Primeira planta da Barra do Rio Grande datada de 1737 e feita por José da Silva Paes. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. |
“Averiguada finalmente a penosa e
desconhecida barra, que pelos grandes parcéis de areias tem três diferentes
entradas, uma ao sul e outras ao norte e sueste, deram fundo neste por mais
capaz, e segura, mandando o Brigadeiro [Silva Paes] que o ajudante Pedro de
Matos saltasse na costa com a gente de sua embarcação e marchasse por terra,
buscando na distância de três léguas o alojamento do Coronel. Com alguns
oficiais embarcou no escaler da nau e passou o banco com notável risco,
chegando perto da noite à estacada, onde foi recebido com a descarga de três
peças de campanha e trinta e seis armas, que unicamente existiam com Cristóvão
Pereira naquele sítio”. Simão Pereira de Sá – século XVIII.
Para entender o
povoamento ibérico de orientação lusitana no Rio Grande do Sul e na atual
cidade do Rio Grande é necessário recuar ao século XVIII e focalizar o
surgimento de uma Colônia portuguesa junto ao Rio da Prata. Por quase um século, entre 1680 e 1777,
Portugal e Espanha mantiveram uma tensa relação na tentativa de garantir para
os seus domínios uma grande fortificação militar e colonizatória situada na
margem esquerda do Rio da Prata: a Colônia do Sacramento. Esta experiência
histórica constitui um capítulo fundamental do surgimento do Rio Grande do Sul
português e de uma série de episódios deflagrados a partir do confronto entre
portugueses, espanhóis, colonos, índios missioneiros e charruas, no espaço
ocupado pela Colônia.
O povoamento na atual
cidade do Rio Grande emergiu neste contexto platino de belicosidades que
definiram as motivações para o estabelecimento de padrões de sobrevivência e
civilidade. Foi durante a terceira campanha do cerco espanhol à Sacramento que
o Conselho Ultramarino Português autorizou o brigadeiro José da Silva Paes a
construir fortificações, no já identificado canal de São Pedro, com o objetivo
de garantir um espaço para apoio militar à Colônia e também para o deslocamento
de colonos que desejassem fugir ao cerco.
Entre Rio Grande e Sacramento são aproximadamente 700 quilômetros, e com
as grandes dificuldades em manter a posição, a Vila do Rio Grande de São Pedro
assumiu, paulatinamente, o papel de estabelecer o controle português no extremo
sul do Brasil. Por esta importância estratégica, foi um alvo preferencial da
Espanha.
Argumentações
favoráveis à ocupação da Barra do Rio Grande de São Pedro foram formuladas pelo
Brigadeiro José da Silva Paes ao Conselho Ultramarino Português em 1735 frente à
tensa situação de cerco espanhol à Colônia do Sacramento do Rio da Prata. Em
parecer de 2 de janeiro de 1736, o Conselho seguiu as orientações de Silva Paes
e projetou a edificação da fortificação e povoação da parte sul do canal
viabilizados através de investimentos da Fazenda Real. Com a conjuntura
internacional favorável ao empreendimento, a Coroa Espanhola buscou defender as
posições junto a Buenos Aires, Montevidéu e Sacramento contra um avanço
lusitano no Prata. A Espanha não tinha condições de promover um rápido
contra-ataque frente à ocupação militar do canal, o que garantiu aos
portugueses a fortificação do Rio Grande e sua extensão até o Chuí.
A ocupação e
fortificação da Barra do Rio Grande foi fator de grande satisfação para Silva
Paes que despendeu todos os esforços no êxito desta empresa, afinal, através da
Comandância Militar do Rio Grande, ficava garantida a posse de todo o
território, que se estendia até Laguna (Santa Catarina), barrados os espanhóis
em suas pretensões de ocupar este ponto estratégico, ficando sob controle o
acesso à imensa rede hidrográfica que penetrava para o interior a partir da
Laguna dos Patos. Para o sul, era possível socorrer a Colônia do Sacramento em
tempo de guerra e, em tempo de paz, incrementava-se aquela povoação e os
negócios ali realizados. O novo estabelecimento permitia, dessa forma, disputar
a posse dos imensos rebanhos platinos e, ainda, a participação direta no
comércio de cavalos e mulas, garantindo o abastecimento dos centros
consumidores do país.
Silva Paes
orientou um esquema defensivo da região ocupada, estendendo-se para o sul onde
construiu o Forte de São Miguel, além de guardas (Chuí, Taim, Albardão e Passo
da Mangueira), do Forte Jesus-Maria-José (cuja imagem sempre carregou consigo
até a morte) e da Fortificação de Nossa Senhora da Conceição do Estreito. A
efetiva resposta a esta ocupação,foi dada pelos espanhóis em 1763, quando a
conjuntura foi propicia a uma investida do Governador de Buenos Aires D. Pedro
Cevallos, acarretando na retirada lusitana das posições ocupadas na margem sul
do canal.
Os agentes históricos espanhóis, portugueses,
indígenas, negros e miscigenados, envolveram-se numa trama de fronteiras e
conflitos militares que se prolongou até o século XIX. Uma dinâmica cultural
estabelecida em 1680 com a fundação da Colônia do Sacramento do Rio da Prata
pelos lusitanos e que teve continuidade com o surgimento de Montevidéu, Rio
Grande, San Carlos (Uruguai) e tantas outras localidades que ao longo dos
séculos XVIII e XIX definiram a fisionomia da região, consolidando as
motivações históricas para o surgimento e colonização dinamizados pelos
confrontos das duas potências ibéricas. A ausência de infra-estrutura, a
rusticidade da sociedade em formação, as intempéries da natureza e a
possibilidade de atividades bélicas com os vizinhos do Prata não era, na
primeira metade do século XVIII, motivação para um povoamento espontâneo para
Rio Grande, muito pelo contrário. A intervenção do poder público português,
através de políticas de atração de colonos, como os açorianos, foi fundamental
para a consolidação de um núcleo urbano em crescimento.
Os fundamentos civilizatórios que promoveriam
a ocupação não apenas do povoamento do Rio Grande mas de todo o estado
rio-grandense estavam lançados. O processo civilizatório se constitui num
somatório de ações individuais e coletivas, materiais e mentais, um continuum
de eventos que formam a memória histórica.
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