O espanhol André de Oyarvide (piloto da Real Armada da Espanha) escreveu
um diário referente a demarcações do Tratado de Santo Ildefonso assinado no ano
de 1777 (OYARVIDE, Andrés de. Diario de demarcación. IN: CALVO, Carlos. Recueil
Historique Complet des traités. Paris, 1866).
As informações se referem ao período entre 1783-1784 quando Oyarvide
observou a ação do contrabando junto a Lagoa Mirim, nordeste do Uruguay e se
estendendo até a Vila do Rio Grande.
Será
reproduzido a seguir trechos do artigo de Tiago Luís Gil “Sobre o Comércio
Ilícito” (http://cdn.fee.tche.br/jornadas/2/H4-13.pdf)
que traz elementos fundamentais, a partir de fontes documentais, para a
compreensão do contrabando vigente entre os domínios lusitano e espanhol no
século XVIII. Rio Grande era um polo essencial do contrabando pampeano e
personagens ligados a cidade se notabilizaram nestas práticas.
André de Oyarvide “ao chegar nas proximidades do Rio Cebollatí (nordeste
do atual Uruguay), o demarcador apontou que naquelas terras havia muitos “changadores,
nombre que dan a las gentes que se emplean en estas faenas de matanza de reses
[...] hacen sus cueros y tratan con los Portugueses del Rio Grande, que se los
compran a cambio de bebidas, tabaco negro y algunas ropas.” Adiante no texto, o
autor explica que os ditos “changadores” levavam os couros em cargueiros até o
rio Cebollatí, seguindo em canoas até o Rio Grande.
Talvez este fosse o caminho que fazia o “espanhol Pepe” citado por
muitas testemunhas em duas devassas instauradas no Rio Grande de São Pedro, uma
em 1784 e outra em 1787. Pepe devia ser muito popular entre os portugueses.
Fora citado como notório contrabandista em 1784. Três anos depois, fora
novamente apontado por sete dos vinte e um depoentes de uma devassa. Em 1784, a
testemunha João Coutinho de Amorim disse que Pepe havia trazido uma carga de
couros em uma grande canoa, pela Lagoa Mirim, até a vila de Rio Grande. Seu
depoimento envolvia ainda dois negociantes da vila do Rio Grande, Domingos
Rodrigues e Manuel Rodrigues Lima, sobre os quais pouco sabemos. Pepe teria
alugado a canoa para fazer contrabando que fora apreendido pelo depoente. Ainda
assim, algum tempo depois Pepe agira novamente. Desta vez levava “a carga de
quatorze rolos de tabaco de fumo e alguma porção de biscoito” em uma canoa de
quatro remos, que fora igualmente apreendida, desta vez no “Sangradouro” da
Lagoa Mirim.
Na devassa de 1787, Pepe foi melhor apresentado. Sabemos algo sobre o
que Pepe levava, e como. Mas com quem negociava? Nicolau Cosme dos Reis,
negociante da vila do Rio Grande, nos dá algumas pistas: ... sabe por lhe dizer
o espanhol Pepe que o coronel Rafael Pinto Bandeira lhe tinha vendido uma canoa
mas que não sabe por que preço nem se o ajuste foi feito para ser paga a
dinheiro, ou em couros, e que sabe que o dito espanhol Pepe conduzia publicamente
para esta vila couros da campanha embarcados em canoas.
Tal espanhol mantinha negócios com o coronel Rafael Pinto Bandeira, que
ao tempo da devassa já havia ocupado o cargo de governador interino e era
comandante da “Cavalaria Ligeira”. Interessante notar que fora o próprio Pepe
que contara o negócio que fizera ao negociante Nicolau Cosme dos Reis, ainda
que não falasse sobre o pagamento. Na denúncia que originou a devassa, Manuel
José de Alencastre dizia que Rafael teria vendido a canoa a Pepe em troca de
quinhentos couros. Uma testemunha, José Vieira da Cunha, confirmou a forma de
pagamento, ainda que não soubesse o número exato de couros.
Saindo das proximidades do rio Cebollatí, Oyarvide tomou o caminho de
Santa Tecla, na direção noroeste. Ali também encontro os “changadores”, assim
como índios minuano, que faziam “correrías” para obtenção de gados, “...para
conducirlos hacia la parte de Portugal...”. Neste sentido, Oyarvide distingue toda
uma área que seria de ação de lusos e castelhanos, e que envolvia a especial
ação de contrabandistas, de gente que fazia do trato ilícito seu principal meio
de vida. Certamente o demarcador não fora o único a reparar nestes sujeitos. Em
1785, o vice-reino do Prata procedia contra “varios reos changadores”, por
crimes contra a propriedade. Estes homens haviam roubado couros, com o agravante
de que “los introducían en Brasil”. Oyarvide não ficou apenas nos territórios
espanhóis que ajudara a demarcar. Andou também nas proximidades da Lagoa Mirim,
onde, frente à estância do coronel Rafael Pinto Bandeira, fez uma interessante
observação. Os cavalos do coronel possuíam “...la marca de los vecinos
españoles de Corrientes, Santa Fe y Montevideo.”
Isso poderia muito bem ser uma calunia de um militar espanhol contra um
oficial português. Mas, considerando as referências que temos dos negócios de
Rafael Pinto Bandeira, podemos afirmar que Oyarvide não estava inventando, nem
mesmo exagerando. Afora os relacionamentos com os Minuano e os já mencionados
negócios com o espanhol Pepe, Rafael Pinto Bandeira mantinha uma rotina de
tratos com os súditos espanhóis”.
Compendio Noticioso do Rio Grande de São Pedro. Década de 1730. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário