rápido processo industrial que formará periferias e favelas em que as pessoas habitarão em péssimas condições de vida.
         Mary Del Priore conclui que observar as relações entre a higiene e o pudor permite refletir como os processos civilizatórios modelaram gradualmente as sensações corporais, aumentando seu refinamento, desenrolando suas sutilezas.  

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