Caling (1896). Autor William-Adolphe_Bouguereau. |
As crianças
ao longo da História da sociedade ocidental sempre foram vistas dotadas de uma
natureza singular e criadora? No texto a seguir vamos constatar que esta visão
da infância é relativamente recente.
Um dos
primeiros olhares da trajetória histórica desta questão foi feita por Philippe
Áries História social da criança e da família. (Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1973), que fez um estudo da iconografia da era medieval até a
moderna, observando as representações da infância na Europa Ocidental, com
ênfase na França. Ele constatou do “não lugar” da criança nas representações
artísticas. Na Idade Média, não ocorria uma separação clara entre ser criança e
ser adulto. As crianças recebiam tratamento diferenciado apenas nos primeiros
anos de vida, por dependeram do cuidado das mães ou amas para a sobrevivência.
A transição do desmame era tardio e o ingresso no mundo dos adultos era
abrupto, com o contato com os mais velhos para a aprendizagem de ofícios que
serviriam para a sobrevivência. Até o século XII, as crianças raramente eram
retratadas nos quadros e quando ocorria, era com trajes de adultos. A alta
mortalidade infantil poderia explicar a pouca atenção dada às crianças. A
chance de morrerem nos dois primeiros anos de vida era alta, o que reduzia a
noção de apego, em especial, pela morte abrandada pelo imaginário religioso ligado
aos anjinhos que tinham o seu lugar
garantido no céu. O sociólogo Gilberto Freire destacou a banalização da morte
infantil no Brasil em seu livro Casa
Grande e Senzala: “A verdade é que
perder um filho pequeno nunca foi, para a família patriarcal a mesma dor
profunda que para uma família de hoje. O anjo ia para o céu. Para junto de
Nosso Senhor, insaciável em cercar-se de anjos”.
Para o historiador Philipe Áries, as crianças
eram tratadas como adultos em tamanho menor. Não havia vestimentas específicas
e os assuntos e brincadeiras sexuais envolviam crianças e adultos. A noção de
privacidade era frágil ou inexistente: “Na sociedade medieval o sentimento de
infância, não existia – o que não quer dizer que as crianças fossem
negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimento da infância não
significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da
particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a
criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia”. Antes do século
XVI, a consciência social não admite a existência autônoma da infância como uma
categoria diferenciada do gênero humano. Passado o estrito período de
dependência física da mãe, as crianças se incorporavam ao mundo dos adultos. No
Brasil colonial e imperial, o mundo do trabalho começava muito cedo para a
maioria das crianças, àquelas que não faziam parte dos setores mais
privilegiados. O trabalho começava aos seis anos de idade para as crianças
brancas pobres e para as crianças escravas.
O conceito de infância irá se desenvolver a
partir dos séculos XVI a XVIII, através da lenta e gradual escolarização. Este
processo é que evidenciará a necessidade da compreensão das especificidades
desta fase do desenvolvimento. O intuito mais amplo era o de ensinar, moralizar
e disciplinar as crianças. O processo de separação entre crianças e adultos tem
início junto com as bases da privacidade. Assuntos de adultos deveriam ser
mantidos em segredo frente à imaturidade infantil para compreendê-los. A
construção do conceito de infância terá como conseqüência uma à incapacidade
plena (social e, posteriormente jurídica) e, os mecanismos de
proteção-repressão das crianças. As ideias de proteção, amparo e dependência
fazem surgir à infância, buscando-se formas educacionais para formar adultos
socialmente aceitos. Disciplina e difusão da cultura passam a ser essenciais e
a dimensão infantil do lúdico fica para segundo plano. Um ditado da época
afirmava; “Quem não usa a vara, odeia seu filho. Com mais amor e temor castiga
o pai ao filho mais querido. Assim como uma espora aguçada faz o cavalo correr,
também uma vara faz a criança aprender”.
Observamos que na maior parte da história
ocidental, as crianças não foram consideradas como uma categoria a parte do
mundo dos adultos. Mantinham contato precoce com todo o imaginário e práticas
cotidianas ligadas a miséria e a opulência dos diferentes segmentos sociais. Em
nível de trabalho ou sexualidade, a precocidade era evidente. Em nível de
intensa fertilidade, a alta mortalidade era vista de forma banal e justificada
pelo imaginário religioso. A separação do mundo da infância do mundo dos
adultos pautou-se pela imposição da autoridade e a imposição da censura, tendo
como veículo fundamental o processo educativo rígido. Escolas pedagógicas
avançaram muito a discussão e as práticas educativas, esfacelando grande parte
destes referencias nascidos no século XVII ligadas ao rigor no acompanhamento
educativo, ao mesmo tempo buscando preservar o mundo da infância e exigindo
olhares diferenciados aos educandos.
Nas últimas décadas do século XX acelerou o
processo em que o aparato jurídico e pedagógico da um estatuto privilegiado
para o mundo infantil que deveria preservar suas especificidades de faixa
etária. Mas o processo da informação e consumo de ideias e produtos chegou a
situações incontroláveis através das multimídias disponíveis como a televisão e
a internet. Entre a participação direta das crianças na vida familiar até o
cerceamento desta participação, hoje se assiste o acesso ilimitado a informação
pelas crianças no contexto da globalização, sem a tutoria de um adulto. O
mercado de trabalho e do consumo levou às mulheres a incorporação neste projeto,
rompendo a barreira do espaço da casa, da “rainha do lar”, que vive,
teoricamente, para zelar pelos filhos. Por questões de mentalidade e não de
realidade do processo histórico, a mulher é a referência social da tutela dos
filhos, mas sendo a guardiã da separação entre a infância e a idade adulta,
este papel fica comprometido. Ou seja, a dinâmica da construção da infância é
histórica, constituída por bases materiais e imateriais que definem
diferenciados papéis sociais dependendo de cada sociedade. Assunto de extrema
relevância pois para falar do óbvio, a
sociedade do futuro é aquela que se constrói a partir do tempo presente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário