Planta da Barra do Rio Grande e adjacências. Engenheiro-Militar Rangel 1786. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense. |
Um documento
existente no Arquivo Histórico Ultramarino (RJ) datado de 10 de junho de 1698,
é uma das primeiras fontes que descrevem com alguma intimidade a Barra do Rio
Grande e sua vizinhança, enfatizando a importância em se viabilizar a ocupação
lusitana das terras ao sul da povoação de Laguna (Santa Catarina). Seu autor é
Manuel Jordão da Silva, que redigiu uma súplica ao Rei de Portugal, D. Afonso
Henriques, pedindo apoio para promover a ocupação sistemática do local onde se
assenta a cidade do Rio Grande. O autor acreditava na existência de ouro no Rio
Grande do Sul e realizou uma viagem de 14 meses identificando os locais
propícios para o povoamento. Manuel Jordão da Silva, se ofereceu ao Rei para
“povoar o Rio Grande, pois, se há terra de promissão no mundo, é aquela, e nele
fazer a Cidade de São Pedro”.
Mesmo não sendo atendido pelo monarca, o
aventureiro antecipou o que só viria a ocorrer quase quatro décadas depois com
a ocupação militar da Barra do Rio Grande. A chamada por Jordão da Silva Cidade de São Pedro só começou sua
história oficial em 1737 e até hoje está em construção na dialética
contraditória da promissão, entre o ouro e a areia, ou no tempo atual, entre a
água que a circunda e o petróleo do distante pré-sal.
Enquanto
primeira experiência de povoamento luso-brasileiro no Sul do Brasil, Rio Grande
é uma cidade que passou pelos períodos históricos do Brasil Colônia, Império e
República. A trajetória de mais de dois séculos e meio propiciou múltiplas
vivências frente ao processo histórico mundial. Rio Grande surgiu quando os
laços de subjugação ditados pelo pacto colonial entre Portugal e Brasil ainda
vigoravam. A política de expansão territorial e econômica conduziu os
portugueses até o estuário platino, onde fundaram a Colônia do Sacramento
(1680) e almejavam a definição de uma fronteira lusitana em terras
reivindicadas pela Espanha. Rio Grande nasce enquanto desdobramento militar
deste momento de confronto no Prata, inserindo-se imediatamente nas motivações
ligadas a guerra. A Comandância Militar e o povoamento civil dinamizaram-se no
ritmo do enfrentamento luso-espanhol e no crescimento das atividades portuárias
ligadas à pecuária e à charqueada ainda no século 18.
Nas
primeiras décadas do século 19,
a difusão do capitalismo comercial gerenciado pela ótica
do liberalismo, provocou um desenvolvimento econômico de circulação de
mercadorias através do Porto do Rio Grande. O Rio Grande do Sul passou de
Capitania para Província em 1824, e o crescimento econômico e populacional
desencadeou um aumento na demanda interna e externa de produtos associados às
inovações tecnológicas. Rio Grande insere-se, na segunda metade do século
passado - consolidado o comércio de exportação e importação -, nos quadros da
modernidade urbana através da edificação de prédios administrativos, como o da
Alfândega, e prédios residenciais, como o Sobrado dos Azulejos.
O desenvolvimento
do capitalismo industrial apresentou na cidade um caráter pioneiro e de grande
expansão entre 1873 e o final da Primeira Guerra Mundial, em 1918. A cidade das chaminés esteve associada a
experiências urbano-industrial de grande envergadura como o complexo da Fábrica Rheingantz, da tecnologia ligada
à carne frigorificada da Swift,
das indústrias pesqueiras, das muitas
indústrias de bens de consumo não duráveis ligada ao ramo alimentício como é o
caso da Leal Santos que era atuante
no mercado nacional de alimentos. Em meio às transformações industriais do
início do século 20, ocorreu a consolidação das práticas burguesas e também das
organizações operárias - o confronto entre capital e trabalho -, cuja imprensa
operária local deixou importantes fontes para compreender o período.
O
Imperialismo, enquanto expansão de capital e tecnologia, aqui se expressou nas
duas primeiras décadas do século 20, através de duas obras de engenharia de
grande envergadura dirigidas pela Companhia Francesa: a construção dos Molhes
da Barra e do Porto Novo, trazendo a alta tecnologia expressa nos maquinários
gigantescos, os Titans.
Crescimento,
diversificação e as crises econômicas marcaram os últimos 100 anos da cidade
que continua a viver na dinâmica entre o estatal e o privado. De um lado o
papel histórico de defesa do universo bragantino e de dependência do capital
associado ao serviço público estadual e federal. De outro, o capital privado,
ligado à indústria química, de fertilizante e alimentícia em atividade nos
terminais do Superporto, além dos terminais de grãos. Entre o estatal e o
privado a cidade teve o seu processo histórico ligado às expansões e retrações
da economia brasileira, a decadência de muitas indústrias e o desemprego, ao
êxodo rural da porção sul e as difíceis condições de sobrevivência de grande
parte da população na periferia da cidade. Processo de expansão populacional e
urbana historicamente recorrente desde o processo de industrialização, ainda no
final do século 19, que se intensificou com as obras da Companhia Francesa e da
expansão industrial na República Velha; e quando da implantação do Distrito
Industrial com a criação do Superporto do Rio Grande na década de 1970.
Hoje, este
processo assume uma dinâmica jamais vista com uma perspectiva de crescimento
populacional quase impensável para os padrões tímidos da infraestrutura urbana
disponível numa área ecologicamente fragilizada da Restinga do Rio Grande. É
claro que todo “empreiteiro” dirá que “primeiro vem à bagunça para depois as
coisas se ajeitarem voltando a ser o que eram”. Certamente que o resultado
obtido não será um retorno ao passado até porque o espaço e o tempo são
dialéticos, a perenidade aparente desaparece quando aportes bilionários
redefinem a espacialidade na ótica do capitalismo do “paradigma pré-sal”. E é
fundamental que se diga que a interação dos homens no espaço e no tempo resulta
na cultura humana, que é uma configuração possível desta interação e não um
modelo pronto e acabado dissociado do conflito ou de uma dimensão frustrante
para parte dos agentes sociais.
Para os que
se sentem “enjeitados do antigo”, o “novo” gestado enquanto fruto do capital
parece ser o “horizonte de realizações”, que pode se expressar inclusive como
desprezo ao antigo ou como excesso de otimismo quanto ao futuro, através da
apologia do crescimento. De fato a cada reconfiguração da espacialidade urbana
e das estratégias de reprodução do cotidiano ficam algumas perguntas básicas para
a existência humana sintetizadas na palavra utópica “qualidade de vida”: como
ficará a esfera da saúde, da segurança, da educação, das obras públicas, da
logística do deslocamento urbano, das atividades culturais, da memória e do
patrimônio...
A memória
social dos séculos já construídos e os aportes culturais de novas identidades
multifacetadas que passam a ocupar espaços de historicidade local apresentam
uma dimensão de imprevisibilidade numa projeção do tempo futuro. A morte do
antigo e o nascimento do novo; um novo que nasce na acefalia do sentido e o
antigo que possui a tradição dos sentidos que se esvaem. Da Barra do Rio Grande
fundada na solidão do vento e da areia do ano de 1698. Do encobrimento da areia
pelo concreto, pelas empresas aí instaladas no último meio século. Do
descolorimento da areia pela poluição emanada das chaminés que acidificam o
solo local para fertilizarem solos distantes, séculos se passaram de
experiências sociais. Novas questões se colocam e novos desafios se impõem
neste diálogo do presente com o futuro.
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