Porto do Rio Grande em 1908

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quarta-feira, 23 de outubro de 2019

A CIVILIZAÇÃO COMEÇA A FLORESCER NA BARRA DO RIO GRANDE

Primeira planta da Barra do Rio Grande datada de 1737 e feita por José da Silva Paes. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 



“Averiguada finalmente a penosa e desconhecida barra, que pelos grandes parcéis de areias tem três diferentes entradas, uma ao sul e outras ao norte e sueste, deram fundo neste por mais capaz, e segura, mandando o Brigadeiro [Silva Paes] que o ajudante Pedro de Matos saltasse na costa com a gente de sua embarcação e marchasse por terra, buscando na distância de três léguas o alojamento do Coronel. Com alguns oficiais embarcou no escaler da nau e passou o banco com notável risco, chegando perto da noite à estacada, onde foi recebido com a descarga de três peças de campanha e trinta e seis armas, que unicamente existiam com Cristóvão Pereira naquele sítio”. Simão Pereira de Sá – século XVIII.

Para entender o povoamento ibérico de orientação lusitana no Rio Grande do Sul e na atual cidade do Rio Grande é necessário recuar ao século XVIII e focalizar o surgimento de uma Colônia portuguesa junto ao Rio da Prata.  Por quase um século, entre 1680 e 1777, Portugal e Espanha mantiveram uma tensa relação na tentativa de garantir para os seus domínios uma grande fortificação militar e colonizatória situada na margem esquerda do Rio da Prata: a Colônia do Sacramento. Esta experiência histórica constitui um capítulo fundamental do surgimento do Rio Grande do Sul português e de uma série de episódios deflagrados a partir do confronto entre portugueses, espanhóis, colonos, índios missioneiros e charruas, no espaço ocupado pela Colônia.
O povoamento na atual cidade do Rio Grande emergiu neste contexto platino de belicosidades que definiram as motivações para o estabelecimento de padrões de sobrevivência e civilidade. Foi durante a terceira campanha do cerco espanhol à Sacramento que o Conselho Ultramarino Português autorizou o brigadeiro José da Silva Paes a construir fortificações, no já identificado canal de São Pedro, com o objetivo de garantir um espaço para apoio militar à Colônia e também para o deslocamento de colonos que desejassem fugir ao cerco.  Entre Rio Grande e Sacramento são aproximadamente 700 quilômetros, e com as grandes dificuldades em manter a posição, a Vila do Rio Grande de São Pedro assumiu, paulatinamente, o papel de estabelecer o controle português no extremo sul do Brasil. Por esta importância estratégica, foi um alvo preferencial da Espanha.
         Argumentações favoráveis à ocupação da Barra do Rio Grande de São Pedro foram formuladas pelo Brigadeiro José da Silva Paes ao Conselho Ultramarino Português em 1735 frente à tensa situação de cerco espanhol à Colônia do Sacramento do Rio da Prata. Em parecer de 2 de janeiro de 1736, o Conselho seguiu as orientações de Silva Paes e projetou a edificação da fortificação e povoação da parte sul do canal viabilizados através de investimentos da Fazenda Real. Com a conjuntura internacional favorável ao empreendimento, a Coroa Espanhola buscou defender as posições junto a Buenos Aires, Montevidéu e Sacramento contra um avanço lusitano no Prata. A Espanha não tinha condições de promover um rápido contra-ataque frente à ocupação militar do canal, o que garantiu aos portugueses a fortificação do Rio Grande e sua extensão até o Chuí. 
A ocupação e fortificação da Barra do Rio Grande foi fator de grande satisfação para Silva Paes que despendeu todos os esforços no êxito desta empresa, afinal, através da Comandância Militar do Rio Grande, ficava garantida a posse de todo o território, que se estendia até Laguna (Santa Catarina), barrados os espanhóis em suas pretensões de ocupar este ponto estratégico, ficando sob controle o acesso à imensa rede hidrográfica que penetrava para o interior a partir da Laguna dos Patos. Para o sul, era possível socorrer a Colônia do Sacramento em tempo de guerra e, em tempo de paz, incrementava-se aquela povoação e os negócios ali realizados. O novo estabelecimento permitia, dessa forma, disputar a posse dos imensos rebanhos platinos e, ainda, a participação direta no comércio de cavalos e mulas, garantindo o abastecimento dos centros consumidores do país.
Silva Paes orientou um esquema defensivo da região ocupada, estendendo-se para o sul onde construiu o Forte de São Miguel, além de guardas (Chuí, Taim, Albardão e Passo da Mangueira), do Forte Jesus-Maria-José (cuja imagem sempre carregou consigo até a morte) e da Fortificação de Nossa Senhora da Conceição do Estreito. A efetiva resposta a esta ocupação,foi dada pelos espanhóis em 1763, quando a conjuntura foi propicia a uma investida do Governador de Buenos Aires D. Pedro Cevallos, acarretando na retirada lusitana das posições ocupadas na margem sul do canal. 
Os agentes históricos espanhóis, portugueses, indígenas, negros e miscigenados, envolveram-se numa trama de fronteiras e conflitos militares que se prolongou até o século XIX. Uma dinâmica cultural estabelecida em 1680 com a fundação da Colônia do Sacramento do Rio da Prata pelos lusitanos e que teve continuidade com o surgimento de Montevidéu, Rio Grande, San Carlos (Uruguai) e tantas outras localidades que ao longo dos séculos XVIII e XIX definiram a fisionomia da região, consolidando as motivações históricas para o surgimento e colonização dinamizados pelos confrontos das duas potências ibéricas. A ausência de infra-estrutura, a rusticidade da sociedade em formação, as intempéries da natureza e a possibilidade de atividades bélicas com os vizinhos do Prata não era, na primeira metade do século XVIII, motivação para um povoamento espontâneo para Rio Grande, muito pelo contrário. A intervenção do poder público português, através de políticas de atração de colonos, como os açorianos, foi fundamental para a consolidação de um núcleo urbano em crescimento.
Os fundamentos civilizatórios que promoveriam a ocupação não apenas do povoamento do Rio Grande mas de todo o estado rio-grandense estavam lançados. O processo civilizatório se constitui num somatório de ações individuais e coletivas, materiais e mentais, um continuum de eventos que formam a memória histórica.

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