Extraindo um bicho-de-pé. Água-tinta do artista inglês Augustus Earle (Cenas Brasileiras, 1822). Acervo: Biblioteca Nacional da Austrália. |
Assim
como outros temas, o campo da higiene também é dinâmico e as práticas mudam
conforme a sociedade. A historiadora Mary Del Priore (O Choque entre a
civilidade e o despudor In: História Viva
- O Olhar dos Viajantes 2. São Paulo: Duetto, 2010), analisou algumas
fontes históricas que nos levam há dois séculos. Segundo a autora, comer com as
mãos, arrotar, defecar ou urinar publicamente são hábitos banidos de nosso
convívio atual. Porém, as práticas em torno das necessidades fisiológicas,
assim como o uso da água e da indumentária, percorreram uma longa estrada antes
de ser adestrados. E a educação do corpo teve de se dobrar as fórmulas de
contenção, contrariando o desejo e os apelos da natureza.
Conforme
relatos de viajantes, as casas eram repugnantemente sujas e o chão não era
lavado. Para expulsar o mau cheiro das casas, queimava-se plantas odoríferas.
Os penicos estavam em toda parte e o conteúdo era jogado nas ruas e praias. O
inglês John Luccock ao visitar o Rio de Janeiro em 1809, queixou-se que nas
casas havia uma “tina destinada a receber todas as imundícies e refugos da
casa, que, nalguns casos, é levada e esvaziada diariamente, noutros, somente
uma vez por semana, de acordo com o número de escravos, seu asseio relativo e
pontualidade, porém sempre carregado, já sobremodo insuportável”.
A
maioria dos habitantes livres andava pelas ruas vestido com “casacas pretas,
velhas e coçadas”. Na cabeça “uma peruca empoada sobre que punham um enorme
chapéu armado já sebento, geralmente ornado de um tope”. Para Luccock, o número
de pessoas com aparência respeitável era pequeno. Nas refeições, as pessoas
“comem muito e com grande avidez e, apesar de embebidos em sua tarefa, ainda
acham tempo para fazer grande bulha. A altura da mesa faz com que o prato
chegue ao nível do queixo; cada qual espalha seus cotovelos ao redor e,
colocando o pulso junto à beirada do prato, faz com que por meio de um
movimento hábil o conteúdo todo se lhe despeje pela boca. Por outros motivos além
deste, não há grande limpeza nem boas maneiras, durante a refeição; os pratos
não são trocados (...) por outro lado, os dedos são usados com tanta freqüência
quanto o próprio garfo. Considera-se como prova incontestável de amizade alguém
comer do prato do seu vizinho...”.
O
banho não era muito apreciado pelos homens. Os pés “são geralmente a parte mais
limpa das pessoas. Os rostos, mãos, braços, peitos e pernas que, todos eles
andam muito expostos em ambos os sexos, raramente recebem a bênção de uma lavada”.
O homem com maior poder do Rio de Janeiro, o Vice-Rei Marques de Lavradio
orgulhava-se de sua saúde afirmando conservar-se “bem sem sarnas nem perebas,
moléstia que aqui padecem todos e só não tenho escapado aos bichinhos do pé,
porque estes me têm perseguido barbaramente”.
O
bicho-de-pé (Tunga penetrans)
pertence à ordem das pulgas (Siphonaptera).
Assim como outros insetos, a fêmea é que infecta o ser humano, penetrando na
pele pelos pés e alimentando-se do sangue, podendo causar ulcerações graves e
propiciando outras infecções. O inseto nativo da América do Sul, este ano
também passou o veraneio no Cassino, pois casos de infectação foram
registrados. O alemão Carl Seidler na década de 1820 retratou o pavor causado
pelo bicho-de-pé: “Ainda me lembro bem que havia soldados que extraíam 30 a 40 saquinhos deste bicho,
cheio de ovos, cada um dos quais saquinhos deixava um buraco do tamanho de uma
ervilha, extração muito dolorosa e já no dia seguinte número igual se alojara,
notadamente nas unhas e nos calcanhares. Para evitar isso, muitos de nós
limitávamos a abrir o saquinho cheio daquela criatura do diabo e lhe deitávamos
encima um pouco de mercúrio”. O desespero levava a colocação de mercúrio, uma
substância extremamente tóxica para o organismo e que poderia levar a demência
mental.
A
praga dos piolhos também infestava as cabeças! Após as refeições, para
repugnância dos estrangeiros que relataram à cena, mulheres catavam avidamente
os piolhos nas cabeças dos familiares... É preciso ressaltar que estas
observações dos viajantes estrangeiros não devem ser tomadas de forma
totalizadora, ou seja, que todos respeitavam rigorosamente os preceitos da “completa
falta de higiene”. Possivelmente, havia exceções... Mas novos preceitos de
higiene puxados pelo saber médico-higienista somente se disseminarão a partir
da segunda metade do século 19. Porém, as práticas burguesas de cuidado e
redescoberta com o corpo estarão em sintonia com a contramão deste processo de
higienização: o rápido processo industrial que formará periferias e favelas em
que as pessoas habitarão em péssimas condições de vida.
Mary
Del Priore conclui que observar as relações entre a higiene e o pudor permite
refletir como os processos civilizatórios modelaram gradualmente as sensações
corporais, aumentando seu refinamento, desenrolando suas sutilezas.
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