Porto do Rio Grande em 1908

Porto do Rio Grande em 1908

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

A TERRA DA PROMISSÃO

Planta da Barra do Rio Grande e adjacências. Engenheiro-Militar Rangel 1786. Acervo: Biblioteca Rio-Grandense.

Um documento existente no Arquivo Histórico Ultramarino (RJ) datado de 10 de junho de 1698, é uma das primeiras fontes que descrevem com alguma intimidade a Barra do Rio Grande e sua vizinhança, enfatizando a importância em se viabilizar a ocupação lusitana das terras ao sul da povoação de Laguna (Santa Catarina). Seu autor é Manuel Jordão da Silva, que redigiu uma súplica ao Rei de Portugal, D. Afonso Henriques, pedindo apoio para promover a ocupação sistemática do local onde se assenta a cidade do Rio Grande. O autor acreditava na existência de ouro no Rio Grande do Sul e realizou uma viagem de 14 meses identificando os locais propícios para o povoamento. Manuel Jordão da Silva, se ofereceu ao Rei para “povoar o Rio Grande, pois, se há terra de promissão no mundo, é aquela, e nele fazer a Cidade de São Pedro”.
 Mesmo não sendo atendido pelo monarca, o aventureiro antecipou o que só viria a ocorrer quase quatro décadas depois com a ocupação militar da Barra do Rio Grande. A chamada por Jordão da Silva Cidade de São Pedro só começou sua história oficial em 1737 e até hoje está em construção na dialética contraditória da promissão, entre o ouro e a areia, ou no tempo atual, entre a água que a circunda e o petróleo do distante pré-sal.
Enquanto primeira experiência de povoamento luso-brasileiro no Sul do Brasil, Rio Grande é uma cidade que passou pelos períodos históricos do Brasil Colônia, Império e República. A trajetória de mais de dois séculos e meio propiciou múltiplas vivências frente ao processo histórico mundial. Rio Grande surgiu quando os laços de subjugação ditados pelo pacto colonial entre Portugal e Brasil ainda vigoravam. A política de expansão territorial e econômica conduziu os portugueses até o estuário platino, onde fundaram a Colônia do Sacramento (1680) e almejavam a definição de uma fronteira lusitana em terras reivindicadas pela Espanha. Rio Grande nasce enquanto desdobramento militar deste momento de confronto no Prata, inserindo-se imediatamente nas motivações ligadas a guerra. A Comandância Militar e o povoamento civil dinamizaram-se no ritmo do enfrentamento luso-espanhol e no crescimento das atividades portuárias ligadas à pecuária e à charqueada ainda no século 18.
Nas primeiras décadas do século 19, a difusão do capitalismo comercial gerenciado pela ótica do liberalismo, provocou um desenvolvimento econômico de circulação de mercadorias através do Porto do Rio Grande. O Rio Grande do Sul passou de Capitania para Província em 1824, e o crescimento econômico e populacional desencadeou um aumento na demanda interna e externa de produtos associados às inovações tecnológicas. Rio Grande insere-se, na segunda metade do século passado - consolidado o comércio de exportação e importação -, nos quadros da modernidade urbana através da edificação de prédios administrativos, como o da Alfândega, e prédios residenciais, como o Sobrado dos Azulejos.
O desenvolvimento do capitalismo industrial apresentou na cidade um caráter pioneiro e de grande expansão entre 1873 e o final da Primeira Guerra Mundial, em 1918. A cidade das chaminés esteve associada a experiências urbano-industrial de grande envergadura como o complexo da Fábrica Rheingantz, da tecnologia ligada à carne frigorificada da Swift, das  indústrias pesqueiras, das muitas indústrias de bens de consumo não duráveis ligada ao ramo alimentício como é o caso da Leal Santos que era atuante no mercado nacional de alimentos. Em meio às transformações industriais do início do século 20, ocorreu a consolidação das práticas burguesas e também das organizações operárias - o confronto entre capital e trabalho -, cuja imprensa operária local deixou importantes fontes para compreender o período.
O Imperialismo, enquanto expansão de capital e tecnologia, aqui se expressou nas duas primeiras décadas do século 20, através de duas obras de engenharia de grande envergadura dirigidas pela Companhia Francesa: a construção dos Molhes da Barra e do Porto Novo, trazendo a alta tecnologia expressa nos maquinários gigantescos, os Titans.
Crescimento, diversificação e as crises econômicas marcaram os últimos 100 anos da cidade que continua a viver na dinâmica entre o estatal e o privado. De um lado o papel histórico de defesa do universo bragantino e de dependência do capital associado ao serviço público estadual e federal. De outro, o capital privado, ligado à indústria química, de fertilizante e alimentícia em atividade nos terminais do Superporto, além dos terminais de grãos. Entre o estatal e o privado a cidade teve o seu processo histórico ligado às expansões e retrações da economia brasileira, a decadência de muitas indústrias e o desemprego, ao êxodo rural da porção sul e as difíceis condições de sobrevivência de grande parte da população na periferia da cidade. Processo de expansão populacional e urbana historicamente recorrente desde o processo de industrialização, ainda no final do século 19, que se intensificou com as obras da Companhia Francesa e da expansão industrial na República Velha; e quando da implantação do Distrito Industrial com a criação do Superporto do Rio Grande na década de 1970.
Hoje, este processo assume uma dinâmica jamais vista com uma perspectiva de crescimento populacional quase impensável para os padrões tímidos da infraestrutura urbana disponível numa área ecologicamente fragilizada da Restinga do Rio Grande. É claro que todo “empreiteiro” dirá que “primeiro vem à bagunça para depois as coisas se ajeitarem voltando a ser o que eram”. Certamente que o resultado obtido não será um retorno ao passado até porque o espaço e o tempo são dialéticos, a perenidade aparente desaparece quando aportes bilionários redefinem a espacialidade na ótica do capitalismo do “paradigma pré-sal”. E é fundamental que se diga que a interação dos homens no espaço e no tempo resulta na cultura humana, que é uma configuração possível desta interação e não um modelo pronto e acabado dissociado do conflito ou de uma dimensão frustrante para parte dos agentes sociais.
Para os que se sentem “enjeitados do antigo”, o “novo” gestado enquanto fruto do capital parece ser o “horizonte de realizações”, que pode se expressar inclusive como desprezo ao antigo ou como excesso de otimismo quanto ao futuro, através da apologia do crescimento. De fato a cada reconfiguração da espacialidade urbana e das estratégias de reprodução do cotidiano ficam algumas perguntas básicas para a existência humana sintetizadas na palavra utópica “qualidade de vida”: como ficará a esfera da saúde, da segurança, da educação, das obras públicas, da logística do deslocamento urbano, das atividades culturais, da memória e do patrimônio...  
A memória social dos séculos já construídos e os aportes culturais de novas identidades multifacetadas que passam a ocupar espaços de historicidade local apresentam uma dimensão de imprevisibilidade numa projeção do tempo futuro. A morte do antigo e o nascimento do novo; um novo que nasce na acefalia do sentido e o antigo que possui a tradição dos sentidos que se esvaem. Da Barra do Rio Grande fundada na solidão do vento e da areia do ano de 1698. Do encobrimento da areia pelo concreto, pelas empresas aí instaladas no último meio século. Do descolorimento da areia pela poluição emanada das chaminés que acidificam o solo local para fertilizarem solos distantes, séculos se passaram de experiências sociais. Novas questões se colocam e novos desafios se impõem neste diálogo do presente com o futuro.  

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