Em
termos práticos podemos colocar as mais diferentes questões e não obtermos
respostas tão óbvias quanto o senso comum poderia indicar. Uma destas questões
diz respeito ao amor materno como um fim em si mesmo, inquestionável e de milenar
duração. O que o conhecimento histórico pode nos dizer sobre isto?
A
noção de funções e papéis sociais são representações. Conforme Pichón-Rivière
estas noções constituem um imaginário social dado por ideias, imagens e estereótipos,
isto é, representações simbólicas compartilhadas com certa homogeneidade pelas
pessoas da época histórica de que se trata. Mas no campo histórico, como situar
esta teorização?
Elisabeth Badinter no livro Um Amor conquistado: o mito do amor materno
(RJ, Nova Fronteira, 1985), ao investigar a evolução das atitudes maternas na
França do século 18 fez uma surpreendente descoberta: “1780: o tenente de
polícia Lenoir constata, não sem amargura, que das 21 mil crianças que nascem
anualmente em Paris, apenas mil são amamentadas pela mãe. Outras mil,
privilegiadas, são amamentadas por amas-de-leite residentes. Todas as outras
deixam o seio materno para serem criadas no domicílio mais ou menos distante de
uma ama mercenária. São numerosas as crianças que morrerão sem ter jamais
conhecido o olhar da mãe. As que voltarão, alguns anos mais tarde, ao teto
familiar, descobrirão uma estranha: aquela que lhes deu à luz. Nada prova que
esses reencontros tenham sido vividos com alegria, nem que a mãe tenha se
apressado em saciar uma necessidade de ternura que hoje nos parece natural.”
Badinter afirma que o amor materno foi por
tanto tempo concebido como instinto e comportamento que é parte da natureza da
mulher, seja qual for o tempo ou o meio que a cercam. “Aos nossos olhos, toda
mulher, ao se tornar mãe, encontra em si mesma todas as respostas à sua nova
condição. Como se uma atividade pré-formada, automática e necessária esperasse
apenas a ocasião de se exercer. Sendo a procriação natural, imaginamos que ao
fenômeno biológico e fisiológico da gravidez deve corresponder determinada
atitude maternal”.
Para a autora o amor materno não é inato mas
adquirido ao longo dos dias passados ao lado do filho e pelos cuidados
dispensados. O amor materno não constitui um sentimento inerente à condição de
mulher, ele não é um determinismo, mas algo que se adquire. Ele é um produto da
evolução social desde princípios do século 19, quando a nova ética burguesa e a
sociedade patriarcal burguesa se tornam hegemônicas, pois antes disto, nos
séculos 17 e 18 o próprio conceito do amor da mãe aos filhos era outro: as
crianças eram normalmente entregues, após o nascimento, às amas, para que as
criassem, e só voltavam ao lar depois dos cinco anos. Dessa maneira, como todos
os sentimentos humanos, ele varia de acordo com as mudanças socioeconômicas da
história.
Na
investigação levantada por Balandier, se questiona se o amor materno é um
instinto, uma tendência feminina inata, ou é um comportamento social, variável
de acordo com a época e os costumes. “A variabilidade desse sentimento, depende
da cultura, das ambições ou das frustrações da mãe. O amor materno é um
sentimento humano como outro qualquer e como tal incerto, frágil e imperfeito,
que está ligado à forma como cada sociedade concebe a maternidade. Contrariando
a crença generalizada em nossos dias, ele não está profundamente inscrito na
natureza feminina”. Observando-se a evolução das atitudes maternas, verifica-se
que o interesse e a dedicação à criança não existiram em todas as épocas e em
todos os meios sociais. “O Amor, no reino humano, não é simplesmente uma norma.
Nele intervém numerosos fatores que não a respeitam. Ao contrário do reino
animal, imerso na natureza e submetido ao seu determinismo, o humano — no caso,
a mulher — é um ser histórico, o único vivente dotado da faculdade de
simbolizar, o que o põe acima da esfera propriamente animal. Esse ser de desejo
é sempre particular e diferente de todos os outros. Que os biólogos me perdoem
a audácia, mas sou dos que pensam que o inconsciente da mulher predomina
amplamente sobre os seus processos hormonais. Aliás, sabemos que a amamentação
no seio e os gritos do recém-nascido estão longe de provocar em todas as mães
as mesmas atitudes. Parece-me que devemos deixar a universalidade e a
necessidade aos animais e admitir que a contingência e o particular são o
apanágio do homem. Hoje, uma mulher pode desejar não ser mãe: trata-se de uma
mulher normal que exerce a sua liberdade, ou de uma enferma no que concerne às
normas da natureza? Não teremos, com excessiva freqüência, tendência a
confundir determinismo social e imperativo biológico? Quanto a mim, estou
convencida de que o amor materno existe desde a origem dos tempos, mas não
penso que exista necessariamente em todas as mulheres, nem mesmo que a espécie
só sobreviva graças a ele. Primeiro, qualquer pessoa que não a mãe (o pai, a
ama, etc.) pode maternar uma criança.
Segundo, não é só o amor que leva a mulher a cumprir seus deveres maternais. A moral, os valores sociais, ou religiosos,
podem ser incitadores tão poderosos quanto o desejo da mãe.”.
Nesta interpretação, o amor materno não é um
instinto, não é dado, nem é garantido de antemão, mas exige empenho e
investimento fundado numa relação amorosa e saudável com os filhos. Felizmente
o amor materno existe, não enquanto um produto universal feminino, mas como uma
construção que depende de cada mulher: pode estar ausente por opção ou não se
expressa por fatores inerentes à personalidade psicossocial.
Este é um tema polêmico mas extremamente
atual frente às novas demandas de um planeta cuja população cresce vertiginosa
e irresponsavelmente, aproximando-se dos 7,6 bilhões de habitantes. O Brasil,
apenas nos últimos 10 anos, aumentou em 20 milhões a sua população tornando
obsoleta a música cantada na Copa de 1970: “90 milhões em ação...” Agora somos
190 milhões em ação... Entre
a procriação acelerada e o amor materno, a ciência histórica surge como uma
ferramenta que investiga o passado com o intuito de refletir sobre o
presente.
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