Porto do Rio Grande em 1908

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quinta-feira, 31 de outubro de 2019

A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO AMOR MATERNO


 
Família da elite brasileira no período colonial. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
     A investigação histórica não apenas busca objetos que levem a conhecimentos sobre a política e a economia. A História possibilita observar às sociedades humanas ao longo do tempo desconstruindo a noção de absoluto e de suposto senso comum nas diferentes expressões culturais no presente. Exatamente isto! O tempo presente não é o tempo passado. Às construções imaginárias contemporâneas tem trajetórias de tênue equilíbrio cuja verdade sempre faz parte de um processo arbitrário que o aparato jurídico faz valer como verdade. Ou seja, práticas culturais e relações de gênero são dinâmicos no passado, construídos no presente e normatizados no aparato político-jurídico de cada sociedade. A verdade absoluta é sempre questionável e os discursos são representações da realidade.
         Em termos práticos podemos colocar as mais diferentes questões e não obtermos respostas tão óbvias quanto o senso comum poderia indicar. Uma destas questões diz respeito ao amor materno como um fim em si mesmo, inquestionável e de milenar duração. O que o conhecimento histórico pode nos dizer sobre isto?
         A noção de funções e papéis sociais são representações. Conforme Pichón-Rivière estas noções constituem um imaginário social dado por ideias, imagens e estereótipos, isto é, representações simbólicas compartilhadas com certa homogeneidade pelas pessoas da época histórica de que se trata. Mas no campo histórico, como situar esta teorização?        
Elisabeth Badinter no livro Um Amor conquistado: o mito do amor materno (RJ, Nova Fronteira, 1985), ao investigar a evolução das atitudes maternas na França do século 18 fez uma surpreendente descoberta: “1780: o tenente de polícia Lenoir constata, não sem amargura, que das 21 mil crianças que nascem anualmente em Paris, apenas mil são amamentadas pela mãe. Outras mil, privilegiadas, são amamentadas por amas-de-leite residentes. Todas as outras deixam o seio materno para serem criadas no domicílio mais ou menos distante de uma ama mercenária. São numerosas as crianças que morrerão sem ter jamais conhecido o olhar da mãe. As que voltarão, alguns anos mais tarde, ao teto familiar, descobrirão uma estranha: aquela que lhes deu à luz. Nada prova que esses reencontros tenham sido vividos com alegria, nem que a mãe tenha se apressado em saciar uma necessidade de ternura que hoje nos parece natural.”
Badinter afirma que o amor materno foi por tanto tempo concebido como instinto e comportamento que é parte da natureza da mulher, seja qual for o tempo ou o meio que a cercam. “Aos nossos olhos, toda mulher, ao se tornar mãe, encontra em si mesma todas as respostas à sua nova condição. Como se uma atividade pré-formada, automática e necessária esperasse apenas a ocasião de se exercer. Sendo a procriação natural, imaginamos que ao fenômeno biológico e fisiológico da gravidez deve corresponder determinada atitude maternal”.
Para a autora o amor materno não é inato mas adquirido ao longo dos dias passados ao lado do filho e pelos cuidados dispensados. O amor materno não constitui um sentimento inerente à condição de mulher, ele não é um determinismo, mas algo que se adquire. Ele é um produto da evolução social desde princípios do século 19, quando a nova ética burguesa e a sociedade patriarcal burguesa se tornam hegemônicas, pois antes disto, nos séculos 17 e 18 o próprio conceito do amor da mãe aos filhos era outro: as crianças eram normalmente entregues, após o nascimento, às amas, para que as criassem, e só voltavam ao lar depois dos cinco anos. Dessa maneira, como todos os sentimentos humanos, ele varia de acordo com as mudanças socioeconômicas da história.
Na investigação levantada por Balandier, se questiona se o amor materno é um instinto, uma tendência feminina inata, ou é um comportamento social, variável de acordo com a época e os costumes. “A variabilidade desse sentimento, depende da cultura, das ambições ou das frustrações da mãe. O amor materno é um sentimento humano como outro qualquer e como tal incerto, frágil e imperfeito, que está ligado à forma como cada sociedade concebe a maternidade. Contrariando a crença generalizada em nossos dias, ele não está profundamente inscrito na natureza feminina”. Observando-se a evolução das atitudes maternas, verifica-se que o interesse e a dedicação à criança não existiram em todas as épocas e em todos os meios sociais. “O Amor, no reino humano, não é simplesmente uma norma. Nele intervém numerosos fatores que não a respeitam. Ao contrário do reino animal, imerso na natureza e submetido ao seu determinismo, o humano — no caso, a mulher — é um ser histórico, o único vivente dotado da faculdade de simbolizar, o que o põe acima da esfera propriamente animal. Esse ser de desejo é sempre particular e diferente de todos os outros. Que os biólogos me perdoem a audácia, mas sou dos que pensam que o inconsciente da mulher predomina amplamente sobre os seus processos hormonais. Aliás, sabemos que a amamentação no seio e os gritos do recém-nascido estão longe de provocar em todas as mães as mesmas atitudes. Parece-me que devemos deixar a universalidade e a necessidade aos animais e admitir que a contingência e o particular são o apanágio do homem. Hoje, uma mulher pode desejar não ser mãe: trata-se de uma mulher normal que exerce a sua liberdade, ou de uma enferma no que concerne às normas da natureza? Não teremos, com excessiva freqüência, tendência a confundir determinismo social e imperativo biológico? Quanto a mim, estou convencida de que o amor materno existe desde a origem dos tempos, mas não penso que exista necessariamente em todas as mulheres, nem mesmo que a espécie só sobreviva graças a ele. Primeiro, qualquer pessoa que não a mãe (o pai, a ama, etc.) pode maternar uma criança. Segundo, não é só o amor que leva a mulher a cumprir seus deveres maternais. A moral, os valores sociais, ou religiosos, podem ser incitadores tão poderosos quanto o desejo da mãe.”.
Nesta interpretação, o amor materno não é um instinto, não é dado, nem é garantido de antemão, mas exige empenho e investimento fundado numa relação amorosa e saudável com os filhos. Felizmente o amor materno existe, não enquanto um produto universal feminino, mas como uma construção que depende de cada mulher: pode estar ausente por opção ou não se expressa por fatores inerentes à personalidade psicossocial.
Este é um tema polêmico mas extremamente atual frente às novas demandas de um planeta cuja população cresce vertiginosa e irresponsavelmente, aproximando-se dos 7,6 bilhões de habitantes. O Brasil, apenas nos últimos 10 anos, aumentou em 20 milhões a sua população tornando obsoleta a música cantada na Copa de 1970: “90 milhões em ação...” Agora somos 190 milhões em ação... Entre a procriação acelerada e o amor materno, a ciência histórica surge como uma ferramenta que investiga o passado com o intuito de refletir sobre o presente. 

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