O
botânico Auguste de Saint-Hilaire deixou registros preciosos quando de sua
passagem por localidades do Rio Grande do Sul. Era o distante ano de 1820 em
que ele percorreu entre o litoral e a região missioneira da Província do Rio
Grande de São Pedro. O mês de julho de 1820 foi, segundo o botânico, muito gélido.
Ele estranhou a falta de aquecimento para fazer frente ao inverno (mesmo
frequentando as casas mais “abonadas” de então). As observações de
Saint-Hilaire são espontâneas em relação ao despreparo para enfrentar o frio e
retratam o cotidiano dos rio-grandenses que moravam na capital.
“PORTO ALEGRE, 4 de julho de 1820. – Durante vários dias o tempo se manteve
muito frio; hoje está sombrio, como na França, antes de nevar, tendo chovido
uma boa parte do dia. Cai geada quase todas as noites, e o conde [Figueiras] tem
podido recolher bastante gelo para fazer sorvetes. Acostumado, como já estou,
às altas temperaturas da zona tórrida, sofro bastante com o frio; ele me tira
toda espécie de atividade, privando-me quase da faculdade de pensar.
Esse frio se repete anualmente; todos se queixam dele, o que é de admirar-se,
pois ninguém toma providências para defender-se do inverno; só cuidam de agasalhar
o corpo com roupas pesadas. Os porto-alegrenses vestem, no interior de suas casas,
um espesso capote [pala?] que lhes embaraça os movimentos e não os impede de
tremer de frio; ninguém pensa em aquecer os aposentos, trazendo-os bem fechados
e neles acendendo uma lareira.
Há aqui grande número de belas casas, bem construídas e bem mobiliadas,
mas nenhuma delas possui lareira ou chaminé. Os aposentos são muito altos; as
portas e as janelas fecham-se mal; estas, geralmente, têm vidros quebrados, que
ninguém se importa de substituir e há casas em que não se consegue procurar um
objeto se não abrindo as venezianas e até mesmo as portas.
Além disso, parece que foram os portugueses que trouxeram da Europa o
costume de se precaver tão pouco contra o frio, por que garantem que, em Lisboa,
as estufas são objetos de luxo.
Como já assinalei, o campo é seco; não se acha nele uma só flor, nem se
vê voar um só inseto; as pastagens têm uma cor cinzenta, as árvores e os arbustos
conservam as folhas, mas apresentam uma coloração verde desbotada. Não tenho absolutamente
nada a fazer, mas receio pôr-me em marcha por causa do frio, tanto mais que daqui
a Rio Pardo tenho de viajar por via marítima [Lagoa dos Patos...] e parece que
serei obrigado a dormir ao relento.
O clima de Porto Alegre é
muito saudável; não se conhecem aqui as febres intermitentes, mas no tempo do
frio, os resfriados e as doenças de garganta são muito comuns. Nessa mesma estação,
o tétano se manifesta frequentemente, sobretudo em seguida a um ferimento.
PORTO ALEGRE, 8 de julho. – Visitei o general [Conde de Figueiras], e
ele me disse, como várias pessoas, que a estação era pouco favorável para se ir
a Missões, por que nesta ocasião muitos rios se constituiriam em obstáculo, por
não serem vadeáveis; enfim que, terminada a minha viagem pelo Rio Grande, teria
a oportunidade de conhecer as dunas, numa época em que a vegetação se mostra em
pleno vigor, e as regiões da capitania, onde poderia esperar melhor colheita em
tempo de falta de flores. O general acrescentou que estava prestes a partir para
o Rio Grande [Vila do Rio Grande] e convidou-me com insistência a acompanhá-lo.
Estou certo de que não usufruirei em sua companhia da necessária liberdade para
o meu trabalho, mas em todo caso, como sei que durante um mês nada poderei fazer
aqui, passarei o tempo de maneira mais agradável”.
Ilustrações: selo com a efígie de Saint-Hilaire emitido em 1953. Porto Alegre na aquarela de Hermann Wendroth (1852).
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